Escândalos a parte
Por trás das vidraças da casa havia uma leve nevasca, típica de final de dezembro, que encobria parcialmente os enfeites de jardim postos meticulosamente entre as plantas exóticas da senhora Weasley. Ainda que o frio lá fora congelasse até o pequeno lago nos fundos da propriedade da Toca, dentro da residência a temperatura beirava simplesmente o agradável, com suas lareiras sempre acessas e feitiços eficientes de aquecimento artificial.
Aquela era, agora, não apenas a residência fixa da família Weasley, mas também a sede oficial da Ordem da Fênix. Por tal razão, tinha seu endereço removido dos mapas por decreto próprio do Ministério da Magia, uma vez que a Ordem assumia, agora, uma posição de destaque como um Departamento de Investigações e Missões Especiais. Tal posição garantiu ao atual pequeno grupo de membros uma renomada colocação nos grupos corporativos do Ministério. Feito este que se deveu, quase unicamente, aos resultados positivos da batalha final, aquela em que Voldermort fora derrotado por Harry Potter, estabelecendo-se a paz universal no mundo bruxo.
Para alívio de Molly Weasley, era extremamente recompensador ter tantas pessoas morando em sua casa novamente, que um dia fora lar absoluto de tantos filhos. Houve uma época em que se sentiu completamente desestimulada, ao ver sua velha residência ser consumida por chamas, após um ataque de comensais. Pensou que jamais seria capaz de reconstruir sua vida e a de sua família, sem a parte mais significativa de sua história, cujas lembranças haviam queimado junto com os restos que um dia havia sido uma casa. Podia não ser muito, costumava dizer aos filhos, mas era suficiente para representar um lar. Com um esforço realmente grande, conseguira erguer a residência novamente, aproveitando o pouco que havia restado dela após o incêndio, e moldando-a novamente ao padrão de antes, embora alguns cômodos tivessem sido ampliados no processo.
Com os resultados da guerra, inevitavelmente, fora necessário lidar com uma série de perdas, não apenas materiais, mas principalmente as perdas de amigos, filhos, pais e pessoas inocentes. Para tal, encher a casa novamente era uma solução bastante tentadora. No entanto, por vezes, era extremamente desconfortável ter uma vida profissional em paralelo com suas vidas sociais, uma vez que compartilhavam de refeições pelo menos duas vezes ao dia, bem como dormiam em quartos vizinhos e precisavam disputar pelos banheiros que eram bastante escassos na casa. No mais, podiam sair e retornar quando bem quisessem ou precisassem, embora a carga de feitiços de proteção sobre a casa lhes tomasse um bocado de tempo toda vez que precisavam retornar à propriedade. Havia privacidade, sem dúvida, mas uma intervenção ou outra na vida alheia era quase um processo natural da convivência.
Naquela manhã, em particular, a residência estava silenciosa como pouco se via há um bom tempo. Aparentemente, os efeitos da nevasca pareciam ter afetado o sono dos moradores, embora a suspeita maior fosse o simples fato de aquele dia ser véspera de Natal e, por tanto, significar afazeres domésticos para a ceia que seria servida na virada do dia. A comemoração de Natal ainda era uma tradição para todos eles, embora tenha adquirido uma perspectiva diferente para cada um deles com o passar do tempo, normalmente envolta por incertezas e sentimentos que remetiam à saudade de seus entes.
Apesar disso, no entanto, alguns começavam a despertar.
- Interessante abordagem, Potter. – disse Snape em uma voz bastante preguiçosa, enquanto iniciava sua decida nos primeiros degraus da escada que dava acesso à sala de estar, passando por Harry um pouco antes do mesmo alcançar o fim do corredor – Vejo que se esforçou para diminuir a pressão em sua própria testa rachada, mas esqueceu de romper a corda que já está no pescoço de cada membro desta Ordem há muito tempo.
Processando o comentário de seu ex-professor, entre um bocejo ou outro, observou-o chegar ao final da escada com uma cópia do Profeta Diário do dia nas mãos, onde se lia em letras absurdamente grandes a principal manchete daquele dia.
