O CLAMOR DO SANGUE
– Finite encatatem – disse Bill, apontando a varinha entre os olhos da mulher. Ela os abriu subitamente e o encarou espantada. – Acabou, Janine. Você está livre.
Ele não estava preparado para a reação que se seguiu. Ela não pareceu reconhece-lo, mas assim que viu Fleur começou a gritar em francês, pondo as mãos diante do rosto, como que tentando proteger-se. Bill instintivamente virou-se para Fleur apontando a varinha e ficou surpreso com a calma em seu rosto. Ela disse suavemente para a mulher:
– Calme. Je sais que vous pensez que je suis celle qui vous a attrapé et a laissé-vous comme ça, mais je ne suis pas elle!
A mulher então pareceu finalmente enxerga-la melhor e caiu num silêncio perplexo. Bill perguntou:
– O que houve? O que ela estava duzendo?
– Ela acha que eu sou outra pessoa. Eu a fiz ver que, embora parecidas, não somos.
– De quem ela está falando? – ele perguntou e Fleur não responde preferindo perguntar diretamente a Janine sem falar em francês, para que ele entendesse:
– Diga, Janine: foi uma mulher muito parecida comigo que te trouxe aqui? Ela te prendeu aqui?
– S-sim... – Janine respondeu com dificuldade – desculpe... eu... ela só falava em francês comigo, creio que perdi a noção de... agora eu vejo que você é parecida com ela mas não é ela... n'ést pas elle.... quem são vocês?
– Nós viemos ver quem havia ligado a sirene – disse Bill. – a sirene de alarme.
– Fui eu. – ela disse – ela me manteve presa muito tempo aqui... mas nos últimos dias eu acho que comecei a lutar contra a maldição imperius, principalmente quando ela disse que estava chegando a hora de livrar-se de mim. Achei que se eu conseguisse... que se eu soasse o alarme alguém apareceria... meu medo era que elle voltasse.
Bill já havia chegado à conclusão que expôs e disse de forma calma, porém reflexiva:
– Então... a Janine do acampamento é uma impostora. Ela manteve você aqui... E ela é parecida com Fleur
Bill subitamente lembrou-se de uma noite, meses atrás. Viu a cabeleira longa soltando-se de um capuz, lembrou-se da comensal que ele julgou, de costas e no escuro, ser a própria Fleur. Com um choque, lembrou-se de outro episódio, mais recente. Percebeu finalmente que naquela noite ele não vira de fato o rosto de Fleur, não à luz suficiente para ver sua fisionomia e ela parecera a ele de alguma forma diferente, mas ele havia sido enganado pela sua própria percepção. Ele olhou então para Fleur chocado e ela, como se adivinhasse o seu pensamento, respondeu, com os olhos brilhando, úmidos de lágrimas :
– Sim, eu sei quem ela é. Ela é uma comensal da morte e é muito parecida comigo. Tem ódio mortal de mim, por que estive na África passando-me por ela há pouco mais de um ano atrás, e estraguei seus planos interceptando os pergaminhos cheios de segredos ancestrais de fórmulas de imortalidade, que ela havia comprado de um ladrão de tumbas para tentar conquistar a graça de... de seu mestre para conseguir a sua confiança. Nós duas somos fisicamente muito parecidas, embora ela seja seis anos mais velha. Seu nome é Angèlique e ela é minha irmã.
***
– Não precisa mais fingir – disse Charlie às costas da impostora – eu sei que você não é Janine. E sei quem você é, Angèlique Delacour – Ele deu a volta e a encarou. – eu só me pergunto como demorei tanto tempo para perceber que havia uma impostora na casa ao lado– ele disse assim que os olhos de ambos se encontraram.
Realmente, ela tinha o rosto de Janine, mas, agora, com uma expressão de desdém estampada nele, parecia estar usando uma máscara grotesca, uma vez que ele jamais vira tal expressão no rosto de sua amiga. Ela começou a rir. Rir e falar eram as únicas coisas que podia fazer com os membros paralisados pelo feitiço.
– Por que não me petrificou nem estuporou?
– Por que eu realmente queria ouvir a sua explicação e precisava de você consciente e capaz de falar. O que você tem a me dizer? Há quanto tempo você engana a todos nós? E o que você fez com...
– Não se preocupe, chefe... sua amiga nesse momento deve estar contando à minha querida irmã tudo que eu fiz a ela. Não podia livrar-me dela enquanto precisava da sua aparência... sabia que poção polissuco só funciona com pessoas vivas? Se eu a tivesse matado não poderia nunca passar-me por ela.
– Fleur contou-me o tipo de coisa da qual você é capaz.
– Fleur não tem idéia de como sou realmente! Quando fomos separadas ela nem sabia falar e nunca mais viu a minha cara, coisa que realmente não me chateia nem um pouco.
