III – A Lenda e o Mito
O sol estava preguiçoso em despertar naquela manhã, mesmo com os pés calçados com botas pesadas, Alvo tremia até o tutano dos ossos. Arrependeu-se, por um momento por ter se levantado tão cedo, porém ficar deitado esperando que as coisas se elucidassem por si só pareceu-lhe demasiadamente impraticável.
Se não fosse o mau tempo, Alvo acreditaria estar no Céu, riu-se desse seu engano infantil. Ponderou antes de julgar-se tolo. Havia muitas lacunas a serem preenchidas, dentre elas à forma que chegou ali. Sim, lhe cabia resoluções fantasiosas e fantásticas como aquela a respeito da sua quase-morte. Compreendeu que apenas a mulher misteriosa poderia trazer toda história à tona.
Caminhava pelo jardim com a esperança de encontrá-la. Sem sucesso. Escorou-se numa das fontes e ficou admirando o orvalho sobre as folhas e plantas e no estrago, que ele faria a elas quando o sol surgisse vigoroso queimando-as sem clemência.
Por enquanto, o céu nublado era única companhia do jovem, ora ou outra, surgia meia dúzia de pássaros vindo do sul rumando para noroeste. Desejou que pelo menos um deles se aproximasse para se banhar ou bebericar da água que jorravam das fontes, mas com aquele tempo... Ele próprio não ousava em bebê-la ou tocá-la.
Continuou a assistir os pássaros até que sumiram no azul-pálido. Imaginou-se um igual, com assas... Voava e voava, batendo suas longas e felpudas asas, feliz, havia escapado da iminente queda. Respirava, aliviado.
- Havia um jovem que costuma sentar-se bem ai – falou velho, sorrindo, com os dentes amarelados. Alvo havia o visto no jardim noutro dia. O cachimbo, de vida própria, equilibrava-se no canto da boca, e, quando bem queria, largava seus anéis de fumaça ao redor.
Por culpa dos anéis de fumaça dispersados no ar, Alvo não cumprimentou o velho homem, pobre Kendra se visse o filho tão mal educado desse jeito. Alvo permaneceu em silêncio, olhando os anéis de fumaça, e ouvindo o velho sem saber o que dizer. Então o velho continuou:
- E não era mesmo muito talentoso aquele Acace? Todos aqui sabem disso! – entusiasmou-se. - Não existia nada da qual não pudesse pintar. E não pintou Hipocrene e Aganipe? Se pintou, hum, bateu os olhos nestas duas fontes, depois disso pintou-as. Hipocrene e Aganipe, que maravilha!
- Como...? – indagou-o. Hipocrene... Aganipe, será que ouvira bem? Não, não aquele velho só poderia estar caducando, chamando à atenção como os velhos costumavam fazer, afinal, como poderiam aquelas ser as fontes que ele dizia ser, Pobre velho, para isso teriam de estar no berço mitológico, na Grécia, mas não estavam lá.
- Sim, estas são Hipocrene e Aganipe – afirmou. - Águas de pura inspiração.
- Então que dizer que estamos na Grécia. – debochou.
- Ah-há, vejo que não é tão tolo.
Espirituoso, esse velho, não há dúvidas disso. Alvo calou-se, irritado, pois não sabia de nada, e agora isso de Aturar os devaneios de um velho? Já era demais. Precisava voltar para casa, encontrar Gerado e Elifas. Eles estavam esperando por ele. Será que partiram sem ele? Se Ariana não tivesse tido uma crise teria chegado a tempo...
- Um sickle por seu pensamento – sorriu-lhe o velho de dentes amarelados, enquanto anéis enormes de fumaça continuavam a sair de seu cachimbo.
- É um bruxo? – perguntou, depois de ouvir a menção da moeda bruxa.
- Se sou! Pensava ser o único aqui. Mal acreditei quando cheguei aqui! Fiquei dias sem ver viva-alma, e então ela apareceu e contou-me coisas, mostrou-me lugares, falou-me sobre meu juramento.
