RECONCILIAÇÃO
Era estranho que fosse noite.
Abel não lembrava-se de ter visto anoitecer. Aliás, não lembrava-se de como chegara a contemplar aquele céu infinito, apenas lembrava, com clareza, de ter feito uma escolha, a sua escolha.
De alguma forma, logo depois disso, deixara de ser apenas um menino. Subitamente, as coisas que antes tinham importância para ele eram agora vagas e pequenas, porque ele sabia que fizera a sua escolha, mas não sabia se era a escolha certa. E continuava a não saber porque precisara fazer aquilo.
Foi quando pensava sobre isso que percebeu a presença dela.
Virou-se devagarzinho para encarar a Morte. Ela estava ali, e sua presença não era assustadora, mas firme e real como nada que ele se lembrava até então. Veio daí o fato de nunca mais em sua vida Abel Potter sentir medo de morrer. Ele piscou os olhos repetidamente, como quando ficava sem graça, e a mulher (se é que ela era isso) deu uma gargalhada.
- Não sabia que o deixaria sem jeito.
- Bem... não sei, mas algo me diz sempre que diante de você eu deveria agir de outra forma, sei lá, como se eu tivesse medo.
- Melhor nunca fingir para mim. Eu não gosto que finjam, porque é impossível me enganar. Você já deve ter ouvido isso.
- Claro... mas... Morte, porque tudo isso? Porque eu?
- Você sabe o que acontece com o seu pai? Ele nunca quis ser importante, mas ele simplesmente foi, entende? O mesmo acontece com você. Seu pai foi um menino muito importante, e soube crescer com isso, e quando chegou a hora de se tornar um homem, em vez de tentar ser um bruxo poderoso, ele quis ser um homem até bastante comum.
- Ele fez coisas muito importantes como auror!
- E quem disse que um homem comum não faz coisas importantes? São os homens comuns que fazem o universo girar, Abel.
- E porque estamos aqui?
- Aqui é o meu lugar, o infinito. Eu trouxe você aqui entregar algo que só você poderia levar.
- O quê?
- Isso - ela depositou algo em sua mão. Algo pequeno e quase impalpável, mas que ele sentiu que não perderia - entregue no mundo das sombras, quando o meu presente for solicitado.
- O que exatamente é isso? - ele olhou para sua mão espalmada, mas não soubre precisar o que via. Havia algo ali, mas ele não enxergava nada. Era como se houvesse um pequeno espectro em sua mão.
- A primeira morte. Algo que aquele mundo vai precisar, se quiser voltar à vida.
- Eu não quero levar a morte a ninguém.
- Não se espante, Abel. Sem a morte, não pode existir vida em mundo algum. Sem a minha presença, é como se o tempo não passasse. E se o tempo não passa, não há vida.
- É complicado...
- Muito. Mas simples, também. Guarde isso. Não precisa pensar sobre vida e morte agora. Tem alguém que quer lhe ver.
Instantâneamente, Abel sentiu uma presença às suas costas. Virou-se e viu seu pai, parado ali. Deu dois passos hesitantes, mas o pai pegou-o pelos ombros e o abraçou, dizendo:
- Você é pior que eu, moleque! Como se meteu nessa?
- Er... pai. Isso é embaraçoso. A morte está olhando pra gente.
- E daí? Você é meu filho, bolas!
- Bem, é agora que o senhor começa a ladainha sobre como eu devia ser feliz por ter um pai e uma mãe legal em vez de ter sido criado debaixo duma escada?
- Acho que vou poupá-lo desse discurso. Já estou mais ou menos a par de tudo. - Harry olhou para a Morte - ou de quase tudo, creio.
- Acho que ainda não é hora de voltar para casa... parece que eu tenho assuntos pra resolver em outro mundo...
- Aos 11 anos? Imagina o que você vai arrumar quando tiver a minha idade...
- Pai, o senhor não pode falar nada! É um auror! Já esteve no inferno!
- Ok... ok... - Harry ainda encarava a Morte - então?
- Bem... - a morte olhou-o hesitante - eu queria poupá-lo disso, e além de tudo, não sou famosa por conceder favores, Harry Potter. Mas entendo o que você queira fazer, entendo que precise disso. Mas devo advertí-lo: vocês estão sob a lei do meu reino, exceto Abel, porque leva o presente. Quando saírem do meu reino, tudo que aconteceu aqui será apagado da sua memória. Ninguém vivo tem permissão para recordar o que vê aqui.
- Não é por mim - disse Harry sério - talvez seja por ele. E por Willy. E por meus filhos. Eu sinto que preciso fazer isso.
- Se é assim...
O infinito sumiu. Harry tinha a mão sobre o ombro de Abel, e apertou com um pouco mais de força. O menino ia protestar, quando a luz difusa o cegou. Haviam sido levados para outro lugar no mundo dos mortos ou não, ele não sabia ao certo. A morte ainda estava lá. Era um vale longo, frio. Havia árvores mortas, e pessoas que caminhavam murmurando palavras incompreensíveis. A morte não parecia querer olhar para nenhuma delas. Ela apenas disse:
- Sigam-me.