“Escândalo na Ordem da Fênix”
Esboçou sua melhor careta, pensando o quão devastador aquele artigo poderia ser. Tinha prestado uma entrevista ao Profeta no dia anterior, e não se lembrava de ter garantido apenas a sua pele, mas de ter defendido a Ordem como um todo, também. Rapidamente, desceu os últimos lances da escada e alcançou imediatamente sua cópia do jornal, sobre a mesa de centro. Não precisou de muito para entender o ponto de vista de Snape.
[...] tivemos acesso, com exclusividade, ao depoimento do Chefe Maior do Departamento da Ordem da Fênix, Harry Potter:
“Tenho trabalhado arduamente para garantir que cada missão e investigação realizada pelo meu Departamento ocorram dentro dos padrões rigorosos de conduta ética do Ministério. No entanto, temos enfrentado momentos de incertezas na política atual, o que dificultou, em partes, acompanhar o progresso dos últimos julgamentos. Para efeito de legalidade, afirmo estar inteiramente a par das acusações e espero poder provar satisfatoriamente minha boa conduta como Chefe deste Departamento.”
Buscando o assento do sofá mais próximo, enquanto lia as últimas palavras do artigo, Harry permitiu-se soltar um suspiro levemente aborrecido. Mais uma vez, parecia ter sido passado a perna pela redação do jornal.
- Sempre você, Potter, “o chefe Maior deste Departamento”. Enquanto a corda nos aperta cada vez mais. – disse Snape, novamente, notando a expressão destruída de Harry – Se espera que eu aplauda sua postura, está tremendamente enganado. Muito em breve serei chamado a julgamento, e se não está lembrado, minha velha marca negra me condena antes mesmo que eu possa abrir a boca para provar inocência.
Parecia levemente irritado, dobrando seu jornal em duas partes iguais e jogando-o sobre a mesa, enquanto inclinava-se para frente em sua poltrona, ameaçadoramente. Preparou-se para mais um sermão, quando sentiu uma corrente de vento frio alcançá-lo, obrigando-o a ajustar seu casaco de inverno sobre os ombros. Não teve tempo de dizer mais nada, uma vez que não apenas o vento frio o atingiu, como também a voz melodiosa de Tonks, adentrando a sala.
- Merlim, Snape, você tem que parar de acordar tão azedo assim todos os dias. – dizia a mulher, que acabava de fechar a porta da sala e começava a retirar os flocos de neve que lhe cobriam a capa de chuva. Tinha uma cesta cheia de ervas nas mãos, e seus cabelos estavam incrivelmente instáveis naquela manhã, mudando de tons claros para tons mais escuros em segundos. – A propósito, está nevando lá fora. E já fiz minha parte colhendo os temperos para a ceia, agora movam seus traseiros e façam a de vocês.
- Permita-me dispensar seu conselho, Ninfadora. – Snape respondeu a ela, seu tom de voz ainda mais arrastado que outrora, vendo-a se afastar em direção à cozinha com os cabelos tingidos de vermelho fogo, para depois um azul gritante, enquanto resmungava pelo caminho.
- Não foi um conselho, Severo. Foi uma ordem.
Enquanto alguns segundos de silêncio se fez presente, mudou sua postura, novamente, para uma mais relaxada, levando seus dedos às têmporas, onde uma dor levemente pulsante já despontava. Tivera seu sono completamente quebrado desde que recebera o Profeta, ainda quando estava na cama.
- Antes que você pense que fiz isso para prejudicá-lo ou prejudicar a qualquer outro da Ordem, Snape... – dizia Harry, sendo interrompido por um som arrastado da ponta de uma pena rabiscando sobre um pergaminho, tão ligeiro e insistente que podia ouvi-lo dentro de seus ouvidos como se fosse uma engrenagem fixa. Sabia que ficaria com aquele som em sua cabeça por dias.
- Bom dia, professor. – era Gina quem cumprimentava primeiramente Snape, sem tirar os olhos de suas anotações nem por um segundo, caminhando de encontro aos homens. – Bom dia, Harry. Precisamos discutir números, e tem que ser agora, enquanto ainda tenho os cálculos fresquinhos na minha cabeça.
