Prólogo: Uma manhã em Annecy
Meu nome é Anneliese.
Anneliese Deneuve.
Deneuve, exatamente como a atriz trouxa, no entanto não tão bonita, ainda.
Era uma manhã quente e úmida de junho quando a minha carta de aprovação em Beauxbatons caiu do céu com a graça de uma ninfa. Antes disso, foi mais um dia comum na minha vida como cidadã de Annecy; meus pais e eu vivemos em uma pequena casa de madeira, não muito longe do rio Thou, vizinhos de trouxas. Somos discretos, porém cremos na bondade daqueles que são diferentes de nós.
Annecy não possui muito espaço para se viver afastado dos trouxas, preciso dizer. Mesmo assim, nunca houveram conflitos ou cartas do Ministério nos informando sobre algum trouxa que nos flagrou praticando magia. Frequentamos as festas de aniversários dos nossos vizinhos, vamos ao cinema vez ou outra, compramos pão em padarias onde não há a menor presença de feitiçaria. Em casa, com as cortinas impedindo a visão dos curiosos, podemos fazer o que quisermos. Não fique triste por nós, pois nos acostumamos e somos felizes.
São só meus pais e eu. Minha mãe, dona Eleonore, se casou com meu pai, Gaspard, assim que ambos acabaram os estudos. Segundo as histórias que mon madre me conta sobre sua juventude, se apaixonaram perdidamente ainda no primeiro ano. Ela é uma mulher tímida, que aos poucos nos permite ouvir mais palavras vindas de sua garganta, enquanto meu pai dedica boa parte de seu tempo à herbologia e todo mês viaja à Londres para vender o que plantou nas últimas semanas. Mamãe usa magia para costurar os mais complexos bordados em panos de prato e saias, e vende às moças trouxas afirmando levar dias para concluir uma peça.
Às vezes, vovó Apoline vem de Cannes nos visitar. No auge de seus 90 anos, me admira ela não sossegar na cadeira de balanço - prefere viajar por toda a França e Europa, conhecer pessoas (tanto trouxas quanto bruxos), e me comprar presentes. O último foi um perfume de uma loja de cosméticos bruxa em Paris que muda de fragrância para combinar com meu humor. Vovó traz muitas histórias de Paris, onde sonho morar um dia. Lamento se soar um tanto egoísta em dizer isso, mas não me sinto parte de Annecy. Gostaria de aprender a dançar e ser uma daquelas bruxas glamourosas da capital, elegantes e de postura impecável, indo e voltando das lojas mais caras, ostentando chapéus de meia-lua cuidadosamente costurados e enfeitados por linhas de ouro. No cinema, a graça e a beleza parisiense de Brigitte Bardot me enchem os olhos.
Aonde estávamos?
Oui, a carta!
Saí cedo para comprar leite na padaria mais próxima, como de usual em meu cotidiano. No caminho de volta, avisto a coruja-das-neves mais majestosa que tive o prazer de assistir voar, trazendo em seu bico um envelope prateado envolto por um laço de fita azul-bebê. Não éramos os únicos bruxos habitando em Annecy, logo não me prendeu a atenção de início. Entretanto, enquanto descia a rua, notei que a coruja e eu trilhamos o mesmo caminho. A coruja foi mais veloz que meus pés e quando atravessei a porta, o tal envelope aguardava seu destinatário sobre a mesa.
- Você viu a coruja, Anne? - Perguntou minha mãe, deixando a cozinha para vir abrir a carta - Tão grande! Espero não ter chamado a atenção dos trouxas! Vejamos, o que deverá ser?
Observei minha mãe pacientemente, ainda segurando a garrafa de leite fresco, distraída demais para pensar em guardá-la no momento. Arregalo os olhos quando mamãe faz o mesmo ao ler o remetente e me entrega, sorrindo de orelha a orelha, um tanto trêmula também.
- É para você, Anne. Me dê aqui o leite, vá ler!
Trocamos de objetos e levei alguns segundos para acabar de ler as palavras em tinta azul no envelope. Reli mais vezes para confirmar se eu não tinha me enganado, mas estava ali com todas as letras:
Academia de Magia Beauxbatons
Antes mesmo de desfazer o laço e abrir a carta, a preocupação me subiu à cabeça.
- Mamãe… Não temos dinheiro para isto.
Ela me ignorou como se eu nem houvesse dito algo e foi chamar pelo meu pai. Dei de ombros e rasguei o topo do envelope, puxando um papel brilhante que exalava o cheiro de lavandas, preenchido pela mesma tinta azul no envelope. A caligrafia era tão classuda que me senti até intimidada.
Srta. Deneuve,
Temos o prazer de informá-la que foi prazeirosamente aceita na Academia de Magia Beauxbatons.
O ano letivo se inicia em 1° de setembro de 1962. Por favor confira a lista de livros e outros materiais necessários para ingressar à Academia enviada junto à esta carta.
Aguardamos sua coruja no mais tardar até o dia 20 de julho.
Atenciosamente,
Diretora Clarice Verte
Ao terminar minha leitura e erguer a cabeça, encontro meus pais felizes da vida e lacrimejando de alegria, aparentemente esperando pela minha reação. Meu pai ainda vestia seu avental sujo de terra, como quem não teve tempo de deixá-lo na estufa após ter a mão puxada por Eleonore. Eu só pensava em como (não) seria possível pagar os estudos e materiais exigidos pela Beauxbatons.
- Por que estão tão felizes? - Não pude evitar em questioná-los - Nós não temos condições para me bancar em Beauxbatons.
- Temos economizado desde que decidimos ter um bebê. - Papai respondeu - Pode ficar tranquila, querida. Você vai à Beauxbatons! A primeira de nossa família!
Só para esclarecer, meus pais e todos os meus ancestrais frequentaram a Papillon Magique, uma escola consideravelmente menor que a Beauxbatons localizada nas florestas do sul da França, onde os bruxos mais pobres frequentam. Não é uma escola ruim, nem de longe, tanto que eu não teria problemas em estudar lá. Porém, não tem tantas matérias e atividades extracurriculares quanto a Beauxbatons, o que torna o ensino inferior.
- Vocês têm guardado galeões todos esses anos e nunca me contaram?
- Queríamos que fosse uma surpresa desde o início. - Mamãe explicou - Anne, se não quiser ir à Beauxbatons, dá tempo de ser aprovada pela Papillon Magique. Nós entenderemos.
- Mamãe, o que está dizendo!? É claro que eu quero! Eu só estou chocada! Nunca esperei que pudéssemos pagar pela Beauxbatons!
Agora bem mais contente e aliviada, joguei a carta para o alto e abracei meus pais, a quem eu devo o mundo a partir do instante em que eu pisar na Academia. Ouvia os passos da minha gata, a Mademoiselle Noir, descendo as escadas. Mal sabia ela onde comeria seus sachês nos próximos meses.
Espero que o prólogo tenha o instigado a vontade de acompanhar a jornada de Anneliese!
Catherine Deneuve é uma famosa atriz francesa, popular pelo filme "Belle de Jour" ("A Bela da Tarde" em português).
Annecy é uma cidadezinha dos Alpes franceses, apelidada de "Veneza dos Alpes" por ter um rio que percorre toda a cidade, que é também um dos mais limpos da França. Recomendo procurar por fotos desse lugar tão lindo ♥
Au revoir!
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