Andar por entre aquelas almas era tudo, menos uma coisa agradável. Era um lugar triste, e a tristeza podia ser sentida como algo quase concreto, como se tivesse sido cultivada anos e anos a fio... alguns pareciam loucos, outros simplesmente não diziam nada, olhando-os quando passavam, com um olhar indiferente. Pararam perto de um lugar onde havia um banco de pedra em que estava sentado um homem que parecia mais velho que todos.
- Eu gostaria de lembrar-lhe, Harry, que ele não faz parte do seu mundo, e portanto, você não pode fazer nada por ele.
- Eu sei - disse Harry - mas eu precisava vê-lo. Posso me aproximar? Ele me vê?
- Sim, mas provavelmente não lembra quem você é.
Harry aproximou-se do banco e olhou o semblante do velho. Parecia mais velho que da última vez que o vira. Olhou para ele sem dizer palavra. O velho então disse:
- Eu o conheço?
- Talvez... pode ser que sim.
- Bem... pode ser. Sabe o nome desse lugar? Não consigo me lembrar o que vim fazer aqui...
- Acho que o nome não deve ser tão importante.
- Só sei que aqui é triste. Muito triste. E eu sinto saudades de alguém.
- Imagino que sim... alguém que o senhor gostava?
- Não exatamente. Alguém que gostou de mim, um dia. Mas não há mais muita certeza. O senhor é casado?
- Sim - disse Harry - com uma mulher maravilhosa.
O velho ficou em silêncio.
- E eu tenho filhos. - disse Harry - o mais velho é aquele ali - apontou Abel, que achava que o pai estava maluco em conversar com um velho louco, mas ainda assim acenou para o velho, que retribuiu. - tenho dois mais novos também.
- O senhor deve ser um homem feliz.
- Muito.
- Eu não me lembro de ter sido feliz, nunca... eu fico aqui, pensando e pensando... e me arrependendo de coisas que não me lembro mais, mas que foram terríveis. É como se houvesse um peso em minhas costas.
- Escute... porque o senhor não se levanta? Há quanto tempo está aqui?
- Muito tempo. Anos, creio.
- Talvez seja hora de mudar de ares. Caminhar. Seguir em frente.
O velho sorriu.
- Nunca tinha conversado com ninguém aqui... o senhor também está aqui?
- Apenas de passagem. E preciso ir.
- Eu também preciso ir... - o velho levantou-se - acho que preciso fazer algo... foi bom conhecê-lo - o velho ergueu-se e passou por Abel, olhando o menino um instante.
- Belo garoto - disse, olhando para Harry. E seguiu em frente, sem olhar para trás.
- O que foi isso afinal? - perguntou Abel à Morte, que observava o velho sumindo atrás de uma colina.
- Seu pai fez aquilo que é da sua natureza, Abel, mais uma vez... pediu-me para ver a alma daquele que um dia foi o bruxo mais temido de todos.
- Meu bisavô, Voldemort?
- Ele mesmo... - Harry aproximou-se e Abel perguntou:
- Pai... porque o senhor quis vê-lo?
- Não quis vê-lo, Abel. Eu quis que ele visse você. Queria que ele, mesmo sem saber, visse que apesar de tudo, algo de bom existe por causa dele.
- Mas ele não sabe disso!
- Existem coisas que de fato - disse a Morte - você não precisa saber para que sejam boas para você. Agora vocês devem deixar o meu mundo, junto com os outros. - quando ela falou isso, imediatamente eles se viram em frente ao grande portal luminoso por onde Abel e Kayla haviam entrado naquele mundo. E Abel surpreendeu-se porque havia um bocado de gente ali.
Eram seus avós, a avó de Kayla, seu pai... o pai de Henry, todos, como se fosse uma confraternização familiar. Ele foi abraçado, beijado, conversou, sentiu-se constrangido e mais de uma vez viu seu pai olhando para ele de forma que ele tinha de reconhecer: era um bocado orgulhosa. Só que ele não conseguia esquecer que apesar daquilo tudo, havia algo a fazer, algo sério. O pequeno espectro que a morte lhe dera pesava no seu bolso, ele sabia que cedo ou tarde aquela pequena festa acabaria, e ele teria que enfrentar aquilo que tinha de ser feito. Era mais ou menos como o último domingo antes das férias, só que em vez de uma semana de aula, ele não sabia o que viria depois. Quando a morte chamou a todos, ele viu que realmente a festa havia acabado, porque em cada rosto via a decepção de quem teria de esquecer tudo de bom que fora vivido naquele lugar. Menos ele. Achava aquilo injusto, e não podia aceitar o fato que lembraria de tudo, e os outros não. Chamou a morte e disse:
- Eu sei que você não concede dádivas, nem presta favores... e eu acho que você é muito rígida com essa história de regras e tudo mais... mas, você podia me conceder UM pedido... só um?