- Merlim, Gina, nós discutimos sobre números ontem, e vamos discutir de novo? O que acontece com seus cálculos todo dia? O orçamento nunca é suficiente? – Harry estava visivelmente irritado, levantando-se e seguindo em direção à cozinha, abanando uma mão sobre a cabeça e indicando que não queria falar sobre aquele assunto, pelo menos não tão cedo.
Seguindo-o a passos bastante rápidos, Gina parecia ter agora não apenas os cabelos vermelhos, mas as maçãs do rosto também.
- Harry Potter, por acaso está insinuando que ando modificando os números? Esta é uma acusação bastante grave, e inadmissível visto que faço meu trabalho eficientemente desde o dia que fui designada a ele. Está me ouvindo, Harry?
Agora, o som das vozes na cozinha era apenas um eco de fundo que não incomodava mais. Estar de volta à tranquilidade permitia a Severo pensar com mais calma sobre os seus problemas com a Ordem. Não tinha interesse algum em deixar o Departamento, visto que voltar a lecionar, fosse em Hogwarts ou em qualquer outra escola de magia, deveria ser sua última e mais improvável das alternativas. Era bem verdade que precisava do dinheiro, mas qualquer outra função era simplesmente menos recompensadora que continuar seus trabalhos para a Ordem.
Com a derrota de Voldemort, pouca ameaça havia restado, embora as Artes das Trevas ainda fossem modalidades muito praticadas em diversos cantos do mundo bruxo, o que podia significar riscos à sociedade e ao futuro da nação bruxa. Destas artes, nada podia ser aproveitado para beneficio, o que obrigava o Ministério a continuar investigações acerca delas e promover missões de captura de possíveis usuários de tais magias, punindo-os e prevenindo maiores consequências.
Era um trabalho que envolvia extrema sagacidade. Gostava de estar de volta aos desafios de missões perigosas, repletas de surpresas a cada nova descoberta e pistas muitas vezes difíceis de serem seguidas. Sentia-se vivo, como nos tempos de guerra, onde podia exercer uma função que era de todo muito bem vinda e de grande reconhecimento, de ambos os lados. Na época, era Dumbledore que o incentivava a ser bom, mesmo que para tal necessitasse ser mau. Era uma estranha analogia, visto que estava agora vivo e o velho diretor não, tendo sido ele o responsável por sua morte.
Incontáveis vezes, estivera quase a ponto de ser descoberto por Voldermort, e conseguira manipulá-lo a seu favor já nas últimas oportunidades, antes que o mesmo perdesse a confiança por ele. Toda vez que trazia informações novas ao velho diretor, sentia-se importante, apenas por estar fazendo algo de memorável, dentre tantas façanhas más que era forçado a fazer sempre que tinha que carregar sua máscara de comensal. Agora, mais do que nunca, sentia-se diferente. Não havia culpa, nem tanta pressão. Obviamente, ninguém que o conhecesse tão bem entenderia o modo como Severo se sentia. Na verdade, Alvo fora a única pessoas mais próxima de tê-lo entendido, embora não o tenha, inteiramente.
Com este último pensamento, decidiu que precisava distrair sua mente com alguns afazeres relacionados ao seu trabalho, sabia que tinha uma lista imensa de casos para analisar. Assim evitaria, também, ser convocado para qualquer ajuda que envolvesse cortar galhos de um pinheiro e transformá-lo em uma árvore de natal. Não tinha interesse algum pela data em especifico, e nunca realmente se sentira bem comemorando, mesmo nos anos de Hogwarts. Soava extremamente solitário, todas aquelas pessoas reunidas em torno de uma mesma mesa e desfrutando de um banquete absurdamente farto, presenteando-os uns aos outros sem ao menos dividir histórias em comum, sempre ao som de uma melodia melancólica e depressiva. Ou talvez fosse Snape quem sempre estivera depressivo nestas datas, em fim.
Dirigiu-se até o seu escritório, um pequeno cômodo que um dia fora um espaço para entulhos domésticos da Molly, e que, mesmo a contragosto dos demais moradores da casa, transformara em sua biblioteca e escritório particulares, onde ninguém estava autorizado a entrar.
