Rajada e Lampejo
Despertei naquela manhã com uma carta sobre as cobertas.
Era um convite. Tudo bem, não um convite propriamente dito, mas sim uma intimação, talvez. Dizia assim:
O topo da Torre do Relógio, do quinto andar, é um excelente lugar para se ver o tempo passar. Às vezes, tudo é tão parado e vazio que, por nós mesmos, temos de mover os ponteiros. O quê acha de uma visita quando o sol terminar de ceder?
Seria interessante vir acompanhada de Chifre de Bicórnio e Raiz de Mandrágora.
Chad Dominic
Eu corei ao terminar de ler, mas não sabia quais eram suas intenções. Seria um encontro? Mas é claro que não! Eu tinha de ser muito ingênua para imaginar algo do tipo mas, por ora, era a melhor hipótese a que conseguia chegar.
Após uma rotina de aulas que eu conhecia perfeitamente, fiz meu relato diário ao senhor Bremmer, e ele me pareceu satisfeito com as novas informações. Preparei meu conteúdo para a atividade de poções do dia seguinte e, enquanto organizava a Raiz de Asfódelo junto com algumas Urtigas Secas. Aproveitei-me para guardar um pouco da Raiz de Mandrágora nos bolsos, mas seria incapaz de encontrar Chifre de Bicórnio.
Fui surpreendida pelo toque pesado de duas mãos sobre meus ombros.
—Como vai a senhorita?
Virei-me assustada, apenas para deparar-me com a imagem tênue de Haley Shunpike. Ele era um homem alto e frio, de pele morena e cicatrizes no rosto e nos braços, marcas da guerra que enfrentara durante sua vida. Vestia-se em robes elegantes, trajando por sobre o lado esquerdo do corpo peças leves de uma armadura de aço, ou talvez fosse apenas um adorno de alumínio.
—Você me assustou, Haley! —falei, respirando aliviada.
—Esperava por alguém?
—Não, não, de maneira alguma! E justamente por ninguém esperar é que me espantei com sua presença, se quer saber. Como está?
—Bem, em termos —foi a sua resposta, e eu teria de me contentar com ela. Haley não estava bem. Nunca mais estaria. —E Chad?
—Vou encontrá-lo hoje. A busca continua, sabe como é. Ainda acho meio cedo para indicar algo. Talvez as suspeitas sejam tolices, não é de todo mal esperar por isso.
Ele pensou, coçando o queixo onde havia barba por fazer.
—Eu realmente gostaria que você estivesse certa.
E então se foi, deixando-me sozinha com os ingredientes das poções, levando dali aquela aura pesada de quem sofreu mais do que um coração sozinho pode suportar.
Já anoitecia quando eu chegava ao quinto andar, um pouco ofegante pelas escadarias que me retardaram o movimento. Havia pouca gente naquela área, e o horário era peculiar para um chamado. Tinha nos bolsos a Raiz de Mandrágora que me fora pedida, sem ao menos saber qual seria sua utilidade.
Encontrei-me com as engrenagens dos relógios e a maquinaria pesada que os mantinha funcionando, e as badaladas dos sinos indicaram a chegada das dezoito horas. Aguardei até que os estrondos terminassem para entrar no topo da torre, e ali estava ele, Chad, uma silhueta nas sombras, pois luz alguma existia naquele local. Ele tinha o corpo apoiado nos joelhos, e algo à sua frente fumegava, o que —com uma inspeção cuidadosa —constatei ser uma caldeirão de cobre.
—Boa noite, senhorita Lane —ele sorriu, voltando seu rosto para mim por um só instante. —Trouxe o que lhe pedi?
—Somente as Raízes de Mandrágora —respondi, pouco incomodada com a situação. —Não fui capaz de encontrar o Chifre de Bicórnio.
—Eu trouxe alguns reservas. Imaginei que isso aconteceria.
Ele estendeu a mão para mim, recolhendo as raízes e as atirando junto do restante dos ingredientes, mexendo a mistura do caldeirão com uma colher de metal.
—Chifre de Bicórnio, Raiz de Mandrágora e um caldeirão de bronze —ele falou em voz alta, parte para o ar, parte para mim. —Acredito que, como uma aluna de sétimo ano, você conheça os resultados dessa mistura, estou certo?
