Normalidade



- Lílian! Lílian!


- O quê? – falei com a voz embargada.


- Você está bem? – Tiago perguntou.


Minha visão de começo estava meio embaçada, mas então tudo se clareou e percebi que estávamos de volta no porão da Dedosdemel.


- Tiago! – exclamei, me lembrando. – Os dementadores! Milhares deles...


- Está tudo resolvido.


- Como? Você enfrentou todos eles?


- No começo sim. Mas depois alguns aurores chegaram, e como eu ainda estava invisível corri para cá com você.


- Ah, me desculpe. – lamentei, e percebi que minha cabeça estava doendo muito. – Eu nem te ajudei direito e já apaguei.


- Tudo bem, isso é normal. É a primeira vez que você pratica com um dementador de verdade, ou melhor, muitos dementadores. É normal ficar fraca.


Ele me passou uma barra de chocolate.


- Então é melhor voltarmos! – respondi, me pondo de pé, ficando tonta. Ele me segurou. – Se souberem que estamos aqui...


- Acha que está bem o bastante voltar?


- Nós não vamos ficar aqui, vamos?


- Tudo bem, eu te carrego.


- Não precisa, Tiago. Eu já consigo andar.


- Mas...


- Não precisa. – insisti.


- Certo. Então vamos.


Descemos o alçapão e começamos a descida das escadas, apenas as luzes da varinha iluminando o túnel. Eu andava com mais cuidado que o necessário, pois era grande o número de minhas quedas por ali.


- Eu disse que isso foi uma péssima idéia. – comentei, depois de um tempo de caminhada.


- E eu ia adivinhar que Você-Sabe-Quem resolveu mandar dementadores justo hoje para Hogsmeade?


- Como você sabe que foi Você-Sabe-Quem?


- Ora, não é óbvio? Ataques de dementadores é a coisa mais comum do mando de Você-Sabe-Quem.


- Mesmo assim! A gente não deveria ter ido.


- Vai continuar mesmo a brigar comigo?


- Ah, tudo bem. – falei, suspirando. – Eu ainda estou nervosa, me desculpe.


- Certo.


O resto do caminho foi tomado por um silêncio desconfortável. O caminho ficava cada vez mais escuro, mas na verdade eu não estava ligando muito pra isso. Eu estava muito abalada ainda com todos aqueles dementadores deslizando para cima de mim e Tiago, e agora tenho que admitir que Martim tinha razão ao dizer que enfrentar um cara a cara não era tão fácil quanto praticar na sala de aula.


Finalmente o caminho foi se estreitando e enfim chegamos à saída que dava para a corcunda da bruxa.


Tiago consultou o mapa para ver se tinha alguém por perto. Havia apenas Pirraça, que deveria estar escrevendo palavrões no quadro-negro de uma sala próxima.


Saímos cautelosamente para fora da estátua, que no instante depois se fechou.


- Ufa! – exclamei, suspirando aliviada.


- Acha que as pessoas daqui já souberam do ataque?


- Não sei. Vamos conferir, não é?


Porém, quando chegamos ao Salão Principal onde todos os alunos já estava almoçando, nenhum deles pareciam assustados ou amedontrados.


- Olá, gente! – cumprimentou Maria. – Como foi o passeio?


- Terrível. – respondi, enchendo um copo de suco.


- Por quê? – perguntou Aluado. – Foi tão ruim assim a passagem do túnel?


- Pior não foi isso. – disse Tiago sussurrando. – Houve um ataque de dementadores em Hogsmeade.


Maria ofegou.


- Como assim? – perguntou Sirius.


- A gente chegou lá e viu que tava tudo fechado. – Tiago contou rapidamente. – Quando saímos, milhares de dementadores nos atacaram, mas por sorte os aurores chegaram.


- Bem que você está meio pálida, Lílian. – Maria disse, me fitando.


- Ninguém viu vocês? – perguntou Dougie.


- Eu estava invisível e Lílian estava com a capa.


- Mas vocês soltaram Patronos, não? – indagou Sirius. – Eles achariam estranho um cervo por aí.


- Não, quando eles chegaram o cervo já tinha sumido.


- Que horror gente! – Maria disse, tapando a boca com a mão.


- Vocês não podem demonstrar que sabem. – Tiago alertou. – Senão vão desconfiar que a gente sabia de alguma coisa antes do tempo. Acho que não chegou ao ouvido de ninguém por enquanto.


- Gente, se os dementadores estão atacando Hogsmeade, é sinal que estão vindo para cá!


