FLORES NEGRAS



 Respirar e ouvir... era tudo que Luccas Lux precisava para saber sobre o mundo fora de Azkaban. Se ele se concentrasse, no topo do rochedo mais alto de Azkaban, onde gostava de ir quando a tarde caía ou no meio da madrugada, ele podia sentir e ouvir coisas que para uma pessoa comum eram simplesmente imperceptíveis.
 Nos quase seis anos em que diriria Azkaban a prisão havia se tornado um lugar melhor que com os dementadores, mas ainda assim praticamente impossível de se escapar, agora até mais que na época dos dementadores.
 Aonde Luc pisava era impossível fazer magia negra, e também era impossível lhe esconder qualquer coisa,  ele percebia o mínimo som diferente, sabia quando caía um talher no chão durante as refeições dos presos, podia ouvir tudo em mínimos detalhes, e conhecia cada preso pelo seu cheiro. Ele tinha seus momentos de lazer, quando montava em Fídias e voava para além da ilha, retornando algumas horas depois, nunca dizia onde ia, nem ninguém perguntava.
 Ele trouxera para a ilha criaturas mágicas de suas relações, que cuidavam do dia a dia dos presos, elfos guardiões, que eram a extensão de sua percepção, seus olhos e suas mãos, que alimentavam os presos. Ainda havia alguns artefatos que impediam fisicamente que os presos saíssem dali, ou tocassem em armas ou objetos mágicos, sob pena de morte instantânea e terrível, ou no mínimo de dor forte e insuportável. Ele não gostava disso, mas sabia a natureza de alguns que ali estavam, era realmente necessário cercar-se de todo cuidado possível.
 Ele nunca dormia, embora tivesse um quarto onde havia um divã, uma mesa e uma poltrona, mas preferia passar as noites no rochedo, escutando e sentindo o mundo que havia além dos mares, o mundo que abandonara por não acreditar pertencer.
 Havia algo que ninguém sabia sobre Luccas Lux: quando ele desafiara as leis de seu mundo e resolvera vir para o mundo dos homens para enfrentar seu maior inimigo, recebera um vaticínio: quando amasse uma mulher mortal, ele daria a ela parte de sua essência e juntos, começariam uma nova raça neste mundo. Já haviam se passado mais de três mil anos, e ele nunca amara ninguém.
 Quando despertara do sono que se impusera, para aguardar em paz o momento de enfrentar os errantes, ele sentira-se preparado para procurar a mulher escolhida... mas nem mesmo a única que realmente lhe interessara marcara definitivamente sua memória: o cheiro do mar e das geleiras ao norte de Azkaban haviam feito com que perdesse da memória a impressão do cheiro de sândalo de Hermione Granger, que além do mais, não nascera para amar um guerreiro da luz.
 Estar em Azkaban era de certa forma, continuar morto para o mundo. Os momentos em que voava em Fídias, sentindo o ar marinho, nas noites e madrugadas em que furava as nuvens e sentia-se finalmente livre era que o mantinham alegre e bem humorado diante dos presos. Eles nem desconfiavam que ele abandonava a prisão, e apreciava a liberdade nas asas do seu dragão, às vezes mergulhando com ele no mar e sentindo à sua volta o movimento dos peixes que assustados nadavam para longe da luz que ele e o dragão espalhavam no mar. Voltava para seu quarto com um sorriso selvagem e satisfeito nos lábios, sentindo a água do mar escorrer de seu corpo, sentindo-se vivo e feliz por existir.
 Naquela noite, uma melancolia inexplicável o fizera subir até seu rochedo, enquanto esperava a mais nova condenada... ele não gostava de descer às celas, só o fazia se era extremamente necessário. Aquela manhã ele precisara descer para constatar a morte de um prisioneiro. As celas de Azkaban ainda tinham a marca maligna dos dementadores. Era possível sentir os séculos de medo grudados nas paredes, anos e anos do suor de homens atormentados e das lágrimas de desesperados que haviam estado ali, o cheiro do desespero ainda estava por toda parte e talvez demorasse séculos para sair.
 O prisioneiro Walden McNair morrera, vítima da picada de uma aranha. Havia aranhas  venenosas e muito letais de todos os tamanhos em Azkaban, Luc reclamava muito com os elfos, que tentavam mas não conseguiam acabar com elas... ele avisava aos presos quando chegavam sobre as aranhas e pedia-lhes que tomassem cuidado com suas vestes e pertences... McNair esquecera de olhar dentro da bota antes de calçá-la após um banho. Ele ouvira de seu quarto o instante em que as presas da aranha cravaram-se nos dedos do bruxo e correu para tentar salvá-lo, mas era muito tarde.
 ‒ Mandem o corpo para a família – ele disse aos elfos, antes de isolar-se no seu rochedo para lamentar a falta de cuidado. Abominava a morte dos homens, procurava cuidar daqueles que estavam sob sua proteção e o fato de um deles morrer o chateava.
