Sob as névoas da guerra

Sob as névoas da guerra



Ah minha nossa, o que vamos fazer?O que vamos fazer?Por Merlim, vou morrer, estou morrendo, não sinto as minhas pernas...Socorro!Socorro!Soc...

-Pare com isso Tiago, que eu já estou uma pilha de nervos aqui sem os seus chiliques!

-Oh, mas ela vai me matar!Vai matar, matar, matar!

-Pare, ela vai te ouvir!

-Está chegando cada vez mais perto!Eu sinto isso na minha alma!

Ohh...vou morrer, estou morrendo...estou morto!

CAPOF!!!

-Sirius!O Tiago desmaiou!Me ajude!

-Acuuuuuuuuuuuuudam!!Chamem a ambulância!

-Remo, mete uma panelada no Rabicho enquanto eu arrasto o Tiago pra dentro da despensa!

-O que?

-Vem comigo, depressa!!

Sirius enroscou as mãos nos braços pendentes e moles de um desacordado Pontas, que acabara desabando sem forças no chão após uma convulsão alarmada graças ao seu deprimente destino. Remo tapou a boca de Rabicho (que choramingava numa angústia fúnebre) e o arrastou até o armário de vassouras, panos, baldes, panelas, tigelas, potes e de outras bugigangas domésticas, trancando-se no interior de acordo com as ordens dadas por Sirius.Tiago foi socado lá dentro também, obrigando os outros á se encolherem desconfortavelmente.

Passos de início alegres e agora lentos soavam do lado de fora. Uma luz se acendera...um espasmo de horror sufocou uma garganta feminina. Uma varinha despencou no chão, provavelmente deslizando dos dedos inertes da incrivelmente estupefata senhora Potter.

-Mmmmfff!-protestava Pedro, ainda impedido de falar pela mão firme de Remo em sua boca:

-Quieto!-chiou Sirius, chutando a canela do gordinho.

Os rapazes mal se enxergavam naquela penumbra; visualizavam apenas silhuetas de objetos e de si mesmos graças à faixa de luz que projetava-se na abertura das portas do armário, que continuava levemente encostado.

-Ohhh...-Tiago mostrava sinais de consciência, o que chamou a atenção de Sirius: antes que ele se soerguesse (ainda massageando a cabeça, ajeitando os óculos no nariz e piscando os olhos embaçados) o canino levou a mão aos lábios:

-Shhhh!

-Estou cego!-balbuciou Tiago, agora com as pálpebras arregaladas- Eu acordei e ainda estou no escuro!Oh Almofadinhas, a queda matou minha visão!-ele tateou desesperadamente á sua volta em busca do braço de Sirius, que lhe murmurou um pouco impaciente:

-Você não está cego, cabeçudo! Nós é que estamos no escuro!

-E porque?

-Porque sua mãe está...

-MINHA COZINHA!!!-um urro monstruoso ecoou do ambiente iluminado do lado de fora, o que fez os marotos se sobressaltarem dentro da despensa.- AQUELES BASTARDOS!!- Judy Potter parecia ter despertado de um transe, pois apesar do timbre dantesco sua voz assemelhava-se á algo retirado de um sonho.Sua reação podia ter demorado, mas afinal acabou por vir, e descontroladamente! A mulher marchava de um canto para o outro, analisando o tamanho do estrago, mastigando seu ódio, aspirando vingança.-Vou matá-los... todos eles; mata-los! Irei enforcar um, afogar outro, queimar e esquartejar os restantes... Não, não, melhor! Irei castra-los á sangue frio! Sentirão a dor ao vivo... depois irei esfola-los! Vou lhes arrancar o coro, virá-los do avesso!

Ela ia arquitetando maquiavelicamente as suas punições para tamanha desgraça, mesmo sabendo que um simples movimento de sua varinha poria tudo em ordem novamente. Queria mesmo é que eles sentissem o gosto da autoridade que ela deveria exercer. Queria lhes mostrar o preço que pagavam pela desobediência, coisa que deveria ter lhes mostrado á muito tempo atrás...