- Impossível. Hogwarts é totalmente protegida. – Aluado respondeu.


- Porém Você-Sabe-Quem tem um verdadeiro quartel general de dementadores, gigantes, Inferis e Comensais da Morte. Eles podem muito bem adentrar nesse castelo.


- Dumbledore fez todos os feitiços que protegem a escola e eu duvido que qualquer uma dessas criaturas do Você-Sabe-Quem pode interferi-los. – Sirius entrou na discussão.


- Nunca se sabe. – Maria murmurou.


- Qual é! Todo mundo sabe que Dumbledore é um dos bruxos mais poderosos, até mais do que o próprio Você-Sabe-Quem! – Dougie comentou. – Todos esses anos nunca um feitiço de Dumbledore chegou a falhar.


- Isso não vem ao caso. – Tiago falou. – O caso agora é que isso daqui a pouco se espalha pela escola, e ninguém pode pensar que sabemos.


Todos assentimos.


O dia passou depressa e ninguém ainda comentava o ataque em Hogsmeade. Até a noite eu continuava adiantando os deveres, já que o suposto plano do passeio fora por água baixo.


- Tudo bem, Lílian? – Tiago me perguntou, sentando-se ao meu lado, enquanto eu terminava minha redação sobre os Feitiços Conjuratórios.


- Como você acha que estou? Mais de cem dementadores partem pra cima da gente e você espera que eu esteja bem?


- Eu sei que foi horrível, Lílian. Mas por favor, não me culpe. Eu tinha planejado tudo certo pra gente se divertir nesse passeio, mas eu não previ nada disso.


- Eu sei. Então pare de me perguntar se eu estou bem, pois eu não estou.


- Você vai ficar.


- Espero que sim. Nem sei se vou conseguir dormir direito.


Ele continuava a me fitar, talvez esperando que eu caísse no choro ou algo do tipo.


- Me desculpe por isso. – ele falou enfim.


Eu o abracei.


- Foi tão horrível. – murmurei.


- Eu sei, mas vai passar.


- É.


Ficar abraçado a ele me fazia sentir bem melhor. Talvez isso me transmitisse o contrário do que os dementadores haviam causado em mim: a felicidade.


- Acho que vou dormir. – falei depois de um tempo.


- É, é melhor você ir descansar.


- Tchau.


- Tchau. – ele disse, com um sorrisinho.


Eu recolhi meus livros e pergaminhos e depois de beijá-lo subi para o dormitório. Alice, Joanne e Laura estavam conversando. Maria e Dougie deveriam estar namorando por aí.


- Olá, Lílian. – Laura me cumprimentou assim que eu bati a porta.


- Oi garotas.


- O que fez de manhã com Tiago? – perguntou Alice, com um sorriso malicioso. – Vi vocês andando por aí.


- Andando pela propriedade e pelo castelo.


- Acho tão bonitinho vocês dois! – falou Joanne. – Bem que eu queria um namorado para mim também. Sou a única que está sobrando nesse dormitório.


- Porque voce não sai com Sirius Black? – perguntei, a idéia surgindo do nada na minha cabeça.


- Porque diz isso? – ela perguntou, erguendo as sobrancelhas.


- É que ele está sozinho como você e talvez desse certo.


- Ah, não sei. – ela disse, com a cara pensativa.


- Acho que vou dormir. – eu disse, entrando nas cobertas sem me dar o trabalho de vestir o pijama. – Boa noite.


- Boa noite. – elas disseram e voltaram a conversar baixinho. Juro que ouvi o nome de Sirius no meio da conversa.


Pra minha surpresa adormeci rápido, sem sonhos e sem pesadelos. Se tive ou não, na verdade eu não sei. Quando acordei no dia seguinte eu já não me lembrava de mais nada.


Havia uma agitação no Salão Principal quando desci. Com certeza a noticia sobre o ataque fora divulgada.


- Lílian, você soube? – perguntou Alice, enquanto eu me sentava na mesa da Grifinória. – Aconteceu um ataque de dementadores em Hogsmeade ontem!


- Sério? – falei, com falso choque.


- É. Minha mãe é uma auror, e ela disse que foi até lá expulsa-los. Parecia que havia muitos deles lá.


- Que horror. – murmurei.


Maria estava sentada ao meu lado esquerdo e então me passou o Profeta Diário, que exagerou em uma noticia:


Hogsmeade atacada por dementadores


Na manhã de ontem, por volta das onze horas, mais de duzentos dementadores voavam por volta de Hogsmeade, um vilarejo próximo à Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts.