E eu conhecia, realmente, mas só agora me dava conta da junção dos ingredientes pedidos por ele.
—Uma poção estimulante —respondi, —de certo. Um energético para bruxos, se bem me lembro. Por que está preparando algo assim?
Ele deu de ombros enquanto despejava a poção num recipiente de vidro. A mistura adquiriu uma coloração de verde brilhosa, bem próxima do xênon.
—Requisitei sua presença para que me fosse possível vencer —ele contou, já em pé, escondendo o caldeirão atrás de alguns apetrechos mecânicos. —Gosto de público, Lane. Gosto de aplausos.
Antes que eu entendesse suas palavras, a porta da torre se abriu outra vez, e por ela passaram três pessoas. Um deles era conhecido, tão famoso quanto Chad na escola: Malcolm Roderick, o Grifinória mais famoso dos anos atuais, um aluno de sexto ano responsável pela vitória da Taça das Casas por três anos consecutivos. Ele era exemplar, um bruxo exímio, ainda que seus feitos não alcançassem o renome adquirido por Chad. Ao seu lado, duas bruxas cujo nome eu não me recordava o acompanhavam, ambas alunas de quinto ano.
—É ele, Malcolm! —apontou uma delas. —Ele é o garoto que tem falado mal de você!
—Um sonserino, obviamente —riu Malcolm. —Chad Dominic, o famoso responsável por tantas façanhas de nossa escola. Precisa mesmo de uma aluna de sétimo ano para nos enfrentar?
Eu me encolhi no lugar. Não estava ali para participar daquilo tudo.
—É certo que não, meu caro —Chad provocou, tirando a varinha para fora das vestes. —Na verdade, pouco preciso para derrubar um trio de perdedores.
—Não me lembro de ver seu rosto estampado na Taça das Casas, vencedor.
—E nunca o verá. Não é com essa vitória que me importo.
Malcolm se enraiveceu. Ele tirou das vestes uma varinha de salgueiro com corda de coração de dragão, medindo cerca de vinte e nove centímetros, apontando-a para os olhos de Chad.
—É um duelo o que você quer, serpente?
Chad sorriu.
—Eu não honro as serpentes, pequenino —zombou, com ironia ácida em cada palavra. —Honro aos morcegos, os sorrateiros filhos das sombras. Serpentes não podem voar.
E o sino badalou novamente, dessa vez pelo estrondo de uma rajada avermelhada.
As duas garotas da Grifinória se afastaram, e eu também me afastei, deixando-os em linha, nas normas rígidas dos duelos bruxos. Uma das garotas, cujos cabelos eram trançados e castanhos, encantou a porta da torre, trancando-a magicamente. Não era um encantamento simples, e poucos alunos abaixo do sétimo ano seriam capazes de quebrá-lo. Achei, de certo modo, uma boa escolha.
Chad e Malcolm se postaram frente a frente, as varinhas em frente ao rosto, e então se curvaram em cumprimento, baixando as armas mágicas na altura da cintura. Malcolm parecia nervoso, mas Chad tinha apenas um sorriso malicioso no rosto. Eles se viraram, caminharam cinco passos para que se afastassem, aguardaram-se os três segundos impostos pelas regras.
—Depulso! —exclamou Malcolm, e sua varinha jorrou vento, empurrando Chad para trás num impulso súbito, deixando-o se chocar contra uma das paredes da torre. Sem esperar que ele se recobrasse, o Grifinória continuou sua série de ataques: —Estupefaça!
—Impedimenta! —O feitiço de Malcolm pairou ao longe, enquanto ele escorregou no lugar, arrastado por uma força maior. —Lacarnum Inflammare! —E houve fogo, fogo intenso e real, chamas que incendiaram o local onde há pouco estava Malcolm, que se esquivou mais por sorte do que por habilidade, os olhos surpresos ao se deparar com o nível da mágica de Chad. Aproveitando-se da distração, o Sonserina deslizou sua varinha. —Avis!
Surgiram pássaros. Pássaros miúdos, brancos e azulados, jorrando da varinha de Chad como uma torrente de asas e bicos e penas, e eles se aninharam no corpo de Malcolm, bicaram e o atacaram, e o Grifinória se defendiam como podia e, na confusão, sequer escutou quando um novo feitiço foi lançado.