- Juramento? - perguntou aflito. “Seja na vinda de lá ou na volta, há sempre um juramento.” Foram estas as palavras daquela mulher, tinha memorizado-as bem, e sempre que dormia - naquele quarto que não sabia a quem pertencia – lembrava-se de cada palavra, como se a própria mulher as repetisse em seu ouvido. Um juramento... Então Lá, era ali? Grécia. Poderia ser?
- É preciso fazer um, meu jovem, logo o seu chegará. Tremi no dia do meu, mas Clio disse que não há o que temer se você é alguém de palavra.
- Clio?
- Minha musa! – falou, e antes que Alvo lhe perguntasse qualquer coisa, o velho partia para o sul, deixando grandes anéis de fumaça para trás. Um maior que o outro. Eram brancos, cinzas, incolores, cor de fantasma-das-casas. Eram fumaças. Alvo olhou-os se afastarem. Subiam e subiam cada vez mais até que então... POP. Explodiam-se todos. A fumaça misturava-se nas nuvens. Sorriu, contaria aquilo para Ariana, contaria que as nuvens eram feitas de fumaça de cachimbo de um velhinho que contava histórias fantasiosas.
Mas duvidava menos da capacidade mental do velho agora. Seria coincidência demais falar sobre um juramento que teria de fazer na Grécia, sem contar que, o velho havia mencionado - come era mesmo o nome? – Clio! – sim, era esse o nome dito por ele. Havia mencionado Clio. Tudo bem que a mulher que encontrou perto da fonte não havia dito seu nome, mas qual outra mulher seria, qual outra havia visto desde que colocou os pés ali, quem mais falaria em juramento se fosse a tal Clio? Era ela, em seu íntimo, sabia que era.
Pelo menos sabia onde estava, refletiu, era um ponto positivo. Uma resposta a menos por ansiar dos lábios da mulher que pouco lhe falou. Alvo ouvia a água cair sobre o corpo de Hipocre e Aganipe, sabia que possuíam o poder de inspiração, sabia que Hipocrene fora criada depois de uma fantástica patada do lendário pégaso. Por Deus, estava na Grécia! Será que Gerardo o acreditaria?
A água da fonte deveria estar gelada. Do sol nem sinal ou aviso de que despertaria, beberia da fonte um dia, mas não ousava por ora, talvez quando o sol a amornasse. O barulho que emitiam era música, a água, cristalina. Ficou a olhar a água jorrando, e formando pequenas ondas artificiais, ficaria ali por muito tempo, muito tempo mesmo, mas foi da própria água, do seu reflexo, que viu algo que o afastaria dali.
Vermelho-dourado refletido na fonte. Girou 180 graus e então viu. Do céu irrompia uma ave, tão bela quanto o sol, que dormia. Planava no ar, batia as longas asas e voou até parapeito duma janela tão rápido quanto à luz solar.
Em questão de segundos, corria pela relva, de quando em vez tropeçava nos próprios pés, estava escorregadio, ainda havia orvalho no verde. Adentrou o mármore, subia escadas. Sétima janela, contou, sete lances de escada subiu. Lá estava ela, em vermelho e ouro em penugem.
- Fawkes é mesmo incrível, não?
Era Clio. Finalmente.
- Tens perguntas – afirmou ela.
Alvo concordou. Perguntou a Clio se estava mesmo na Grécia, e se o juramento teria de ser feito ali e quando seria feito Para sua primeira pergunta, Clio confirmou o que ele já desconfiava, quanto ao juramento afirmou que deveria ser feito naquele país, mas negou-se em adiantar quando aconteceria, “ainda não é hora” disse ela.
- Como cheguei aqui? – perguntou após refletir sobre todas as respostas conseguidas até então.