– Mas você parece ter escolhido o lado que mais a agradava.
– Charles Weasley, não me olhe como se sua família fosse muito melhor que a minha – um sorriso ainda mais cínico brotou no rosto dela – você não sabe tudo que seu irmão é capaz de fazer... você não sabe que ele é capaz de trair um irmão para passar uma noite com Fleur...
– Do que você está falando, víbora?
– Espere ele contar a você o que aconteceu duas noites atrás... na véspara de seu ato heróico para salvar o irmãozinho indefeso ele não teve pena de deitar-se com aquela que ele acreditava ser a mulher que dorme contigo todas as noites.
– Isso é mentira sua... ele não...
– Ele não seria capaz? Posso te garantir que seria... eu dei esse bônus para minha irmã: ela passou-se por mim no Marrocos e quase acabou com a minha vida, embora não sejamos exatamente gêmeas idênticas. Eu apenas devolvi o presente para estragar sua imaculada imagem com os dois homens que ela pensa que ama... eu esperava que seu irmão te contasse que dormiu com ela e ela negasse. Mas ficou quietinho... remorso, talvez. Mas você é muito idiota se acredita que alguém com sangue de veela pode realmente amar alguém.
– Você é um monstro, Angèlique.
– Essa é a versão da minha irmã. Ela não disse que eu e meu pai fomos escorraçados da casa onde ela cresceu livre e resguardada. Ela não disse que nossa mãezinha colocou a mim e meu pai ara fora de casa. E eu tinha apenas nove anos.
– Ela disse que seu pai abandonou a família e levou você. E que recentemente você se vingou, contaminando Gabrielle e sua mãe com uma doença terrível.
– Ela não lembra dos gritos da minha mãe dizendo que odiava meu pai. No meio da noite, minha mãe disse a ele que me levasse, afinal, Fleur era a sua filha preferida. Eu lembro de tudo. Minha mãe odiou o meu pai desde o momento em que ele revelou que odiava trouxas... O ódio dele está incutido em mim, por que sei que ele tinha razão, ao contrário de Fleur eu nunca quis apagar a marca das trevas com a qual nosso pai nos consagrou. Eu lembro dos anos difíceis que nós dois passamos fugindo. Sempre alguém o denunciava, queriam tirar-me de meu pai. Mas fui fiel a ele até a sua morte. Então tornei-me ainda mais fiel àquilo em que ele acreditava.
– E isso foi a sua ruína – disse Charlie, dando um passo à frente e tirando dos bolsos dela as amostras de sangue e a varinha – Alguém deveria ter tratado a sua cabeça quando você era menina, para que não crescesse tão desequilibrada. Mas acabou para você, vamos pedir ajuda e logo os aurores estarão aqui para leva-la.
– Eu acho que você não sabe quantas vezes eu escapei de prisões. Você não sabe do que eu sou realmente capaz, Charles Weasley.
– Imobilizada você não parece muito perigosa...
Ela não pareceu perder sequer uma grama da sua irritante autoconfiança. Repentinamente, Charlie deu um passo para trás: diante de seus olhos a aparência dela começou a mudar, a poção polissuco começara a perder seu efeito.Os cabelos clarearam e cresceram: eram da mesma cor e comprimento dos de Fleur, seu corpo afinou e ela tornou-se mais alta. O rosto era mais bonito ainda que o da irmã, as sobrancelhas arqueadas sobre dois olhos enormes e azuis, um nariz curto e gracioso, lábios mais finos e delicados. Havia nela um certo ar aristocrático que a outra também tinha: realmente quem visse a primeira longe da segunda seria capaz de confundi-las, o que explicava a história de uma passando-se pela outra.
E por mais custoso que fosse para ele admitir, agora não conseguia tirar os olhos daquele rosto. O olhar dela o envolvia de forma sedutora e ele piscou com dificuldade, fazendo com que ela alargasse seu sorriso. Deu um passo para trás a um custo quase doloroso. Livre da aparência de Janine e exercendo plenamente seus poderes de veela – que pareciam tão ou mais fortes que os de Fleur – ela era perigosa e potencialmente letal. Ele achara a comparação perfeita para ela: era uma víbora, só que de olhos azuis e pele macia.
– Sabe o que é engraçado? – ela disse em tom absolutamente casual – a poção polissuco não me empresta só a aparência de Janine... ela rouba meus poderes, os esconde sob aquela carcaça feiosa. Mas eles ainda estão ali, em grau bem menor, por isso consegui convencer a todos que eu era absolutamente inofensiva. Por isso que você nem questionava as decisões que eu tomava. Mas eu camuflei meus poderes ainda mais quando vi minha irmã aqui, por que tive certeza que ela estava atrás de mim. E sabia que alguém com sotaque francês seria a primeira pessoa de quem ela suspeitaria. Foi por isso que tracei meu plano B: joguei a estúpida da Cho, que estava ficando caidinha por você, contra ela.