 Muito antes de escutar o barulho do barco que trazia a prisioneira, ele sentiu, ou julgou sentir, um perfume trazido pelo vento que o impressionou profundamente. O perfume foi ficando mais forte à medida que o barco se aproximava, era o perfume das flores negras, as flores que só cresciam em seu mundo e que podiam adormecer para sempre aqueles que se embriagavam com seu cheiro por tempo demais... soube naquele momento que era melhor manter distância desta prisioneira.

 Bianca Fall olhava a paisagem pela pequena janela do barco com olhos vazios, triste. Ela pensava em toda sua preciosa vida que ficava para trás, seu trabalho amado fazendo brinquedos, sua família, seus amigos. Quando saísse dali, se saísse, ela estaria morta para o mundo, acabada. Não se arrependia de ter aderido ao Camaleão para salvar seu pai, mas se arrependia de ter magoado Harry ao deixar claro que desejava o mal da mulher que ele amava.
 Harry fora o primeiro e único homem que amara, desde o primeiro momento em que o vira. Se arrependia amargamente por ter brincado com ele, numa época em que era só vaidade e gostava de dispensar os rapazes, que depois ficavam gravitando em torno dela e disputando sua atenção... ela dispensara Harry e sem saber, o perdera para sempre. Ela nunca imaginaria que ele pudesse se apaixonar por outra, tentou compreender porque afinal de contas ele a trocara por aquela menina tão desprovida dos seus atrativos, que ela achara mau educada e feia. Invejara Willy durante anos por lhe ter roubado Harry.
 Mesmo quando ele a pediu em noivado, ela sabia que ele estava apenas fugindo do que sentia... por cinco anos ela se contentou em estar com ele sem tê-lo, até o dia em que isso não valeu mais a pena e ela o deixou pela segunda vez, e foi mais doloroso perceber que ele não sentira nada, nada, nada... era a dona de uma vida para sempre perdida. Agora, era levada àquela que ela achava que seria sua morada final, tinha um pressentimento que não sairia viva de Azkaban, que morreria ali, e seria melhor assim.
 Foi nesse momento que o viu.
 Não havia lua, apenas estrelas no céu escuro, o mar à sua frente era negro e a única forma de distinguir céu de mar era ver onde as estrelas sumiam no horizonte. Azkaban era invisível para os olhos dos trouxas, nenhum radar ou carta marítima a acusava, mas assim como era invisível, também era intocável, e nunca nenhum barco trouxa havia sequer passado perto dali. Porém aos olhos bruxos, ela aparecia como um grande rochedo no horizonte, um rochedo aparentemente desabitado, só quando se chegava mais perto era possível divisar que cravada à pedra, totalmente integrada ao rochedo, havia uma construção irregular que lhe tomava toda a volta, aproveitando-lhe a forma
 No alto deste rochedo ela julgou ver a princípio uma luz fraca e tênue. À medida que se aproximava, a luz atraía mais e mais sua atenção, ela via que a luz tinha uma forma... era forma de um homem, ela julgou ser uma estátua muito branca, se houvesse luar, ela acharia que estava iluminado pela lua... então  a estátua se mexeu e como se tomasse vida, desapareceu, saltando pelo lado que ela não podia ver. Ela sentiu-se intrigada com aquela aparição estranha. O barco agora estava bem próximo à ilha, e ela viu que este a contornava, na direção de um pequeno cais. O auror que a levava, um homem enorme e que não sorrira ou proferira uma única palavra durante a viagem disse-lhe:
 ‒ Levante-se, vamos desembarcar.
 Ela levantou-se em silêncio, de cabeça baixa, saiu do barco, que adernava ligeiramente e a primeira coisa que viu foi um grande volume, embrulhado em tecido negro: parecia um corpo humano. Ouviu a voz do homem atrás dela perguntar alguma coisa a alguém e ainda absorta, ouviu outra voz dizer que o homem morrera de picada de aranha. Uma luz à sua direita atraiu a sua atenção e ela pela primeira vez viu o guerreiro da luz.
 Ele era impressionante. Era alto e forte, ombros largos, branco e meio luminoso, falava com o homem ao seu lado com os olhos fixos à frente, para além do barco... ela então lembrou-se da história do guerreiro cego que libertara Hogwarts, e não conseguia tirar seus olhos dele. Ele estava usando uma veste totalmente branca e uma capa com um capuz que o vento derrubara, tinha um cabelo preto que anelava-se sobre sua cabeça, num desalinho casual, como se raramente fosse penteado, ela o via de perfil, um perfil marcado e interessante. Subitamente, ele virou seu rosto para ela e ela se assustou. Ele não a olhava, mas parecia ver além dela. Parecia poder ver dentro dela.
