Montmartre Oculta
Passei todos os outros dias de junho sonhando com as torres opulentas da Beauxbatons, confidenciando minhas expectativas à Mademoiselle Noir, escrevendo e reescrevendo a carta em resposta até que estivesse ideal ou minimamente decente para ser enviada à Sra. Verte (ou senhorita, desconheço a situação matrimonial da diretora). Nossa coruja é velha e não dou mais que dois anos até ela ir ao óbito, mas ainda voa bem e atende todas as necessidades sem nenhum grande problema. Pobre Jeanne Louise, quem um dia foi a coruja-da-igreja mais bela e ágil da região!
Os vizinhos não tardaram a reparar em minha alegria toda vez em que eu saía para fazer a minha visita diária à padaria. Era difícil não notar diferença em meu humor, levando em conta que passei a me arrumar mais até mesmo para ir à esquina, prendendo meus cabelos em um laço de fita e aplicando o batom cor-de-rosa que pego emprestado de mamãe tanto nos lábios quanto nas bochechas. O filho do padeiro, como qualquer garoto da nossa idade, implicou com a minha alegria na mesma semana e quis saber com quem eu namorava. Destemida, respondi: “Por que o aflige tanto? Se tem tanto ciúmes e admiração por mim, não teria sido mais inteligente ter me convidado para sair antes que outro alguém aparecesse?”. Ele correu de volta para a cozinha do pai, as bochechas ardendo em um vermelho estridente.
Sempre sonhei com o luxo de Paris e Beauxbatons, porém era certo de que eu sentiria falta de muitas coisas da simplicidade nativa de Annecy: o cheiro maravilhoso das padarias e confeitarias logo de manhã, os homens tocando acordeão no fim de semana, a música do movimento das águas do rio, o sol me acordando diariamente entrando pelos vãos da janela de madeira e o verde que colore a cidade inteira. Conforme o calendário se aproximava cada vez mais de setembro, mais nostálgico meu coração ficava e sentia que não voltaria à Annecy depois do sétimo ano. Passei a visitar mais as margens do rio e admirar a paisagem por dez ou quinze minutos. Ao pôr-do-sol, tornou-se comum um misto de ansiedade e saudade.
Em agosto, mês que chegou trazendo os últimos dias de verão com muito calor e tempestades, papai subiu ao meu quarto antes que eu acordasse para me informar que iríamos à Montmartre Oculta. O sono me impediu de raciocinar imediatamente, mas quando entendi que iríamos à Paris, saltei da cama assustando Mademoiselle Noir, correndo para ir logo me trocar. Tirei do meu pequeno guarda-roupa o vestido que normalmente uso apenas para ir às festas dos vizinhos trouxas, um godê floral que me faz parecer alguns centímetros mais alta. Papai esperava por mim ao lado da lareira da sala com um punhado de pó-de-flu na mão fechada.
Montmartre Oculta é o bairro bruxo de Paris exatamente igual à Montmartre trouxa, mas vendendo vassouras e caldeirões nas vitrines ao invés de frutas e flores. Para chegar lá através do método convencional, é só entrar num bueiro localizado em um dos becos de Montmartre e sairá na Oculta, literalmente de ponta-cabeça (e não se sente estar de cabeça para baixo, acredite!). Vovó Apoline me contou casos e histórias sobre o local durante toda minha vida, das boutiques de haute couture bruxa aos bares e cervejarias mágicos. Montmartre Oculta era tão boêmia quanto sua gêmea trouxa segundo a vovó, e confirmei assim que cheguei. As tabernas abriram já durante a tarde, atraindo clientes desejando por um vinho de fada.
As moças adultas desfilavam pelas ruas de paralelepípedo exatamente como em meus sonhos, segurando em uma mão parassóis rendados sobre a cabeça para deter o sol escaldante de agosto, e a outra inúmeras sacolas de boutiques. Muitas delas usavam pequeninas estrelas douradas nas costeletas para iluminar o rosto e batons coloridos combinando com a roupa, sapatos de salto de pedras preciosas e pingentes guardando dentro o que parecia ser uma fada. Inicialmente minha opinião sobre os pingentes era positiva, mas rapidamente a mudei e passei alguns segundos horrorizada. Nunca vi nada tão desnecessário e cruel!
A primeira loja em que entramos era a extravagante alfaiataria de três andares responsável pelos uniformes da Beauxbatons e Papillon Magique, a Maison du Sorciére. Encontrei um pequeno grupo de garotas loiras da minha idade, fofocando com o sotaque parisiense, claramente futuras alunas da Academia também.
- … Soube que a senhorita Verte é grande fã de praias e tudo relacionado ao mar! - Exclamou uma delas, o que me motivou a aproximar do grupo - Deveríamos levar um saquinho de conchas como agradecimento pela aprovação, o que acham?
- Com licença? - Chamei antes que as demais opinassem sobre a ideia do presente - Vocês também serão alunas do primeiro ano em Beauxbatons?
Quase todas elas me olharam de ponta à ponta como se fizessem uma análise completa do que eu vestia e engoli seco ao momento em que torceram o nariz. Apenas a menina que sugeriu o presente, e a mais bela entre todas, não me estudou com desgosto e sorriu com sinceridade.
- Sim, nós também vamos à Beauxbatons! - Ela respondeu - De que região é?
- Venho dos Alpes; Annecy, mais especificamente. São todas de Paris?
- Apolline, acho que vai gostar daquele vestido ali… - Uma outra garota a puxou pelo braço, com certeza apenas para encerrar nossa conversa.
- Eu espero vê-la depois em Beauxbatons! - Apolline (ri mentalmente ao descobrir que ela tem o mesmo nome que minha avó) se virou brevemente para acenar para mim - Até breve!