Ao girar a maçaneta de ferro velho e enferrujado, sentiu os trincos fechados, mas não se lembrava de ter sido o responsável por isso, da última vez que esteve ali. Suspeitando que alguém o tivesse feito, providenciou sua varinha com uma irritação aparente, e antes que pudesse fazer qualquer feitiço de abertura, ouviu a tranca ranger e a maçaneta girar sozinha. Passando apenas sua cabeça para dentro, não teve dúvidas de que entendia o motivo da porta estar trancada.
- De novo invadindo meu espaço, senhorita Granger? – disse em seu tom mais áspero – Isso se tornou um hábito, afinal? Eu pensei ter sido claro sobre não querer mais vê-la mexendo nas minhas coisas.
Caminhou em direção ao sofá-cama em que ela estava parcialmente deitada, observando-o com um riso contido em seus lábios, enquanto fechava um dos livros que estava sobre seu colo, antes marcando cuidadosamente a página em que havia interrompido sua leitura. Notou que ela ainda vestia seu pijama de calças azuis, e uma ridícula pantufa mágica que agitava seus pelos para todos os lados. Esperava que estivesse envergonhada por ter sido pega de surpresa, mas Hermione parecia extremamente calma.
- Bom dia, professor. Eu sempre acordo sedenta por uma boa leitura em manhãs de nevasca.
- Pois deveria limpar sua vista, porque na semana passada você estava aqui sem minha autorização e não havia neve alguma lá fora, senhorita. – disse, puxando as laterais de seu sobretudo para mais próximo de seu corpo, visto o frio que sentia no ambiente, que aparentemente não estava enfeitiçado para controlar a temperatura.
Hermione sorriu com o comentário, permitindo-se um riso fraco, enquanto levantava e organizava seus livros nos braços. Tinha estado tão entretida em sua leitura que mal notou que a ponta de seu nariz estava gelada, e as maçãs do rosto levemente rubras, devido ao frio.
- Eu já estava quase de saída, de qualquer forma. – disse, levantando-se e aquecendo suas mãos com o calor de seu hálito – Tenha uma ótima manhã de nevasca, professor.
Passou por ele ainda com um meio sorriso apontando em seu lábio sem cor, apenas até o momento em que foi puxada inesperadamente para trás, com um único toque em seu ombro.
- Aonde pensa que vai carregando meus livros, Granger? – disse baixo, por conta da proximidade.
Hermione respirou uma vez mais, devido o susto de ter sido parada bruscamente, e deixou transparecer sua irritação levemente fingida. Era boa em interpretação, e sempre colocava seus talentos em prova em situações como aquela.
- Por acaso, está me acusando de ser uma ladra, professor Snape? – estreitou seu olhar a fim de intimidá-lo – Eu não me lembro de ter roubado algum livro seu em qualquer uma das vezes em que estive aqui sem sua permissão. E depois, eu tenho meus próprios livros, professor, francamente. Eu apenas gosto da privacidade que encontro quando estou no seu escritório, é diferente de qualquer outro lugar desta casa.
- Não seja tão cínica, senhorita Granger. Sei que tem uma fixação doentia pelos meus livros e gostaria que começasse a devolvê-los, ao invés de ficar ajustando minha estante toda vez que tira algo dela, como se eu não fosse sentir a falta de nenhum deles. – disse, recaindo seu olhar para um espaço vazio na prateleira, obviamente esquecido de ser disfarçado por Hermione, naquela manhã – Tenho pensando em iniciar uma missão especial para buscar alguns exemplares que tenho certeza que estão perdidos dentro do seu quarto. Devolva estes livros, agora!
Prendendo a respiração por um instante, ela simplesmente pressionou os livros contra seu peito com um pouco mais de força, vendo-o com a mão aberta exigindo a devolução dos livros que ele sabia que foram tirados de sua estante. Tinha pensando que havia feito o serviço de forma eficiente, mas Severo Snape sempre percebia quando ela tentava saquear seus livros de Poções Avançadas. Muitos dos exemplares eram edições únicas e exclusivas, antigos até, mas continham informações extremamente úteis. Desde que fora promovida a Chefe de Pesquisas em Poções e Experimentos, na Ordem, posição essa que era de ocupação de Snape quando ele não estava envolvido em investigações e missões, tinha demonstrado intenso interesse pela biblioteca particular de seu ex-professor.