A morte pôs no menino seus grandes olhos cor de ébano. Ela estava séria, mas ele podia ver em algum lugar lá no fundo dos olhos pretos que ela achava graça em alguma coisa. Ele piscou repetidamente e ela riu:
- Você quer que eu conceda aos outros lembranças, Abel?
- Bem... é.
- Eu não poderia fazer isso... eu não posso fazer isso assim, não posso deixar que levem as lembranças para o mundo dos vivos. Quando saem daqui, as lembranças se tornam perturbadoras.
- Ótimo. Lembro a você que eu fui escolhido para lembrar... é bom saber que vou ter o resto da vida atormentado por isso - a morte riu então com vontade.
- O que você quer então? Quer esquecer tudo como eles? Isso pode atrapalhar o que você deve fazer no mundo de Vega
- Bom... não exatamente, mas sinceramente, tem coisas aqui que eu nem quero me lembrar... como aquele lugar onde vimos meu avô.
- Eu entendo isso... o que mais?
- Não preciso lembrar de tantos detalhes assim. Só da minha escolha. E posso passar sem a lembrança dessa festinha, embora tenha sido legal.
- Você parece estar querendo algo mais..
- Quero lembrar da minha missão, mas posso esquecer todo o resto, só que eu quero algo em troca.
- O que?
- Eu quero que você deixe que cada um deles escolha algo para lembrar. Uma coisa simples. Algo que lhes faça bem.
- E porque?
- Porque me parece mais justo - disse o menino, e sorriu. A morte sorriu de volta, e se ele já não houvesse decidido o que lembraria, teria acrescentado aquele sorriso à lista. Ela assentiu com a cabeça.
Quando tudo estava pronto para deixarem o lugar, Harry disse ao filho:
- Espero que você tenha aprendido bastante aqui, Abel.
- Por quê, pai?
- Uma vez a sua mãe me disse que o que vivemos, podemos até esquecer, mas o que aprendemos, fica conosco para sempre...
O menino olhou para ele, e sorriu, imaginando que o pai lembraria dos proóprios pais ao sair dali. Na verdade ele estava enganado, mas nunca descobriria isso. Ficou olhando todos entrarem no portal, até que só restou ele. Encarou a morte e disse:
- É... então, adeus.
- Abel... comigo nunca é adeus.
- Bom, podia ficar sem lembrar disso também. Espero te ver algum dia... daqui a muuuuuitos anos, sabe?
- Boa viagem, Abel. E boa vida.
Abel deu dos passos de costas, olhando a Morte sorrir, e foi tragado pela luz. Num instante, o reino dos mortos desapareceu, e sua cabeça ficou vazia. Quando chegou ao outro lado do portal, este se fechou, e ele caiu sem sentidos no chão da Fronteira.
Algum tempo depois, um homem veio andando, vindo de longe, do lugar da árvore, o limite entre todos os mundos exteriores e a fronteira, observando um a um todos os que haviam estado nos reinos invioláveis. Não estava surpreso, sabia que cumpririam todos as suas missões. Observou a planície dos portais e foi vendo que um de cada vez, eles se fechavam. Agora, restavam só dois abertos: o do mundo das sombras e o do reino da luz. Ele tinha que levar todos ao portal correto. Enfiando a mão sob a capa, ele retirou uma varinha longa, que agitou no ar. Faíscas vermelhas apareceram e ele sorriu: era verdade, os guardiões realmente haviam dado a ele permissão para ser bruxo ali, coisa que ninguém jamais tinha recebido. Sorriu, afinal era por uma boa causa, e provavelmente, a última vez na sua vida que faria magia, portanto, tinha que ser em grande estilo. Apontando uma pedra no chão disse:
- Animalia equinae - observou então, pacientemente, a pedra crescer e transformar-se num grande corcel branco. Ele observou por um instante e disse: - Bah! Um mago num cavalo branco? Que coisa mais clichê! - agitou a varinha no ar, e o cavalo sacudiu-se mudando de cor para um castanho dourado, com uma mancha branca no focinho. Agitou mais um pouco e surgiu uma sela, negra e prateada, que ele depois mudou para castanha, mais simples e discreta. Olhando a altura do cavalo, concluiu que era melhor fazer um feitiço de levitação para alcançar a sela, pois definitivamente não era nenhum mago na flor da idade. Quando se viu completamente instalado sobre a sela, puxou o capuz para trás, sacudindo um pouco a barba e a cabeleira branca, afinal, aquela fronteira era um lugar bem empoeirado. Avaliando a aparência do cavalo e tudo mais, concluiu que já estava suficientemente imponente para acordar todos. Do alto da sela, agitou a varinha no ar e disse um feitiço com sua voz poderosa e grave, o que não fazia já há uns bons anos:
- Enervate! - calmo e sorridente, então, esperou que cada bruxo adormecido acordasse.
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