‒ Bianca Fall? – ele perguntou, sério
‒ Sim.
‒ Eu preciso explicar-lhe algumas coisas, antes que você entre em Azkaban. – só então que ela reparou que o barco se fora, levando o Auror e o corpo, e ela estava parada sozinha no cais diante do guerreiro.
‒ Sim? – ela repetiu para que ele continuasse, ainda mais sério:
‒ Estenda os pulsos. – ele estendeu-os e viu que não havia mais as algemas com que chegara... ela não sabia como elas haviam sumido. Ele tocou com a ponta dos dedos seus pulsos e ela viu surgirem grilhões finos e frios de metal prateado – com estes grilhões você não pode tocar nenhum objeto mágico, sob pena de morte instantânea, portanto, nem pense em tentar contrabandear nenhuma varinha para dentro da prisão. Se agredir outro preso ou elfo guardião, sentirá uma dor insuportável até que peça desculpas. Se tentar roubar qualquer talher no horário das refeições ou esconder qualquer objeto entre seus pertences, estes grilhões apertarão suas mãos até o ponto de fazê-las cair de dor. Não pense em arrancá-los ou danificá-los, para seu próprio bem. Agora vire-se e levante seus cabelos, se os tiver compridos.
 Ela virou-se, ainda sob o impacto da frieza com que ele falara sobre o que passaria ali, com as mãos, recolheu os cabelos, sentindo o ar do mar bater em sua nuca. Ele tocou de leve seu pescoço de ambos os lados, fazendo surgir uma gargantilha do mesmo metal que os grilhões. Por um segundo ela pôde sentir como os dedos dele eram quentes, estranhos para ela.
 ‒ Vire-se para mim e escute o que vou dizer: se quiser sair daqui viva quando acabar sua pena, nunca se afaste além dos rochedos verdes que cercam a ilha. Quanto mais você se afastar deles, mais a gargantilha irá apertar seu pescoço, até matá-la por sufocação. Também não preciso te avisar que se tentar tirá-la daí você irá morrer do mesmo jeito. Venha comigo – ele disse virando-lhe as costas. Ela o seguiu e eles entraram por uma porta que se fechou sozinha nem bem passaram por ela, eram corredores com paredes irregulares de pedra, mal iluminados, mas ele brilhava a sua frente, iluminando o caminho, desceram uma escada e ela tropeçou. Ele estendeu a mão para trás e aparou-lhe a queda sem virar sequer o rosto. Ela sentiu frio e viu um rato correr ao longo do corredor. Eles desceram cada vez mais, até que chegaram em frente à porta de uma cela aberta, dentro de onde ela pôde ver um pequeno catre com cobertas e um vaso sanitário. Uma janela de trinta por trinta centímetros era tudo que a ligaria com o mundo exterior. Ele deixou que ela passasse e começou a falar.
 ‒ Essa é sua cela, ela é aberta de manhã para que voce vá executar os trabalhos na ala comum, você vai trabalhar na lavanderia. Se esforçar-se e tiver bom comportamento, a transferimos para a ala de costura, onde vai fazer roupas para os presos e para os internos do orfanato St Ephigeine. Finalmente, se lá você for muito esforçada, poderá trabalhar na carpintaria, fazendo brinquedos para as crianças do mesmo orfanato.
‒ E se eu não quiser trabalhar?
‒ Terá dias muito agradáveis trancada vinte e quatro horas nessa cela. As aranhas te farão companhia, que tal? – ele ficou calada – como sei que você vai colaborar, não direi mais nada, você terá uma hora de almoço e uma hora livre ao fim da tarde. Sábados e domingos, não trabalhará e poderá passear durante o dia pela ilha, lembrando-se de meu conselho sobre as pedras verdes... mais uma coisa, aqui há aranhas venenosas. Eu tento mas não consigo acabar com elas, nunca vista uma roupa sem sacudir nem calce um sapato sem olhá-lo por dentro. Nunca esqueça disso. Aquele que saiu hoje daqui esqueceu e pagou seu preço. Alguma pergunta?
‒ Não. Entendi tudo.
‒ Bom. Tenha uma boa noite – ele saiu e a porta fechou-se atrás dele. Ela sentou-se na cama e olhou o pedaço de céu que entrava pela janela. Lutou contra o pensamento que lhe veio à cabeça: “como ele é bonito!”
 Luc andou pelo corredor até seu quarto... não sentiu vontade de subir ao rochedo. Mais tarde, quando todos dormiam, ele saiu e foi até lá. De sua cela, Bianca julgou ter ouvido em algum lugar um assobio. O dragão da luz saiu de uma caverna, batendo suas asas graciosamente e oferecendo as costas para que seu mestre montasse, ele ordenou que o dragão voasse e ainda pensou, sentindo que atravessava uma nuvem fria: “Flores Negras...”

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