- Quer saber de uma coisa, professor? – disse, ajeitando sua postura e fixando seu olhar diretamente ao dele – Não devolverei!
Dizendo isto, teve apenas poucos segundos para iniciar uma corrida para fora do cômodo, driblando o obstáculo que era o próprio corpo de Severo, altivo. Tinha sorte de suas pantufas mágicas serem antiderrapantes, caso contrário já estaria no fim das escadas sem precisar pisar em nenhum degrau. Atrás dela, apenas a sombra de Snape tentando alcançá-la, sem nenhum esforço de corrida. Suas pernas eram longas e fizeram um bom trabalho até chegar à sala novamente, e encurralá-la entre a entrada da cozinha e os sofás.
- Divertindo-se com a brincadeira, senhorita? Porque está me parecendo de muito mau gosto. – disse, estendendo a mão novamente em sua direção – Devolva!
- São somente livros, Severo. Serão mais úteis na biblioteca do meu laboratório, você sabe.
Como se tivesse sido atingido por uma maldição, sentiu seus músculos retesarem com o eco sonoro de seu primeiro nome sendo pronunciado por Hermione. Nunca ouvira a jovem chamá-lo pelo seu primeiro nome, exceto em reuniões formais, mas nunca sem combiná-lo com seu último sobrenome. Não podia ter entendido errado, e a certeza de ter notado um tom extremamente íntimo na forma com que se referira a ele, deixou-o levemente desnorteado. Notou que ela tinha os cabelos parcialmente volumosos, devido à corrida até lá embaixo, e uma fina gota de suor parecia apontar no alto de sua testa, enquanto a respiração dela também parecia tentar buscar um ritmo normalizado.
Fechou sua mão, um tanto envergonhado, notando que as pessoas que já estavam acordadas se apinhavam na entrada da cozinha para ouvir a discussão. Seu olhar estava evitando encontrar o dela, mas por um rápido instante o dela conseguiu cruzar o seu, e estava brilhante demais para olhos castanhos que eram.
- E então? – indagou a ele, temerosa, mordendo os lábios – Devo entender seu silêncio como se estivesse considerando minha argumentação, Severo?
Novamente precisou de mais uma golfada de ar, ouvindo seu nome tão ligeiramente suave saindo dos lábios dela. Era incontestável que sempre desejara que Hermione pudesse referir-se a ele como de igual para igual, mesmo que ele nunca tenha ousado chamá-la por nada mais diferente que senhorita ou Granger. Algo de que jamais abriria mão era sua postura respeitosa e cordial, embora com Harry tivesse uma tendência natural para perder toda e qualquer norma de etiqueta.
No entanto, a partir do momento em que teve consciência de que sua ex-aluna era uma excelente preparadora de poções e suficientemente capaz de substituí-lo nesta tarefa, na Ordem, o modo como a considerava havia mudado, crescendo sua estima por ela a cada novo contato, profissional, claro.
- Não estou considerando nada, apenas devolva, Granger. – respondeu, áspero como costumava, sentindo-se imediatamente um monstro por negar qualquer tratamento mais cordial, como conferia a ordem dos fatos.
Alguma coisa agitou em seu estômago, e Snape duvidava muito que fosse a fome, motivada pelo desjejum não feito. Tal desconforto pareceu forte o suficiente para fazê-lo agir um pouco grosseiro demais com ela.
- Merlim, Hermione! – uma exclamação sonora alcançou o ambiente, e vinha de Rony, descendo as escadas em direção à sala, vestia roupas sociais como se pretendesse sair para negócios, e chamava a atenção por ter surgido inesperadamente – Eu deito para dormir ao seu lado, e acordo sem você na cama. Será que não dá pra largar as vestes do Snape um pouco? Já disse o que achava sobre isso, uma vez...