– Eu achava que distraindo vocês com isso eu teria paz... mas aí seu irmão intrometido chegou, e eu sabia que ele gostava de brincar de herói e que tinha certa imunidade a poderes de veela, coisa que você não tem, ele quase me pegou um tempo atrás num esconderijo que foi invadido pela turminha daquele maldito Dumbledore, um segundo fracasso seguido para mim, isso quase me custou a vida. Eu me interessaria por ele, que consegue resistir bem mais à minha irmã que você, que logo caiu por ela... o mais engraçado foi ver você acreditar que estava apaixonado de verdade. Lembra das minhas pílulas? Todos tomaram a medicação certa, menos você. Me interessava demais um chefe de acampamento estupidificado por uma paixão idiota – a voz da mulher era rouca e sensual, mais envolvente que qualquer uma que Charlie já tivesse ouvido, por mais que tudo que ela dissesse fosse repulsivo. Ela não tirava os olhos dele quando falava e, aos poucos, ele foi perdendo a noção do que ela dizia, só não queria que ela parasse de falar. Percebendo isso, a mulher um um sorriso satisfeito e completou: – viu, meu querido? Eu disse que você estava me subestimando...
***
No antigo acampamento, Fleur e Bill conduziam Janine, debilitada por meses de confinamento forçado, com alguma dificuldade na direção da trilha que levava ao campo de aparatação. Bill tentava raciocinar, mas tudo parecia carecer de algum elo que escapava à sua compreensão. Tentava combinar os fatos em sua mente, até que conseguiu perceber a questão que precisava formular para responder sua maior dúvida:
– Janine – ele disse, voltando seu rosto para a mulher que seguia amparada entre ele e Fleur – eu sei que sua mente está confusa, que você passou por algo terrível, mas preciso que você me responda. Como uma impostora conseguia vir aqui, alimentá-la, pegar seu cabelo para a poção... os acampamentos são muito distantes e mesmo que ela aparate... era impossível não notar sua falta, ela teria de andar no meio da mata...
– Ela tinha uma chave de portal – disse Janine – eu a vi mais de uma vez aparecer direto na minha frente, segurando um objeto pequeno, uma corrente com um dente de dragão.
– Eu a vi com esse dente de dragão no pescoço – murmurou Fleur – ela usa um colar com dois... serão duas chaves de portal?
– Isso não podemos saber ainda... pode ser uma chave de portal para algum lugar distante – concluiu Bill. Mas algo ainda me intriga, Janine: essa mulher, Angèlique, ela lhe disse o que queria roubar do acampamento?
– Ela falava pouco comigo, sempre em tom de ameaça. Mas pela época que chegou, acredito que tenha vindo por causa do sangue de dragão...
– Eu sei que ela estava atrás de sangue de dragão. Isso deu para perceber... mas ela tinha acesso total às amostras, não precisava ter ficado tanto tempo aqui. A coleta já estava quase no fim, ela podia perfeitamente ter roubado as amostras e sumido logo depois do início da coleta, seria até mais fácil fugir quando todos estão mobilizados nisso. Não acredito que ela quisesse apenas “participar do processo”, entende?
– A não ser – disse Fleur – que ela não quisesse sangue de dragão, ou não quisesse apenas isso.
– Eu conheço os doze usos – disse Gui– sei que eles poderiam beneficiar-se de alguns deles... mas acho que não é apenas um caso de cura. Eles querem restaurar todo o poder de...
– Há algo que pode ser mais útil – disse Janine baixando a cabeça – O coração de um dragão macho, arrancado dele vivo ainda. É um material usado em muitos feitiços de magia negra. Mas não vejo como conseguiriam... o coração de um dragão inteiro, em boas condições... é algo muito difícil de se conseguir.
– A não ser que ele seja jovem e indefeso, é realmente muito difícil abater um dragão... – disse Fleu, com a voz trêmula.
– Mas a ninhada...
– Há uma ninhada de dragões no acampamento? – perguntou Janine, abismada.
– Havia... salvamos os ovos de um ataque de comensais da morte... claro. Eles mataram a mãe não querendo seu sangue, como supomos, mas seus ovos. Como fracassaram, ela deve ter assumido a missão. É bem o estilo dela, querer dar conta de tudo.
– Mas esses dragões têm três meses – disse Bill. – ainda assim ela já poderia...
– Três meses? – perguntou Janine – antes dos três meses os dragões não tem espécie alguma de dismorfismo sexual. Aos três meses a patela supra-esterna começa a desenvolver-se nos machos, depois vêm outros sinais mais significativos, mas esse é o primeiro.
– Patela o quê?
