COMO AREIA ENTRE OS DEDOS
Conforme voltavam ao acampamento, Charlie ia refletindo sobre o irmão, e sobre tudo que havia acontecido naquela temporada. Era impossível para ele esconder que não sentia-se mais a vontade ao lado dele, não era mais como antes: Fleur estava entre os dois, Fleur estaria sempre entre os dois.
Ele queria acreditar que estava em vantagem, afinal era ele quem estava oficialmente com Fleur, mas sabia que não era assim. Sabia que Fleur sentia algo muito forte pelo seu irmão, e a cada dia que passava, ele tinha cada vez mais a impressão que este sentimento não morrera, e que ela apenas o reprimia para não magoá-lo.
Sentia-se injustiçado com isso, um rancor crescente à medida que o tempo ia passando: Fleur amava Bill de uma forma que jamais o amaria, no entanto, ele jamais desconfiara dela, ele enxergava o que sabia ser sua verdadeira essência, enquanto Bill a julgara pela simples presença de uma marca do passado em seu braço esquerdo.
Vinha discutindo com Janine sobre isso, e embora a amiga tentasse não expressar a sua opinião de forma direta, sabia que ela também achava que Fleur não o amava, que tinha por ele apenas talvez gratidão. E voar em silêncio ao lado do irmão cada vez mais constrangido ressuscitava em seus sua mente as palavras de Janine:
“Não que eles queiram te trair, Charles , mas pode simplesmente... acontecer.”
E se acontecesse? E se Fleur escapasse como areia por entre seus dedos, ele suportaria? Ele perdoaria o irmão se ao final daquela temporada na reserva ele a levasse embora? Tentava deixar a sua amargura não domina-lo, tentava pensar na coleta, na forma de assegurar que nenhuma amostra de sangue fosse roubada durante os próximos dias. Tentava se concentrar nas coisas que realmente deveriam ter importância, pois da segurança daquele sangue poderia depender a segurança do mundo bruxo conforme o conheciam. Tinha que ser forte. Tinha que contar com a colaboração do irmão para que nada pudesse ameaçar o trabalho e a reserva.
– Bill? – ele perguntou, já quando estavam próximos à reserva.
– O que foi? – respondeu o outro, e ele sentiu em sua voz uma estranha nota de culpa que parecia soar cada vez que o irmão se dirigia a ele
– Temos mais dois dias até terminar o trabalho de coleta. Preciso da sua ajuda mais que nunca para proteger as amostras de sangue... eu preparei um cofre reforçado no laboratório central, só eu e Janine temos a combinação, e é nele que as amostras e as anotações da análise de sangue vão ficar até o dia em que a turma do ministério vier buscar todo material.
– Ótimo.
– Eu não acho boa idéia você seguir a turma de coleta... acho que nos arriscamos à toa na missão de hoje.
Charlie sentiu Bill respirar aliviado.
– Você parece querer esse trabalho.
– Sabe, eu não creio que vocês estejam ameaçados durante a coleta de sangue. Na verdade, acho que o maior perigo está em terra. E já falei a você sobre ele.
– O que você quer insinuar?
– O que você imagina?
– Bill, você não está confundindo as coisas? Não acha que está... levando esta questão para o lado pessoal?
– Eu gostaria realmente que você tivesse verificado a história dela antes de acolhe-la... ela jamais me contou sobre a doença da mãe e da irmã.
– Inferno. Eu já disse que a doença é repentina, eu pesquisei sobre ela.
– E quem garante que ela não tenha pesquisado?
– Por que você acha que Fleur me trairia? Até agora ela só demonstrou que merece a minha confiança. Inclusive na sua presença.
