Capítulo único







As cinzas de um homem cinza


Severus Snape era cinza, a mistura infiel de branco e preto. Ele era os seus mais variados tons dissolvidos na tinta-água verde que o realça, pois por si só sua coloração é desbotada. A lembrança do tom esmeralda, no entanto, não lhe trazia esperança, pois – em seus anos tardios – lhe significaria a ausência disso.


O tempo o moldava no homem que poderia travestir-se de escuridão imersa no branco ou um ponto negro na imensidão branca ao bel-prazer dos que o cercavam. Era a mistura forçosa deles, o cinza imperfeito que adquiria tantas tonalidades desde sua infância repleta de contornos e pontas a serem aparadas, como pedra preciosa que precisa ser polida.


Severus foi a criança de aura pura e pálida que, à medida que crescia, recebia pinceladas de preto mais rápido do que o comum para os de sua idade. O garotinho que a natureza desenhou com a pele descorada e olhos e fios imensamente escuros, num contrabalanço.


O branco passou a ser cinza pálido enquanto os abusos sofridos por ele e sua mãe aconteciam. Eis que uma flor de pétalas brancas invadiu os jardins de sua alma e o fizeram enxergar a claridade em sua forma mais intensa. Dentro das paredes da casa que não ousava chamar de lar, ele era o cinza que escurecia; fora dali, contudo, a limpidez que transbordava da menina lutava para apaziguar aquela iminente e implacável escuridão.


Em Hogwarts, no entanto, ao perdê-la para seu maior inimigo, ele tornou-se uma gota de sangue venoso na neve e, do mesmo modo, um ponto de luz branca a perder-se em horizontes noturnos. Snape era exímio na arte de trasvestir-se na candidez de uma oração a guerrear contra um rito macabro, ou – quem sabe – em todos aqueles anos não passou de um bruxo das trevas que se sustentava à luz cândida de um amor pueril...


Nada além de doces paradoxos – esta expressão, por si só, se trata de um –, da mistura irreversível de opostos, do fingimento. Severus sempre foi razão e desrazão, embora o lado forte dentro de si, o bom (que amava), fosse o que ele mais precisasse reprimir diante do mundo mágico. De seus Senhores e de suas sombras disformes também.


Lily poderia ser sua sombra de contornos esverdeados, mas, por possuir resquícios de luz, ela é o fenômeno que a Física apropriadamente toma por penumbra.


Ignorância é deixar a luz acesa para um cego, incapaz de enxergar outras cores que não o acinzentado de sua aura a escurecer e o verde em que se travestia ao lembrar-se de Lily. Oh, sim, ele era cego. Não era livre para ver, por si, o que o rodeava, tampouco determinava o que seria feito de sua própria existência. O olho esquerdo era seu Lorde e sua sombra obscura; o direito o velho Diretor, de palidez capaz de blindar seu campo de visão, impedindo-o – igualmente – de enxergar.


Fantoche de ambos se descobria, à sombra deles sempre estava. Não passava de um mero peão à mercê de vontades alheias. Diversas vezes despertava de seu sono, dividido entre o dedo em riste de Dumbledore chamando-o de covarde e a gargalhada sardônica do Lorde das Trevas. As vozes misturavam-se em sua mente – se não estivesse ficando louco, faltava-lhe pouco.


No, quem sabe, último capítulo de sua história, as cinzas, ou o que restou daquele homem cinza, eram sufocadas por Nagini. O ácido do veneno corroía suas veias, e o sangue que vertia empapava suas roupas e o piso de madeira se via coberto em poças disformes do líquido denso.


No fundo, Severus desejava que o Potter não precisasse mais dele, afinal, após anos de martírio, ele poderia desfrutar de sua liberdade em outro plano. Livre dos fios de marionete aos quais estava vinculado, livre das vozes a condenarem-no em seus maus sonhos e, o mais importante, livre das sombras que o impediam de enxergar os horizontes de liberdade.


De repente, abriu os olhos e não viu claridade ou obscuridade, e sim esmeraldas que pertenciam a outro dono que não Lily. Em seguida – deixando de lado a desfaçatez da escuridão e o abandono de esmeraldas para enfim recepcionar a leveza da eternidade –, fechou-os, por esperar ser contemplado com a luz branca que o guiaria ao Paraíso, não que se considerasse exatamente merecedor dele. Tentou entreabrir as pálpebras novamente, daquela vez para nunca mais cerrá-las. 


Ele não mais acordaria gritando os nomes que lhe traziam mais desespero do que contentamento. Sem mais Senhores terrenos ele rumaria à eternidade, pincelada em tons do cinza que tão bem o representava.


Fim.


 



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