-TIAGO POTTER!!-trovejou ela, enchendo os pulmões mais alguns milímetros.- APAREÇA NESSE EXATO MOMENTO, SEU DIABINHO ENCARNADO!

-Nem fudendo!-murmurou o rapaz, sentando-se sobre um saco de farinha. Ele podia sentir a respiração quente de Sirius ao seu lado, a compassada de Remo á sua frente e a engasgada, afobada e descontrolada de Rabicho, que estava entre os braços de Lupin.

-SIRIUS!-continuava a mãe adotiva do rapaz, mirando cada ponto de sua cozinha com olhos que cintilavam ferozmente por detrás dos óculos de aros retangulares-SAIA DE ONDE ESTIVER E TRAGA O CRETINO DO MEU FILHO COM VOCÊ!DIGA PARA ELE QUE SE NÃO APARECER AGORA EU VOU ESCREVER UMA CARTA PRAQUELA LILY EVANS CONTANDO TUDO SOBRE O URSINHO TED!

Tiago trocou um olhar de pânico com Sirius ao ouvir a cruel ameaça:

-Ela não faria isso!

Ted, mais comumente chamado de Ursinho Ted, era um bichinho de pelúcia mais surrado do que o tempo. Tiago ganhara este brinquedo fofo e peludo aos quatro anos de idade de sua avó paterna, selando um laço de fidelidade com o bonequinho e uma ponte com sua infância. Mesmo adolescente, mesmo orgulhoso, esnobe, metido, arrogante, charlatão, prepotente, teimoso e popular, mesmo crescido fisicamente e apodrecido

psicologicamente, Tiago não abrira mão do urso. Sorrateiramente, todas as noites, ele o puxava para fora do malão e adormecia com o bicho nos braços fortes, sorrindo ligeiramente. Uma tia de Tiago, comovida por aquela apegação, tricotou para o ursinho uma mini camiseta com o time de Quadribol preferido do rapaz: o Pudlemere United, o que só fez aumentar aquela estranha afeição que o maroto mantinha com o inconveniente brinquedo.

-Estou falando sério!- a mãe de Tiago soou quase que triunfante agora, pois apesar de não ver o filho podia e conseguia sentir a angústia que pairava no ar da cozinha, emanando do peito de Tiago.-Vou pegar o Ted agora mesmo, mocinho!

-Calma Pontas!-Sirius prendeu o braço de Tiago, que se mexia desconfortavelmente- Ela está blefando!

Mas a mulher tele-transportou Ted do quarto dos rapazes até as suas mãos, fazendo Tiago conter um rosnado e Remo um sorriso:

-Ele é meu prizioneiro agora!-anunciou ela, puxando a costura de um dos bracinhos fofos do ursinho-Vou desmembrá-lo aqui e agora! Dou-lhe uma...- ela apertou entre as unhas longas o bicho de pelúcia, que parecia suplicar que o salvassem pelo olhar daqueles olhinhos pretos de bolinha de gude- Dou-lhe duas...- Judy começou a insinuar um puxão no bracinho de Ted.-Dou-lhe três!!

-NÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO!!!

Para total revolta dos amigos, Tiago irrompeu do armário tomado de um descontrolado pânico: em questão de segundos agarrou o refém e o acalentou de modo paternal entre seu avental, que desprendeu para usar como um cobertorzinho de bebê. Sua mãe fitou-o triunfantemente:

-Te peguei!!- e laçou-o antes que ele pudesse escapar, friccionando sua orelha entre os dedos que antes ameaçavam Ted- Mobiliarmos!! –ela apontou com a outra mão.

Antes que Siriu pudesse sair correndo, a mágica que emanou da varinha da senhora Potter o trouxe para perto de modo forçado: ele tentava empacar, tentava resistir, mas o feitiço luminoso aplicava uma força invencível sobre ele.