Bill calou-se de forma estranha e foram em silêncio até o acampamento. Assim que pousaram, Charlie entregou ao irmão o papel com os números da combinação do cofre, em silêncio. Murmurou qualquer coisa, pedindo para que ele memorizasse a combinação e destruísse o pergaminho. Bill assentiu e virou-lhe as costas, indo na direção do próprio chalé. Charlie sentiu finalmente o alívio de poder livrar-se da sensação de constrangimento entre ele e o irmão. Mais que nunca, ele queria confiar em Fleur, e queria que tudo acabasse bem, para que Bill enxergasse que Fleur era confiável, ao mesmo tempo, torcia para que ela percebesse que Bill desconfiava dela, e que isso a afastasse dele de vez. Ele não queria pensar que nem sempre as coisas aconteciam de forma diferente da planejada.
Sentiu uma necessidade ainda maior de estar com Fleur. Correu para o laboratório onde ela e Janine estavam analisando as amostras. Entrou a passos largos, e a prendeu entre seus braços num beijo longo e apaixonado, quando ela virou-se para falar com ele. Janine, que anotava as conclusões da análise das amostras num pergaminho, sentada na bancada no fundo do laboratório, tinha a cabeça discretamente abaixada sobre suas anotações.
Fleur abriu os olhos intrigada, ele podia ver através deles que ela sabia da sua desconfiança; estava estampado na expressão atenta com a qual ela o encarou.
– Como foi a coleta?
– Normal. – ele disse – como sempre sinto uma fome devoradora... e gostaria de jantar à sós com você essa noite – sussurrou. Ela não concordou nem discordou. – queria me recolher assim que resolvesse o problema das análises com Janine. O que você acha?
– É uma boa idéia – ela disse, não parecendo muito entusiasmada, e novamente ele teve a sensação de estar perdendo a atenção e o amor dela, como areia escorrendo por entre os seus dedos. Tentou não pensar nisso e virou-se para Janine, dizendo em voz alta:
– Que tal darmos uma olhada nessas anotações? Seria bom comparar com as análises do ano passado, não acha?
– Não acha melhor fazer isso no fim de tudo? – disse Janine levantando os olhos das suas anotações, num tom de voz um pouco mais alto que o normal – assim você... não perca tempo com isso agora, Charles . Você tem coisas mais importantes para fazer, não acha?
Charlie riu. Janine sempre sabia o que ele queria, era uma amiga acima da média.
– Você tem razão, Janine. Você sempre tem razão. – ele disse, levando Fleur pela mão para seu chalé particular. No caminho pediu a Eddie que levasse o jantar deles diretamente ali. Quando saíram do laboratório, Janine os seguiu com os olhos, sorrindo. Logo levantou-se da cadeira e guardou cuidadosamente as suas anotações. Nesse momento, Bill entrou no laboratório. Ela o encarou intrigada.
– Quer alguma coisa? Já estou fechando o laboratório.
– Janine... você tem sido discreta sobre a combinação do cofre? Charlie me disse que só você e ele têm a combinação.
– Você pode ficar tranqüilo, Bill. Ninguém além de nós dois sabe a combinação.
– Nós três. Charlie me deu a combinação hoje.
– Ele sabe o que faz... Você está desconfiado de Fleur?
– Não devo estar sendo muito discreto com isso... aquilo que você viu hoje...
– Bem, eu acho que sei o que aconteceu para você ter reagido daquela forma... Bill, deixe Fleur pensar um pouco... ela está dividida, não a leve a mal...
– Ela te contou alguma coisa?
– Ela me conta tudo. Mas acho que não aprovo a forma que ela tem jogado com vocês dois... Por favor, fique quieto hoje, não piore as coisas por aqui.
– Eu...
– Eu também não sei qual a intenção dela em relação a isso... mas estou vigiando-a em relação às amostras de sangue. Eu estou aqui há quase tanto tempo quanto Charlie, se houver algum espião aqui, seja ela ou qualquer outro... bem, vai ter que passar por mim. – ela disse e sorriu
– Eu... eu não sei como agradecer, Janine. Continue vigiando, então.
Logo depois que ele saiu, Janine sorriu novamente e trancou o cofre. Apagou as luzes e juntou-se aos outros. O jantar prometia ser animado.
***
Fleur entrou na banheira sorrindo para Charlie, uma nuvem densa de vapor elevou-se lentamente da água quando seu corpo submergiu e ele respirou profundamente, abraçando-a.