—Avifors!
Um sino se fez pássaros, e a nuvem de aves cobreadas pairou sobre Malcolm, oscilante.
—Immobilus! —gritou Malcolm, e todas as aves ao seu redor congelaram de imediato, voejando como se decorações amarradas ao teto.
—Finite Incantatem! —era Chad, cancelando seu próprio feitiço, o que fez com que o sino transformado em aves voltasse a seu tamanho original, quedando sobre Malcolm com um estrondo que ecoou por longos segundos, aprisionando-o atrás de seus muros metálicos. —Este é o lugar para os adversários incapazes de me enfrentar, Grifinória!
A voz de Malcolm soou grave, abafada pelo baque metálico daquilo que o circundava:
—Diffindo! —O sino se rasgou ao meio, e ambas as partes estrondaram contra o solo, distraindo Chad por um só instante, momento que Malcolm não desperdiçou: —Talvez não seja o meu lugar, então. Everte Statum!
—Carpe Retractum!
Chad girou no ar, mas a corda luminosa que conjurara fez com que Malcolm girasse junto dele, e ambos quedaram numa parede distante, bem próximos. Enquanto se levantaram, percebi que Malcolm tinha um dos braços quebrados.
Eu queria interferir. Poderia pará-los, poderia evitar que as coisas piorassem, mas algo me impedia. Eu os olhava com receio, temendo pelo pior, mas assistia-os com impressionismo nos olhos, como se aquele duelo não fosse algo a ser perdido. Queria ver os resultados, precisava ver. Cada vez mais, mais e mais a cada instante, eu admirava o garoto de nome Chad Dominic, e ele era maior, mais poderoso e mais incrível graças a isso.
—Alarte Ascendare!
Eu não soube dizer de quem era a voz dona do feitiço, mas vi o corpo de Malcolm subir para o teto e tombar, sem interrupções, contra o solo rígido da torre do relógio. Ele murmurou algo, mas sua voz era fraca graças à dor, o braço ferido piorando pelo impacto. Chad não se abalou.
—Bombarda!
O Grifinória atacou ainda do solo, fazendo explodir uma parede próxima a Chad, um feitiço errôneo. Ele tentou mais uma vez, mas um Protego fez com que sua mágica defletida o atacasse, jogando seu corpo para trás numa pequena explosão, deixando-o inerte no solo, os olhos fechados, a respiração pesada demais. Chad pisou em sua mão, empurrando a varinha de salgueiro para longe, e se agachou ao seu lado.
—Eu gosto de quem luta até o final —disse ele. —Gosto de quem enfrenta sem ter medo, mesmo quando sabe que não pode vencer. Essas são as melhores vitórias, se quer saber.
Ele apontou a sua varinha para o rosto de Malcolm. Involuntariamente, minhas mãos alcançaram a minha varinha, mas eu não teria tempo de impedir os seus planos. As garotas ao meu lado gritaram.
—Episkey —disse ele, e o braço de Malcolm voltou ao lugar, os ossos se reconstruindo e retomando suas posições originais. —Não me entenda mal, Grifinória. Eu gosto de vitórias, mas acima de tudo, gosto de boatos. Sei que vocês farão valer a pena esse duelo.
Malcolm se levantou, pegou sua varinha e, de maneira humilhante, se retirou, seguido de perto por suas duas companheiras.
Chad girou a varinha acima de sua cabeça.
—Reparo! —exclamou, e todos os danos ocorridos na torre do relógio foram reparados.
Eu estava boquiaberta, impressionada demais, mesmo que com a varinha em mãos.
Chad se virou para mim, sorridente.
—Parece que eu venci —falou, acenando.
Eu não soube o que pensar, muito menos o que dizer, portanto fiquei em silêncio, assistindo-o enquanto ele recolhia seus pertences e caminhava em minha direção.
—Obrigado pela presença, senhorita Lane —disse ele, com aquele mesmo sorriso cativante de costume. —Eu queria fazer algo para lhe agradecer, mas não me acho digno para isso. —Então, bem próximo ao meu ouvido, sussurrou: —Quem sabe um dia, não é?
E partiu, deixando-me sozinha com as melódicas batidas dos relógios.
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