Os olhares e desprezo das garotas que deveriam agir como minhas colegas me angustiou e instantaneamente acabou com meu bom humor. Papai voltou trazendo a sacola com meus trajes e notou o descontentamento em minha face, me perguntando o que teria acontecido.
- Há quanto tempo tenho este vestido, papai? - Questionei ao invés de respondê-lo.
- Não me recordo, querida, até porque comprou com a sua mãe. Não deve ser tão antigo, cresceu muito desde o ano passado.
- Eu estava pensando em usar o dinheiro que a vovó me deu de presente de aniversário para comprar um novo, para usar em Beauxbatons. Acho que este aqui está fora de moda.
- Bobagem, Anne! Fica muito bem nesse! Além do mais, Beauxbatons tem mais trajes do que imaginei… Não terá muitas oportunidades para usar outra roupa que não seja um dos uniformes.
- Ficou muito caro o valor total da confecção? Seja honesto comigo, papai.
- N-não se preocupe, Anneliese, guardamos dinheiro suficiente, não se le-lembra? - Ele ter gaguejado só aumentou mais a minha preocupação - Agora, vamos ir comprar seus livros, sim?
Não contrariei meu pai, mas eu sabia que ele fez exatamente o que eu havia pedido para não fazer. Enquanto ele me puxava pela mão, virei o pescoço uma última vez para bisbilhotar o grupo do qual eu já sabia que não faria parte. A imagem do instante em que me olharam como uma inferior reproduziu diversas vezes em minhas lembranças durante todo o tempo na livraria e mal pude aproveitar minha visita direito, sequer me recordo do que vi naquele dia. Aquilo doeu como poucas coisas desagradáveis que eu tinha experienciado, e mais do que a vez em que acidentalmente cortei meu pé com um pedaço de espelho quando criança. Eu gostava tanto do meu vestido de festa, e de repente o odiava, queria poder despí-lo ali mesmo. Toda vez em que eu topava com meu reflexo nas vitrines, conseguia apontar mil e um defeitos nele: a estampa era sobrecarregada, a tintura do zíper estava descascando, o fio em uma região próxima ao colo desfiava, o comprimento era maior do que o de qualquer outra moça que vi passar. O meu antigo terminava nos joelhos, o das outras nas coxas.
Acordei de meu transe infeliz quando entramos na loja de varinhas, a Cuivre & Canne, um estabelecimento completamente revestido por cobre e bronze que reluzia para os pedestres e clientes sempre que o sol se apresentasse. A loja foi fundada e até então comandada por duas irmãs gêmeas, Amélie e Adelaide Cuivre. Eram senhorinhas muito idosas e de fisionomia simpática, vestindo um xale de crochê em tons claros cada uma. Eu não saberia dizer quem é Amélie e quem é Adelaide, mas uma tinha um par de olhos castanhos enquanto o de outra era verde.
- Primeiro ano, com certeza. - A de olhos verdes murmurou para a outra.
- Vejo que sim. - A irmã concordou e atravessou uma pequena porta, que certamente dava para o estoque.
- Bonne aprés-midi! - A que ficou no balcão nos recebeu alegremente - Vieram comprar a primeira varinha da mocinha, sim! Quem a acompanha, querida?
- Gaspard Deneuve, é um prazer revê-las. - Meu pai a cumprimentou - Já tem muitos anos desde a última vez em que pisei aqui.
- Deneuve, Deneuve… - A idosa pensou por um momento, coçando o queixo - Deneuve, sim! Cedro, núcleo de pelo de unicórnio… Estou correta?
- Oui, oui!
- Oh! Não tinha ideia de que tanto tempo já tinha se passado! E como está sua mãe, ainda viajando muito?
Mamãe quase nunca está em casa, o que significa que sua saúde anda maravilhosamente bem.
Fico feliz por ela, meu rapaz! Agora, se me dão licença… Amélie, os clientes estão esperando!
Amélie voltou trazendo quinze caixas, sofrendo para equilibrar todas em seus curtos braços e enxergar por trás delas. Adelaide a ajudou a colocar cada uma das caixas sobre o balcão e as abriu para que pudéssemos olhar. Ela parecia ser bem perfeccionista e organizada, julgando pela forma com que organizava - procurava manter todas em uma fileira perfeita, simetricamente. Precisei cobrir minha boca para não rir do cuidado desnecessário.
- Estas são varinhas supostamente ideias para uma caloura, mas que ainda a servirão muito bem quando for mais velha e experiente. - Explicou Adelaide - Não são minúsculas, porém nada grandes também. Sinta-se à vontade para experimentá-las.
Meu pai fez um sinal para me encorajar a testar a primeira e arrisquei. Como de esperado por ele, as gêmeas e eu, não deu muito certo. Elas me aconselharam a tentar novamente… Mas a preocupação bateu quando eu cheguei à décima varinha e ainda não havia encontrado a certa. O candelabro da loja foi atingido, bem como algumas prateleiras, janelas e vitrines. O gato persa das irmãs miou raivoso para mim e correu para outro cômodo. Entrei em pânico, pois eu não saberia dizer se a culpa e o problema eram com as varinhas ou comigo!
- Amélie, vá trazer mais varinhas, sim? - Pediu Adelaide, suando frio - E bem rápido!
- Será que devemos oferecer aquela varinha? - Amélie perguntou com uma entonação bem específica.
- Oh, céus!
Olá, pessoal! Peço desculpas pela demora com o segundo (primeiro?) capítulo. Decidi acabar com um cliffhanger, temi que ficasse muito longo e cansativo. Espero que estejam curtindo!
Comentários (1)
Atualiza, a fic está interessante
2018-07-04