– Acho que gastamos muita água nesses banhos de banheira – ela murmurou rindo.
– Dane-se. Eu valho uma fortuna para pelo menos seis ministérios da magia. Devo ter conquistado o direito a certos luxos – ele riu, beijando-lhe o pescoço – para de reclamar, senhorita Delacour. Eu tive um dia cheio e horrível. Quero que ele pelo menos acabe bem.
– Seu irmão atrapalhou a coleta em algo?
– Não exatamente. Mas amanhã ele fica.
– Por quê?
– Por que prefiro ele aqui... lógico que não por vontade, mas por necessidade. Se pudesse escolher, ele não se afastaria um minuto do meu campo de visão.
– Não acha que está confundindo alguma coisa? Ele agora me odeia.
– Eu não acredito nisso. Eu não sou cego.
– Mas hoje ele foi tremendamente hostil comigo.
– O que você queria? Eu conheço Bill, e sei como ele fica quando perde algo que quer muito. Ele jamais aceitou perder, por isso nunca entrou para nenhum time de quadribol, por isso esteve sempre sozinho.
– Você fala dele de um jeito...
– Escute, Fleur... não tem nada a ver com você a incapacidade de meu irmão de fazer parte de uma equipe, é a natureza dele.
– Mas você está magoado com ele... isso é estranho.
– E não deveria? Eu vejo a forma como ele a olha.
– Você parece ter esquecido parte dessa história.
– A parte em que vocês foram um casal? Quem me dera esquecer.
– Escute, Charles ...
– Escute você, Fleur. Ele é meu irmão... eu o conheço, e sei que ele a tiraria de mim, se pudesse.
– Você fala como se eu fosse uma propriedade sua.
– Não é isso, você entende o que eu digo...
– Charles , será que você também não confia em mim?
– Não, Fleur, não é isso – ele a olhou ofendido – todo esse tempo... com tudo contra você, a forma como você apareceu, a suspeita sobre você... eu já não dei provas suficientes da minha confiança?
– Na verdade, acho que você procura não me enxergar direito, assim, não pode desconfiar.
– Mas que droga, isso é tudo que eu queria: eu me isolo dos outros, me afasto de Bill, tudo para poder ficar apenas com você e tudo que você faz é falar em Bill, defender Bill... droga. Por que afinal de contas você o deixou, se ainda o ama?
– Charles ...
– Obrigado – ele disse, levantando subitamente da banheira e enrolando-se na toalha – você estragou meus planos para essa noite.
– Charles ...
– Fleur, não fique comigo por pena – ele disse, com o olhar magoado encarando-a diretamente – não fique comigo por que eu pareço melhor que Bill… fique apenas se eu for aquilo que você espera de um homem. – ele disse e saiu do recinto sem olhar para trás.
Minutos depois, ele estava vestido, sentado diante do jantar servido na saleta do chalé que ocupavam, o olhar perdido na fumaça que subia dos pratos magicamente aquecidos. Ela sentou-se silenciosamente diante dele e ele disse:
– Perdoe-me.
– Não há o que perdoar – ela respondeu, pegando o garfo sobre a mesa e remexendo distraidamente a comida. – você apenas está dando a sua opinião.
Ele a encarou demoradamente, prestando atenção em cada detalhe do rosto bonito. Sabia que a amava, que não queria perde-la. Mas tinha consciência que os sentimentos dos dois não eram proporcionais.
– Você me ama, Fleur? – ele disse, sem rodeios.
– Claro que o amo – ele disse.
– Mais que amou o meu irmão?
– Não consigo compara-los, Charles .
– Eu só não quero prende-la a mim, Fleur... eu não quero que daqui a um tempo você chegue à conclusão que se confundiu.
– Charles , era outro momento de minha vida... eu...
– Você ainda sente algo por ele?
– Por favor, não me obrigue a falar sobre isso – ela disse, baixando os olhos – não quero falar sobre isso, por favor.
– Precisamos falar sobre isso ou ficaremos engasgados pelo resto da vida.