Clio olhou para a ave – Fawkes consegue carregar cargas extremamente pesadas. – falou. A ave piou ao ouvir seu nome, bateu suas longas asas e prostrou-se no ombro Clio, que afagou-a no pescoço.
- Foi Fawkes? Foi fawkes a me salvar de cair? – Alvo se lembrava de manchas vermelha e amarela, mas não soube dar forma à sua visão. Estava tudo tão óbvio agora. Era Fawkes, por isso não tinha caído, havia voado com a ave. Fawkes o impediu de despencar sobre as pedras. Ela o tinha salvado.
Sentiu gratidão pela ave. Queria agradecê-la, mas as palavras pareciam-lhe tão difíceis de sair...
- Fawkes é uma fênix.
- De quem é? – foi isso o que Alvo conseguiu dizer.
- Fawkes é livre.
- Por que ela me trouxe aqui?
- Ordens minhas, é livre , mas me obedece.- disse diante da confusão do jovem.
- Por que estou aqui, Clio?
- Não percebes que tudo que viu e ouviu até agora é o motivo de estar aqui?
- Tudo que vi e ouvi? Ora, há um engano, não vi nada e ninguém! – reclamou.
- Tens certeza?
O que tinha visto que deveria ser importante para gravar na memória? Tinha acordado, dado uma volta no jardim onde encontrou Clio, depois foram para um lugar e tempo desconhecidos, ouviu a conversa de dois homens, então retornaram. Apenas isso aconteceu.
- Onde fomos aquele dia? Por que fomos? –perguntou Clio.
- Foi preciso. É a história.
- Que história?
- A sua, a dele.
- Dele?
- Por céus, Alvo, deve-se prestar atenção nas histórias que lhe são contadas. Há uma razão de ser, sempre há.
- Para isso não! E não sei a quem “ele” se refere.
- Você já o viu. – impacientou-se Clio.
- Como? Tudo que vi foram dois homens, dois homens que nunca vi na antes.
- Pense, então, sobre quem ouviu? - Alvo esforçou-se por recordar das lembranças. Que informação lhe escapara, o que deveria ter guardado?
Fawkes voou até seu ombro, e bicou-o com força na orelha, Alvo teria brigado com a fênix se não tivesse surgido, como um estalido, a resposta.
- É Acace, é por Acace que estou aqui – falou satisfeito -, mas não conheço nenhum.
- Não conheces? Tantos anos de história para nada? Então não estão trabalhando direito quem deveria? O que estão fazendo os contadores de história?
- Bem... – arriscou-se a falar diante da impaciência crescente de Clio - o único Acace que ouvi falar é... mas – riu-se - ele não existe! Não existe mesmo, é uma lenda.
- Por que eu quis que fosse – sorriu Clio.
- Quis? Não estou entendendo...
- Tudo há uma razão de ser.
- Ah, e a minha a estar aqui por alguém que até ontem eu ouvia em histórias fictícias.
- Pela menos, lembra-te da história?
- Como poderia esquecê-la, ouço-a desde pequeno.
- Conte-a para mim.
Alvo não ousou em fazer comentários inoportunos, contou a lenda de Acace de D’gris. A lenda do jovem que havia nascido em um lugar e época desconhecida, um jovem e famoso pintor que inventava e se reinventava conforme queria. Um jovem que na busca da obra de sua vida, largou tudo o que possuía: a família. E quando retornou para o lar, seus credores vingaram-se queimando sua casinha, com família dentro. Pois Acace não tinha entregado uma dúzia de quadros, mas havia recebido adiantado pelo trabalho. Em contrapartida, o pintor também vingou, queimou-os num bosque distante, matou a quem lhe fizera mal. Além de destruir o bosque.
- Nem tudo acontece como se diz – falou Clio ao fim da história. Alvo a ouvia em silêncio. – Acace entregou os quadros, mas eles nunca chegaram onde deveriam. A história foi manipulada, agora uma nova história deve corrigi-la. Sim, tu estás nela, na história, nessa história.
