Focus.
Quando Hermione apanhou o livro naquela manhã, já mais consciente do que tinha em mãos, sentiu medo. Um medo intenso que se espalhou da mente até a profundidade dos ossos, congelando o sangue nas veias e deixando o gosto amargo na boca. Não sabia quem fizera aquele livro ou a razão dele estar na Floreios & Borrões naquele dia. Como podia ser tão imprudente e abri-lo sem pensar nas consequências, se permitindo ver tudo aquilo? Bem, a razão tinha um nome: Curiosidade.
A vontade de descobrir mais e mais sobre o passado de Voldemort, através de memórias ligadas a Tom Riddle, era enlouquecedora. Foi então que Hermione se viu gastando horas dos seus dias a entender e ver o tal livro, sempre com uma nova dúvida em mente. Eram tantas questões, tantas hipóteses e tantos receios, que já não sabia por onde começar. Ou até mesmo, se devia começar.
* * *
Estava escuro e um garoto chorava em algum corredor próximo as masmorras. Hermione podia vê-lo debruçado sobre os joelhos, choramingando baixo. A vontade de abraçá-lo foi imensa. Por que ninguém estava ali, o reconfortando? Era apenas uma criança. Era Tom Riddle.
Hermione ainda não havia se dado conta, mas estava começando a enxergar Voldemort como um humano digno de compaixão. A imagem do monstro, da tortura, da própria morte, já não lhe acompanhava os pensamentos quando o nome era pronunciado pelos seus lábios. De imediato surgia em sua mente a imagem da criança abandonada, do choro, do medo. O medo que ela própria sentira ao chegar em Hogwarts sem nunca ter visto nada relacionado ao mundo bruxo.
No fundo, Hermione era como Tom. Os mesmos receios, os mesmos hábitos estudantis - que foram movidos pelos menos motivos -, a mesma capacidade intelectual precoce e bem desenvolvida. Porém, tratava-se do sonserino e da grifana. Opostos e, portanto, atraentes, assim como manda a lei da física. E certamente havia alguém observando aquilo com olhos desejosos.
Porém, naquele momento, Hermione não pensava em nada disso. Ela assistira muitas cenas desde então. Vira Tom Riddle chegar à Hogwarts e ser direcionado para a Sonserina, perante a idéia de que ali ele poderia se tornar grandioso. Eis que ele realmente poderia ter seguido o conselho do Chapéu Seletor diante do contexto em que fora dito: Tornar-se-ia um grandioso Ministro da Magia, Auror, professor em Hogwarts. Era fácil imaginá-lo chegando ao cargo de diretor após alguns anos. Mas a realidade fora bem diferente, isso Hermione sabia bem. E ia aos poucos descobrindo as razões, a cada nova página aberta. Vira o pequeno Tom se afundar em um mar de livros, buscando inicialmente compreender aquele mundo que era tão diferente do seu. Assistira ele ser excluído e caçoado pelos outros colegas, por não gastar seu tempo com Quadribol ou outras coisas. E ele se fechara até chegar ao ponto que ela via agora: silencioso, solitário. Chorando. E ela quisera imensamente fazer parte daquela cena para confortá-lo.
— Eu te entendo, Tom. — Ela disse ao sentar-se ao lado dele no chão frio de pedra. Sabia que era apenas uma observadora da cena, que ele não a escutaria. Porém, ela era humana e havia de fazer aquilo para que seu coração se aquietasse no peito. — Por favor, não chore.
E ela o olhava secar as lágrimas, ao mesmo tempo em que outras tantas surgiam e ele soluçava no seu canto. Na mente de Hermione já não haviam mais lembranças sobre o monstruoso Voldemort. Não, ele passara a ser como uma outra pessoa para ela. Quase como se Tom Riddle e Lord Voldemort fossem seres distintos ao invés de passado e futuro.
— Eu sei que seus pais não estão aqui com você, mas saiba que você certamente é um garoto especial. — E as lágrimas dele, logo tornaram-se as dela, quando o choro não pôde mais ser segurado. — Sinta-se ao menos um pouco feliz. Você está em Hogwarts, o melhor lugar do mundo. Esta é sua casa agora. Você é bruxo excepcional, eu tenho certeza.
E por fim, já não havia mais o que ser dito. Ela queria dizer muitas outras coisas, é claro, mas já estava de volta à Sala Precisa.
* * *
Hermione conviveu com a culpa durante semanas. Culpa que não era dela, visto que estava vivendo ali, anos depois de Tom Riddle cursar magia em Hogwarts. Independente disso, nada lhe fazia parar de se martirizar por não estar ali para consolar o pequeno garoto. A cada nova abertura do livro, a cada nova cena vista, ela estava mais conectada ao garoto. Só não havia se dado conta disso ainda, mas haveria de fazê-lo em tempo.
E citando o tempo em sua forma mais pura e maleável, Hermione soubera usá-lo bem. Já descobrira com precisão que as horas pareciam ser pausadas quando ela se aventurava entre as memórias do livro, o que a deixava mais tranquila. E, notoriamente, fizera várias descobertas sobre o Sonserino. Nada que pudesse ajudá-la na luta contra o 'Lord das Trevas', mas várias coisas a respeito do ser humano que ele fora um dia.
Sinceramente, Hermione já começara a perder o foco. Seu desejo de descobrir pontos fracos de Voldemort a partir do livro ia diminuindo a cada nova descoberta que fazia, principalmente quando o via em momentos de fragilidade. O lado racional de Hermione começava a ser subestimado por um lado que ela ainda não tivera até então: o emocional. Sentia-se mãe da criança sofrida que assistia diante dos seus olhos, como se protegê-la fosse seu maior anseio. A luta dele, ainda que há tantos anos atrás, tornara-se a sua luta. O sofrimento já era seu.
Alheia a tudo aquilo, mas tão presente quanto possível, Morgana sorria como não fazia há anos.
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