– Certo – ela pousou o garfo sobre a mesa – sim, Charles , eu ainda amo seu irmão, mas amo a você, de forma diferente da que o amo. Não, não consigo compara-los. Você é o melhor homem que conheci na vida, tudo em você me faz querer amá-lo desesperadamente, e, sim, a presença de Bill aqui confundiu tudo e agora não sei mais o que sinto. – ela levantou o rosto e havia lágrimas escorrendo de seus olhos – Satisfeito?
Ele ficou um tempo lívido e calado.
– Você é bom, generoso, correto e corajoso. Eu é que não sou boa o suficiente para você, talvez por que venho eu mesma de uma família ruim, muitos de nós estiveram voltados para o lado das trevas. Não admiro o mal... mas não sou o ser limpo e puro que você enxerga. A Fleur que você ama talvez não exista, ou exista somente na sua imaginação.
– Por que você está me dizendo isso?
– Porque... porque há coisas que você não sabe sobre mim. Coisas que é injusto esconder de alguém que confia tanto em mim. Mentiras que eu contei para estar aqui, e que, mesmo que tenham justificativa, eu não deveria ter esperado tanto tempo para contar para você.
– Mentiras? Do que você está falando?
– Eu estou confessando que não vim para Éden para curar minha irmã e minha mãe. A verdade que eu deveria ter te contado para entrar nesse lugar... e que eu quero confessar agora.
– Confessar? Fleur, o que você quer dizer...
– Escute, Charles, esta é a verdadeira história que me trouxe até aqui. Preciso conta-la a você agora, já escondi tempo demais.
Então, trêmula, ela contou a ele a verdade sobre sua chegada a Éden, e o verdadeiro motivo para estar ali. A cada momento o olhar dele tornava-se mais perplexo e incrédulo, olhando nos olhos dela e vendo-os encherem-se de lágrimas dolorosamente sinceras. Quando ela terminou, ele perguntou:
– E por que você resolveu contar-me tudo isso agora?
– Por que agora você é a única pessoa aqui em que posso confiar. E não era justo trair sua confiança. Preciso da sua ajuda, Charles ... preciso.
Ele a abraçou e deixou que ela chorasse pelo desabafo. As palavras dela ficaram trabalhando em sua mente, e ele procurava um meio de juntar a história que ela lhe contara, o motivo que a levara até ali com a história que o irmão lhe contara. As duas histórias estavam intimamente ligadas e ele precisava encontrar um meio de agir. Um meio de resolver o problema de alguém no seu acampamento traindo sua confiança. Quando ela se acalmou, ele a encarou e disse:
– Eu preciso de sua ajuda, Fleur. Acredito na sua história e ela agora torna muitas coisas claras para mim. Mais até do que eu gostaria. Vou protege-la, mas acho que precisarei mais que nunca da sua ajuda.
– Obrigada por confiar em mim apesar de tudo que eu lhe contei.
– Eu confio em você, e nós dois, juntos, precisamos evitar que o mal maior se consume.
– Você vai falar com William?
– Não – ele disse sombriamente – ele não iria nos ajudar nesse momento.
***
Enquanto Charlie tinha uma tensa conversa com Fleur, Bill, do lado de fora, não conseguia ter paz, por diversos motivos. Os seus olhos, durante todo jantar, estiveram sempre voltados para a direção do chalé do irmão. Agora, mais que nunca, odiava Fleur. Ela havia traído o irmão com ele, agora, com toda certeza, consumava essa traição fazendo o papel de mulher apaixonada. E em sua concepção, quem traía dessa forma só podia estar também prestes a trair o acampamento. Ele prometia a si mesmo não perde-la de vista. E rezava para que ela não aparecesse em seu quarto aquela noite. Ele poderia não suportar o peso de seu ódio, ou poderia simplesmente ceder outra vez, e não sabia qual das duas era a pior opção.
A noite se arrastou para ele, sem que Fleur aparecesse em seu quarto novamente. Muitas horas depois de deitar-se, exaurido de cansaço e sem esperança que ela aparecesse, ele finalmente adormeceu.
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