- Cale-se, Ronald. – respondeu ao namorado, inclinando seu pescoço para o lado e um pouco para cima, visto a figura grande de Severo a sua frente, detestava o modo autoritário como o ruivo insistia em se portar diante dela – Você dorme demais, às vezes.
Uma onda de risos contidos pode ser ouvida dos espectadores que estavam na cozinha, no que voltaram imediatamente para os seus afazeres quando notaram a expressão carrancuda de Rony. Snape não resistiu, e deixou um pequeno e discreto sorriso esboçar seus lábios, enquanto voltava a disfarçar sua indiferença. De certo modo, gostava bastante de irritá-la. Era verdade que se importava com seus livros e com o fim que Hermione podia dar a eles, mas também não tinha motivos tão grandes para defendê-los tanto, a não ser provocá-la e instigá-la a querer se apossar deles cada vez mais. Alguns destes exemplares não eram lidos por ele há anos.
- Devolva esses livros de uma vez e vá tirar esse pijama, Hermione. – Rony dizia, chegando ao fim da escada.
- Nem à força... – foi tudo o que disse, antes de tentar enfrentar a barreira que o corpo de Snape fazia entre ela e o caminho da saída, esquecendo-se de dedicar uma réplica à ordem desnecessária de seu namorado.
No instante em que se moveu, Snape foi mais rápido e a enlaçou com seus braços, através de suas costas. Conseguiu prendê-la entre seu peito e girá-la tão bruscamente que os cabelos de Hermione giraram em igual intensidade em torno de sua cabeça, ricocheteando-o no rosto. Teria sido engraçado, se de repente a respiração dela não tivesse se tornado ofegante, como quando descera as escadas correndo. Não conseguiu encará-lo, mas se tivesse feito ele notavelmente veria uma faísca de constrangimento em suas íris.
Mesmo seu corpo estando tão próximo ao dele, conseguiu manter os livros que carregava ainda firmes contra seu peito, dividindo o espaço agora com o corpo bastante imponente de seu ex-professor. Nunca tinha estado tão próxima, e podia sentir o calor subir da ponta de seus dedos dos pés até as pontas de suas orelhas, quentes agora.
- Não duvide de que posso invadir a biblioteca de seu laboratório a qualquer momento e saquear seus livros, Granger. – disse num tom ainda mais baixo que da última vez que estivera bastante próxima dela – Tenho certeza de que vai defendê-los tão bem quanto estou defendendo os meus, agora.
Sem saber o que responder, indecisa ao abrir a boca e não conseguir emitir som algum, apenas piscou uma vez mais antes de sentir um puxão forte através de seus braços, um gritinho agudo de surpresa escorregar para fora de seus lábios e se dar conta de que os livros haviam sido tirados à força de suas mãos, um tanto brusco. O ato acabou deixando um vazio entre eles, que rapidamente foi preenchido por uma maior aproximação quando, automaticamente, sentiu seu corpo colidir de encontro ao peito de Snape, tendo o contato amortecido pelas vestes de inverno que ele usava.
Alguns segundos foram necessários para que ambos processassem que não havia mais barreira alguma que separassem seus corpos, ao tempo em que ele soltava-a do aperto de seu outro braço. Com o ato, foi levemente arremessada para trás, cambaleando uma vez apenas antes de firmar seu equilíbrio. Foi então que conseguiu fitá-lo, e notou apenas uma fina barreira indescritível. Não sabia se ele sentia raiva, ou se sentia diversão.
Permaneceu ainda na mesma posição mesmo quando ele lhe deu as costas e subiu as escadas, passando por Rony com os livros em mãos. Não trocou nenhum olhar com o ruivo, negando-se a deixar transparecer o quanto ficara desconcertado com a proximidade não planejada com sua ex-aluna. Brilhante ex-aluna, lembrou seu inconsciente.
Em poucos instantes, Ronald já estava ao lado dela, e a chacoalhava pelos ombros em uma clara demonstração de ciúme, enquanto Hermione ainda tentava relembrar como deveria voltar a respirar ou como fazia para que qualquer som deixasse as profundezas da sua garganta.