– Supra-esterna… uma espécie de unha voltada para baixo, não venenosa, fica na articulação da asa, na parte interna. Nas fêmeas ela é curta e arredondada. Nos machos é comprida, começando a desenvolver-se logo que eles completam de três meses, mas apenas em observação atenta e aproximada se pode distingüir...
Fleur repentinamente pareceu chocada:
– Eu e ela havíamos combinado examiná-los logo após a coleta. Íamos distinguir os machos das fêmas...
– Então... – disse Bill – ela ainda não sabe...
– Claro que sabe – disse Fleur – com o acidente eles ficaram inconscientes e pudemos ver que sobreviveram dois, um macho e uma fêmea.
– Essa não – disse Bill – ela nem se importou por nós estarmos vindo descobrir o que estava acontecendo por isso: antes que pudermos voltar ela vai fugir! Pode até já ter fugido!
– Corra na frente. Eu e Janine ficamos para trás!
Bill sequer respondeu, já estava correndo trilha afora, para o ponto de aparatação. Sabia que naquele momento, Janine era a responsável pelo acampamento, qualquer ordem que desse seria obedecida. Ele precisava se apressar.
***
Angèlique corria, rebocando a garantia de vida que tinha, rumo à jaula dos dragões jovens. Agora seu tempo estava acabando, ela precisava estuporar um dragão e evitar que qualquer pessoa a seguisse. Cogitava matar Charlie assim que chegasse à jaula, ou assim que tivesse oportunidade. Ele a seguia com o olhar vazio, a mesma expressão morta que ela vira em tantos homens, que ela sabia que podia provocar. Só um não a olhara daquela forma, e era ele que representava a maior das ameaças para ela.
Viu a porta da jaula e respirou aliviada, de longe mesmo começou a lançar feitiços para conjurar correntes em torno dos dragões. Agora que não precisava mais fingir, não queria demonstrar carinho ou compaixão nenhuma pelos animais. Nada de veela song para eles. Ela só precisava do coração do macho, que agora estava ainda exausto, mas quando fosse sacrificado provavelmente estaria novamente pronto para ser mortífero, embora ainda jovem. Sabendo que estava segura, abriu a porta da jaula com a varinha, deixando que Charlie a seguisse. Só precisava tocar o dragão segurando a sua segunda chave de portal e estaria salva. Virou-se já fechando a porta, mas surpreendeu-se ao ver que alguém a segurava. Virou-se instintivamente para o importuno, apontando a varinha. Seu sangue gelou nas veias ao ver Bill apontando a varinha bem para o seu rosto, sem o mínimo sinal de hesitação.
– Você... – os olhos dela encararam os de Bill, que pela primeira vez a via sem disfarce e não parecia nem um pouco abalado por isso. Imunidade, um dom raro que permitira a ele se apaixonar autenticamente pela irmã dela e permitiria que ele lutasse com ela de igual para igual.
– Largue a varinha e não toque no seu colar – ele disse – você não tem como escapar.
– Eu tenho um refém, esqueceu?
– Antes que você aponte para ele, eu acabo com você.
Ela deu uma risada mórbida.
– Não tenho nada a perder.
– Acredite, você não é a única.
– Eu posso pedir qualquer coisa para Charles ... e ele fará, inclusive colocar-se entre mim e você.
– Não blefe, vagabunda.
– Venha, Charles ... seu irmão quer vê-lo. – ela falou suavemente, fazendo Charlie avançar para o irmão.
– Charlie, não. – disse Bill, desviando os olhos dela por um instante, encarando o olhar vazio do irmão, que vinha na sua direção com passos trôpegos.
– Converse com ele... vocês têm assuntos inacabados – disse Angèlique com uma rápida volta de corpo que colocou Charlie entre ela e Bill. Como a jaula não era muito grande, bastou um passo para que ela tocasse no dragão que ela marcara como o macho. Ela já ria quando puxou a corrente com a chave de portal de dentro do decote do vestido.
– Charlie! – Gritou Bill, tentando apontar a varinha entre os braços do irmão para atingir a mulher com um feitiço, qualquer feitiço, que pelo menos o tirasse daquele desespero.
Ela acabara de espalmar a mão sobre o flanco do dragão, segurando-o pela corrente conjurada e para usar a chave de portal quando o grito de Bill despertou Charlie. Virando-se para ela, que precisara largar a varinha para pegar a chave de portal, ele esticou ambos os braços, tentando detê-la. Bill deu um salto e o alcançou exatamente no instante em que Angèlique segurou entre os dedos o segundo dente de dragão de seu cordão, aquele que o levaria para longe dali. Os dois irmãos a seguraram na mesma hora e depois de um breve clarão, a jaula caiu num silêncio mortal, marcado apenas pelo som ritmado da respiração do dragão fêmea que restou ali, acorrentado e adormecido.
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