Pedro foi tomado por horror. Livrou-se de Remo com uma mordida em sua mão, transfigurou-se em Rabicho num piscar de olhos e saiu desabalado pelo chão da cozinha, zunindo na direção da porta e tendo de passar por debaixo das pernas da mulher em seu caminho:

-Ohh!!- aquele momento de horror custou caro para Judy: mal ela soltou a orelha de Tiago e a varinha que enfeitiçava Sirius (para que pudesse levar as mãos á boca) os rapazes se viram livres para se unir á Pedro naquela fuga. Remo abandonou a despensa extasiado: fitava uma bruxa que urrava “RATO!!NOJENTO!!RATO!”, um Rabicho que arranhava a porta fechada da cozinha, um Sirius que na correria acabou escorregando nas batatas e um Tiago que terminou tropeçando sobre ele.

-Mate-o, Lupin!!- Judy agarrou uma de suas vassouras para lançá-la nas mãos de Remo, como alguém que entrega uma espingarda á um caçador.-Acerte ele!!Oh, aqueles moleques emporcalharam tanto a minha cozinha que já tenho até ratos!RATOS!!AHHHHHHHHHHHH!!!

Não muito longe dali, na sala de estar mais luxuosa e confortável dentre todas as casas da vizinhança, o fogo se atiçava na lareira. Suas chamas lambiam o mármore escuro e as paredes empestadas por fuligem, de onde surgiu Henry Potter. O homem livrou-se de seu meio de transporte o mais rápido que pôde, praguejando para si mesmo, limpando os cabelos negros de todo aquele carvão indesejado, pousando sua maleta de trabalho, quando alguns sons inusitados ecoaram da cozinha:

Crashhh!!!Squiiick!Ahhhh!!Plof!!!CABLAM!

O bruxo sacou a varinha do bolso imediatamente: “Ladrões!” quando um segundo pensamento (desta vez mais preocupado) emergiu em sua mente:

-Essa não!Os meninos!

O senhor Potter percorreu seu caminho em passos largos, tentando alcançar a cozinha com a mesma pressa que teria se tivesse esquecido o gás aceso: estancou na porta, estupefato.

Sua mulher dividia-se entre cuidados jeitosos para com sua cozinha (que estava um caos dos infernos) e entre gritar histericamente para que os adolescentes dessem conta de um rato cinza e gordo, que arfava em meio á sua carreira angustiada. Mais algumas louças foram sacrificadas naquela desordem, tornando o ambiente-se possível- ainda mais forrado por cacos e destruição...um vendaval não teria feito maior estrago.

Sirius voou para agarrar Rabicho antes que a vassoura de sua quase mãe o acertasse com um golpe fatal; a mulher acabou rodopiando e esmurrando o estômago do próprio marido, que mal entrara e já se punha de joelhos no chão, bufando. Remo correu para socorrer o homem, enquanto Tiago resgatava Pedro das mãos de Sirius (pois lá ele se debatia, guinchava feito um porquinho, arranhava e mordia) para enfia-lo no bolso:

-Matei o rato, mãe.-mentiu o rapaz em tom apaziguador.-Está contente?

Os Potter se entreolharam (um apoiado em Remo, a outra aproando os óculos que escorregavam no nariz). Silêncio por alguns segundos.

-Contente?-por fim repetiu a mulher. Sua voz soava desafiadora além de desdenhosa, acompanhada por um sinistro tom suave.-Contente!!-aquela palavra foi quase cuspida.

Henry levou as mãos para massagear as têmporas, que latejavam. Remo se afastou dos adultos receoso, indo unir-se aos amigos.Mal podiam se encarar.

-Saiam.-a voz de Judy soprou sem aviso, ameaçadora.

-Mas nós estamos famintos!-protestou Tiago, tentando receber o apoio de Sirius com um olhar perturbado.

-Saiam.-ela repetiu mais intensamente, ainda sem erguer os olhos flamejantes para os causadores da destruição.

-Mas...

-AGORA!!