- O que foi aquilo? Diga, Hermione!
- Do que você está falando, Rony? – tentou soltá-lo, sem sucesso.
- Não me faça de tolo, Hermione. – disse, aproximando sua face da dela e preenchendo a palma de suas mãos com as laterais de sua nuca, forçando-a a permanecer no mesmo lugar sem desviar o olhar – Se eu souber de alguma coisa, Hermione... Qualquer coisa desagradável sobre esse comensal estúpido, eu acabo com a graça dele em um instante. Está me ouvindo?
- Ele não é um comensal, não mais Ronald. – parecia ter sentido um choque percorrendo seus membros, na simples menção de uma comparação do Severo Snape que conhecia, com aquele mestre de poções sombrio e misterioso que diversas vezes, em épocas escolares, assombrara seus sonhos, sempre em busca de uma razão que desse a ele aquela postura tão defensiva quando estava diante dela.
- Você me entendeu, não foi? – ressaltou, puxando-a com um pouco mais de violência – Porque a ultima coisa que a Ordem quer são mais escândalos.
Dizendo isto, pressionou seus lábios contra os dela, possessivamente, pedindo a passagem de sua língua para dentro sem nenhum pudor, agredindo-a de forma extremamente lasciva. Hermione não gostava de ser beijada daquela forma, porque tinha sempre a certeza de que ele fazia assim apenas para demonstrar que aquele era um território ganho, quando na verdade estava longe de ser.
Era engraçado como as coisas podiam mudar, ao simples toque de um corpo, ao simples toque de uma língua em um beijo visivelmente forçado. Em um instante tinha os livros de Snape em suas mãos, como uma verdadeira conquista, e no instante seguinte estava tão perto do homem que podia ter certeza que havia notado que ele não fizera a barba naquela manhã, o que remetia seus pensamentos, inconscientemente, para os aposentos que ele ocupava, no final do mesmo corredor que os aposentos dela, e com que roupas ele teria ido se deitar na noite anterior, ou o que podia tê-lo feito negligenciar aquele cuidado com sua pele, que ela sabia que era um cuidado excessivo, uma vez que nunca o vira com qualquer rastro de pelos no rosto... Eram pensamentos desconexos, e impróprios para uma mulher comprometida, que podiam soar como uma estranha intromissão à vida alheia de seu ex-professor, e deixar dúvidas sobre a origem dessas curiosidades. E então, no instante seguinte, já não tinha mais sua conquista entre as mãos, e nem se quer se dera ao luxo de lamentar a perda dos livros, tamanho seu interesse pelo quão forte podiam ser aqueles braços, em torno de suas costas, levemente rijos pelo contato. E, então, passou por sua cabeça formas de poder experimentar tal rigidez novamente. Era insano, e ao mesmo tempo surpreendente...
Na cozinha, enquanto cortava as folhas que Tonks trouxera do canteiro no jardim, Molly reclamava para um pequeno quadro que costumava ficar sobre a mesa de refeições. Retratava uma ceia incrivelmente farta de frutas e vinho, e agora tinha nela, também, a figura firme de um homem velho com barbas brancas e compridas.
- Por Merlim, Alvo, faça alguma coisa para apaziguar os ânimos nessa casa. Em plena véspera de Natal e não temos uma única trégua nas discussões.
- O que espera que eu faça, querida Molly? – respondia Dumbledore, provando de uma uva tirada do cacho – Eu nem posso mais usar magia, nessa condição.
- Oh, Dumbledore. Perdoe-me pela inconveniência. Apenas dê algum conselho para esses cabeças de vento...
E então o ex-diretor percebeu que havia outros na cozinha, em um trabalho em conjunto para preparar as comidas que seriam servidas mais tarde. Sorriu agradavelmente para todos, na medida em que era retribuído.
Talvez sim... Talvez tivesse um bom conselho para dar...
Continua...
N/A: Olá. Apenas uma consideração: eu queria escrever alguma coisa pós guerra que envolvesse a Ordem. Então foi nisso que pensei, considerando que Snape não morrera na guerra, nem Tonks.
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