- Quem manipulou tudo? Quem fez isso? Quem deixou que todo um bosque e tanta gente queimassem até às cinzas? Quem fez Acace perder a cabeça após perder sua esposa e filho? – desesperou-se Alvo.
- Na verdade, Acace era solteiro, acolheu a mulher grávida numa noite de natal, ela não possuía nome, ele a chamou-a de Noellë, adotou o filho (que ela não sabia como tinha concebido) para que não sofressem com os comentários maldosos, Acace nunca a amou. Nunca amou, não como um pai deseja que um filho ame. Ele é como a ti. Alvo corou. Desviou o olhar. Clio continuou: - E, quem fez tudo isso, bem, tu o viste também. Junto a Acace, lembra-te de como ele desapareceu quando quis? Não era desaparatação, era e é divindade.
- Apolo, o deus?
- O próprio! Apolo o tinha deixado vir aqui sempre que quisesse, Acace possuía gratidão por isso e por outros presentes. E no fim, apenas porque o jovem o havia ganhado numa disputa de arco e flecha, Apolo decidiu que no fim o venceria.
- Vingança? – arriscou-se em dizer.
- E capricho. Sei que Apolo o felicitou com magia para que pudessem desafiar-se mutuamente em pé igualdade. Acace o venceu, Apolo, enfurecido, voltou-se contra ele.
- E por que não tirou a magia de seu sangue?
- Qual a graça de vencer a quem não lhe oferece perigo? Ele deu magia a Acace, mas em troca quer sua destruição.
- Então Apolo é desses? Dá para depois tomar de volta?
Clio assentiu.
- Qual meu papel nisso tudo? Tenho que fazer o quê?
- Voltará para seu tempo e espaço. Fawkes te acompanharás, quando chegada a hora retornarás para cá, e desafiarás Apolo.
- Desafiar um deus?
- Contradizer uma musa?
- Desculpe, mas quais minhas chances, sendo que Acace não as teve? – perguntou, duvidoso.
- Acace desconhecia a outra face de Apolo, conhecia a boa, mas a demoníaca sequer desconfiou que existisse. Não se admira que não tivesse chances.
- Porque devo lutar contra Apolo?
- Para evitar que Acace seja morto – Alvo surpreendeu-se, coçou a cabeça, incrédulo. Até pouco tempo Acace era mito, sua história, uma lenda e agora ele existia e depois de tanto tempo ainda vivia, como era possível?
- Acace vive naquele bosque. Seu corpo e alma estão presos lá por encantamento.
- Por quê?
- Por que não? – rebateu.
- Por que Acace não pode morrer depois de tudo que fez?
- Não ouviste o que disse? A história foi alterada, deverá ocorrer o equilíbrio, se Acace morrer todo aquele que não deveria possuir magia, mas a tem, perecerá.
- Os sangues-ruins?
- Sim, enfim, tu deverás lutar contra Apolo, Fawkes te manterá vivo até lá. Sua raça depende disso, se a junção dos sangues não acontecer até os puros-sangues deixarão de existir.
- Sou puro-sangue – orgulhou-se em dizer.
- Só por isso essa luta não é tua? E não se deve amar em qualquer forma e espécie? Logo, tu, pensas o oposto? Não devemos proteger a vida como um todo? Não devemos amar e preservar...? Pense nisso, de qualquer forma, há um juramento a fazer. Guarde isso com zelo, e coma isso - Alvo pegou a sacola de pano das mãos de Clio e pôs nas costas, depois pegou o manjar oferecido e o comeu, sem questionar porque deveria fazê-lo. - Nunca deverás contar nada do que aconteceu aqui a ninguém, entendeste?Alvo jurou.
Alvo abriu a porta da sala, adornada de ouro e prata, e surpreendeu-se ao constatar que havia retornado para casa, com Fawkes em seu ombro.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!