Eles estavam rodeando o local, aterrorizando os lojistas e moradores. Os aurores logo chegaram e os espantaram com habilidade usando Patronos.


"É realmente um horrendo fato um ataque de dementadores em plena luz do dia. Acho que com esses tempos não podemos mais viver em paz", declara Madame Rosmerta, a dona do estabelecimento conhecido como Três Vassouras.


"Isso é assustador para nós pais deixar os filhos correndo tanto risco mesmo numa escola protegida. Às vezes pensamos em tirar nossos filhos dos estudos com esses tempos tenebrosos", opina o Sr. Grinner, que tem um filho que atualmente freqüenta o terceiro ano da escola.


Como sempre, os aurores insistem em negar os fatos, e novamente está mais do que óbvio que esse ataque está ligado a ações malignas de Você-Sabe-Quem. (Confira na pág. 7 como se defender de ataques comuns).


- Não sei o que adianta tanto rebuliço nos jornais sendo que ninguém faz nada. – comentou Dougie.


- Acho que todos estão tão assustados com isso que até esqueceram o jogo de hoje. – falou Tiago.


- Hoje tem jogo? – perguntei, devolvendo o jornal pra Maria.


- Sonserina contra Lufa-lufa. – falou Tiago. – Vocês vão ver?


- Claro, temos que secar a Sonserina até o fim, não é mesmo? – disse Sirius, entusiasmado.


- Não estou com animação para jogo hoje. – eu disse, comendo da minha omelete.


- Nem eu. – falou Maria.


- Garotas, a melhor forma de se distrair é com quadribol. – Dougie disse.


- Eu não acho. – Maria respondeu.


- Bom, nós vamos. – Tiago disse. – Hoje eu sou um lufano.


O Salão começou a esvaziar a medida que os alunos tomavam café e iam em direção ao campo de quadribol, uns ainda discutindo sobre o ataque.


Eu e Maria fomos uma das únicas pessoas que não decidiram ver o jogo. A Sala Comunal também estava relativamente vazia, o que era bom, pois podíamos ficar nas poltronas que queríamos.


Ficamos finalizando os deveres e redações; até que acabamos rápido porque ontem também demos uma adiantada.


Da janela da Torre dava pra ouvir um pouco da narração do jogo e uma vez ou outra podíamos entender o grito entusiasmado de Kingston no megafone.


Por volta da hora do almoço, a Sala Comunal se encheu de estudantes comentando o jogo e rindo, e pelo jeito a Lufa-Lufa havia ganhado.


- Cento e oitenta a cem para a Lufa-Lufa! – comemorou Tiago. – Sinceramente eu já estava achando que a Sonserina ia ganhar quando estava cem a trinta a favor dela quando finalmente o tal de Anderson Barne apanhou o pomo.


- Então o jogo foi bom? – perguntou Maria.


- Excelente! Sonserina perdeu, não é? – disse Almofadinhas, se jogando numa poltrona próxima. – Ver aquela cara do Mulciber foi ainda melhor do que o soco que o Pontas deu nele!


- O quê? – exclamei, fitando Tiago.


- Nem vem implicar comigo, Lílian. – apressou-se a responder. – Eu não pude resistir. Nem McGonagall nem nenhum professor estava por perto e ele te chamou de você-sabe-o-quê de novo!


- Eu não estou reclamando. Isso é excelente! Eu queria ter visto.


Todos olharam para mim, incrédulos, quando fiquei nas pontas dos pés pra beijar Tiago.


- Quem é você? O que fez com a Lílian verdadeira? – perguntou Dougie, rindo.


- Mulciber merece muita coisa depois do que ele fez ao Tiago.


- Isso é verdade. – concordou Sirius, mas depois ficou olhando intrigado para o outro lado da sala, onde Joanne acenava para ele com um sorriso.


Reprimi o riso. Com certeza para ele era estranho uma pessoa com quem nunca falou na vida de repente estar sendo tão gentil. Espero que se alguma coisa acontecer entre esses dois dê tudo certo.


Eu parei um pouco pra pensar. Eu deveria abrir uma agencia de cupidos, pois já não é o primeiro casal que eu tento juntar. Na verdade há muito tempo que venho tentando juntar Maria e Dougie. Quem sabe Joanne e Sirius não se entendem?


Descemos para o almoço depois de Tiago fazer uma grande narração sobre o jogo e durante toda a refeição parecia que todos os alunos também só falavam nesse assunto.