Remo fez um para sair empurrando Tiago na direção da saída, quando surpreendentemente, inexplicavelmente, a fúria da Senhora Potter abandonou todos os traços de seu rosto,que descontraiu-se num sorriso quase amável:

-Voltem!

Os três se entreolharam; o rato dentro do bolso de Tiago coçou as imensas orelhas para se assegurar de que ouvira direito.

-Voltem...venham,queridos!- Judy agora assemelhava-se muito a uma mulher açucarada,amorosa e carente, gesticulando suas mãos delicadas em busca de um abraço de sua prole. Os marotos se entreolharam:

-É doida.-sussurrou Sirius.- Completamente insana...está delirando.

-Vamos correr!-sugeriu Remo.

-Cada um por si!-acrescentou Tiago.

Mas mal os garotos terminaram de arquitetar uma fuga indiscreta e desenfreada, a bruxa e seu marido já começavam a abandonar de vez todo o mal-humor, stress e raiva inicial causado pela demolição da cozinha. Fitando-os minuciosamente, o casal Potter não pôde conter risadinhas que logo tornaram-se gargalhadas:

-Posso saber qual é a graça?- Tiago virou-se para os pais visivelmente embaraçado. Sirius cruzara os braços em tom desafiador, enquanto que Remo os observava passado, como alguém que observa fugitivos de um hospício:

-Oh garotos!-ofegou a mulher, pousando a mão no peito arfante- Vocês estão tão bonitinhos com esses aventais!Eu só reparei agora!

Tiago, Sirius e Remo trocaram olhares pálidos: o primeiro começou desesperadamente a se desembaraçar dos cordões de seu avental; o segundo assumiu um semblante horrorizado e continuou assim, estático, petrificado com a lembrança do pano que pendia ao redor de sua cintura...o último corou até a alma.

Os adultos tentavam conter o espanto, sem sucesso:

-Garotos!- Judy Potter agora encarava a situação muito mais como algo agradavelmente divertido do que como uma catástrofe sem precedentes.-Eu devia era estar pendurando vocês no teto pelas orelhas, mas...-e ela parou para observar os rapazes em seus trajes afeminados, completamente desconcertados (Sirius entrando em pânico já que não conseguia livrar-se do avental, diferente de Tiago, que lançava o seu pelos ares).- mas vocês estão tão engraçadinhos que eu...

-Engraçadinhos?!-ofegou o senhor Potter, suando frio.-Está louca? Isto é o maior desgosto de toda a minha vida!Fui desonrado! Tiago não é mais meu filho, oh, e o Sirius então?Acho que vou manda-los para um colégio interno...

-Pai, nós já estamos num colégio interno.-resmungou Tiago, se possível ainda mais vexado com a situação.-Foi o Remo que me obrigou a usar essa porcaria!

-Cala a boca!-Lupin tremia enquanto lançava um olhar fulminante para Pontas, sem vontade alguma de assumir as rédeas da situação. O casal Potter trocou um segundo olhar ainda mais descontraído:

-Tudo bem querido, não estou mais nervosa. Deveria estar,mas não estou.- Judy estava impressionada com a capacidade que tinha de ser volátil daquela maneira: em um segundo a cólera encarnara em suas veias e no segundo seguinte a zombaria e deleite pareciam relaxar sua alma sofregadamente...e tudo graças á visão cômica dos aventais.-Eu não consigo ficar brava com vocês, seus palhaços!

-Eu consigo sentir vergonha.- retalhou o pai de Tiago,ocupando-se em não olhar o trio,mas sim em procurar sua varinha a fim de resgatar sua estimada cozinha.-Agora, alguém vá chamar o Pedro-que deve ter fugido com o acesso da Judy- para que possamos comer!

Subitamente, as feições dos marotos se iluminaram:

-Vamos comer?!Comer o que?!-empolgou-se Sirius, quase empurrando Remo para o outro lado da cozinha ao passar por ele. Judy Potter,lançando então um rápido olhar para além da janela aberta da cozinha,por onde tamborilava e escorria água, sorriu:

-Bolinhos de chuva!







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