Me despedi dos outros quase no fim da sobremesa, pois havia me lembrado de devolver um livro de Transfiguração à biblioteca. Não era muito agradável ir até lá e enfrentar Madame Pince, a bibliotecária. Ela era muito rude e vivia nos espionando por trás das milhares de estantes.


Corri à Torre da Grifinória, apanhei o livro e fui em direção da biblioteca. Antes de virar o corredor esbarrei em alguém e por pouco não caí no chão, se a pessoa não tivesse me segurado.


- Me desculpe, Lílian. – disse Severo.


- Ah, oi.


- Você está bem?


- Vou indo. – respondi, não querendo prolongar o assunto. Às vezes eu sentia falta dele, mas como disse Tiago, era melhor assim. – Com licença.


- Vai continuar fingindo que eu sou um cara qualquer?


- Acho que essa é a definição perfeita.


- Pare com isso. Você não pode acabar com uma amizade assim, do nada.


- Sinto muito. Mas não dá pra continuar uma amizade sem confiança e sem entendimento.


- O que te incomoda?


- Você sabe o que me incomoda! Seus amigos, seus feitiços, seu modo de ser! Se não se lembra você ficou muito feliz quando Tiago foi parar na ala hospitalar por uma Maldição feita por seu amigo!


- Ele ficaria do mesmo jeito no meu lugar!


- Ele não precisaria ficar desse jeito porque nenhum amigo dele é capaz de causar um mal desse tamanho a uma pessoa!


- Ah, é? Então pergunte pra ele!


- Eu não preciso perguntar, porque eu confio nele!


- Cem por cento?


- Sim! – respondi, começando a ficar irritada. – E pare me jogar contra ele! Ele é meu namorado, achei que você já tivesse entendido isso.


- Ele é patético, Lílian! E não serve pra você!


- Ah, é? E o que serve?


Ele não respondeu, continuou a me fitar.


- Não tenho mais nada a dizer. É ruim sempre encontrar você e viver discutindo. Me faz sentir mal.


Eu saí para o corredor. Era sempre assim. Severo mais conversa com a Lílian é igual à discussão na certa. E eu já estava muito cansada de discussões.


Devolvi o livro à prateleira correta, sentindo Madame Pince me olhar desconfiada e saí da biblioteca, que agora se encontrava totalmente vazia.


- Oi. – falei pra Tiago, assim que voltei à Sala Comunal. Ele estava agora adiantando seus deveres.


- Porque está com essa cara?


- Encontrei com o Sev.


- Ah, não acredito!


- A gente discutiu de novo.


- Ele te xingou? Te provocou?


- Não. Veio com a conversa de sempre. Pondo defeitos em você.


- Eu vou arrebentar o nariz curvo daquele seboso...


- Não. Tá tudo bem.


- Eu não acredito que ele ainda tem a coragem de olhar na sua cara!


- Não tem importância.


- Como assim, não tem importância? – ele falou, pasmo. – Ou você quer que eu faça novamente uma lista de coisas que ele já causou?


- Quero simplesmente que você pare com esse assunto.


Ele não respondeu, ainda aborrecido e com a testa franzida.


- Fique longe dele, ok? – falou por fim.


- Eu sei, eu sei.


Ele ainda me olhava desconfiado, talvez não acreditando que eu realmente ficaria longe do Sev.


- Tiago, bezoar se escreve com Z. – eu disse puxando seu dever para corrigir. – E ele é encontrado no estômago de cabra, e não de unicórnio.


Fiquei realmente satisfeita que pelo resto do dia Tiago não tocara mais nesse assunto.


Toda santa vez que eu me encontro com Sev, quando discuto com ele, eu não posso negar que me sinto mal. Que estou fazendo alguma coisa errada. Eu sempre fui tão ligada à ele e como ele diz, a nossa amizade acabou do nada.


Mas tinha que ser assim: ou eu namorava Tiago ou teria Severo como meu amigo.


Às vezes me pergunto se Severo e Tiago fossem amigos. Certo, estou sonhando demais. Mas e se fossem? Seria tudo mais calmo, tudo mais tranquilo e eu poderia viver em paz.


Porém eu já jurei a mim mesma não me importar, não ligar mais para esses dois. Para mim está sendo um grande desafio; um desafio que eu sempre estarei destinada a perder.


O que eu podia pensar agora? Pensar que finalmente o ano está acabando e assim não vou viver mais nessa guerra. Sairei de uma e entrarei em outra.


Saber que tem inimigos muito fortes para se enfrentar lá fora não é tão ruim que saber que seu ex-melhor amigo está se juntando a ele.

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