Gelo e Sangue
- Conta tudo! – exclamou Maria, no café da manhã de domingo.
- Tudo o quê? – falei me servindo de cereal.
- O beijo de vocês! – ela disse revirando os olhos.
- Foi... normal.
Ela suspirou impaciente.
- OK. – falei, rindo de sua expressão. – Ele me deu esse colar e depois ele me beijou.
- É, ele mostrou pra mim.
- Mostrou? – perguntei surpresa.
- Sim. E ele tem bom gosto, não é?
- É. – concordei. – O que vai fazer hoje?
- Os deveres. Não fiz nada o natal inteiro.
- Eu fiz tudo. Nos momentos que Túnia começava a fazer seus grandes relatos matrimoniais eu ia pro meu quarto e adiantava tudo. – expliquei. – Se quiser eu te empresto.
- Quero sim, obrigada. – ela disse bocejando. – E você, o que vai fazer?
- Não sei.
Mas a resposta estava andando na minha direção agora.
- Bom dia Maria. Bom dia Lílian. – Tiago disse. Seus cabelos estavam mais bagunçados do que o normal, espetados para todos os lados. Eu me perguntava se ele não os penteava de propósito.
- Bom dia. – fizemos coro.
- Bom, vou pra sala comunal fazer os deveres. – Maria disse se levantando. Ela me lembrou de mim mesma, quando eu dava a desculpa de fazer deveres para deixar ela e Dougie sozinhos.
Ela saiu, antes dando uma espiada na gente.
- O que vai fazer hoje? – perguntou Tiago, mordiscando seu sanduíche, antes que eu mesma fizesse a pergunta.
- Nada. E você?
- Bom, eu estava pensando se você não queria patinar comigo no lago hoje.
- Tudo bem. – concordei excitada. - Mas vai ser uma missão difícil, pois minha coordenação motora não é tão boa assim.
Ele riu.
- Pode deixar, Evans. – ele falou, piscando.
Assim sendo, eu e Tiago descemos para os jardins cobertos de neve e daí para o lago, que estava completamente congelado.
Não sei da onde Tiago tirava tantos feitiços; com um aceno de varinha minhas botas criaram lâminas na sola.
- Ok. – falei. – Acho melhor você me ajudar a levantar.
Ele deu uma risadinha, mas estendeu suas mãos para mim e com cautela me colocou de pé.
Devagar ele começou a patinar, eu segurando sua mão. Não era tão difícil assim, pelo menos segurando a mão de Tiago.
- Viu? – ele falou. – Comigo não tem problema.
- Você é muito exibido. – repeti e ele riu.
O chão riscava a medida que patinávamos, deixando o gelo marcado.
- Eu não sabia que Maria sabia do colar. – comentei.
- Ela sempre soube de tudo. – Tiago falou, com um sorriso torto.
- Como assim?
- Desde o começo do ano letivo ela vem me ajudando a me aproximar de você.
- Desde o começo do ano?
Eu lembro quando Maria deixara escapar chama-lo de Tiago; ela falara que só estava conversando com ele a algumas semanas.
- Não foi isso que ela disse.
- Eu pedi pra ela não falar nada.
- E o que ela falava pra você? – perguntei curiosa.
- Muitas coisas.
- Como o quê?
- Bem – ele começou, meio corado. – Ela me disse para eu ir com calma com você. Que era para eu parar um pouco de ficar me exibindo e parar de ficar te chamando toda hora para sair. E que era pra a gente ser amigo primeiro.
Fez-se silêncio. O único som audível era o barulho das lâminas no chão e um pássaro que cantava longe.
- Ela te contou sobre o que eu achei no seu quarto? – perguntei enfim, me divertindo, quando ele fez uma cara constrangida.
- O que você achou?
- Uma foto minha.
Ele olhou em outra direção. Eu soltei uma risada.
- Você é tão bobo!
- E você é muito futriqueira. – ele disse, rindo também.
- Eu não resisti. – falei, e então desfiz o aperto de mão. – Acho que já consigo andar sozinha.
No começo eu patinei lado a lado com ele até me desequilibrar; tombei de lado, mas ele correu para me segurar.
- Cuidado. – ele alertou com ar de riso.
- Eu consigo patinar sozinha. - eu disse indignada.
Voltei a patinar sem ele por perto, mas dessa vez fui longe demais. Um pé avançou, mas o outro ficou para trás e eu caí em cima da minha mão. Senti uma dor lancinante.
- Ai!
- Lílian! – Tiago patinou correndo até a mim.
- Estou bem. – eu disse ficando sentada. Meus olhos tinham se lacrimejado de dor.
Eu não tinha quebrado a mão. Apenas havia um corte nela, causado pelo gelo.
Tiago murmurou um feitiço pro meu corte, o mesmo feitiço que eu usara nele uma vez.
- Como está? – ele perguntou, me pondo de pé.
- Estou bem. – respondi. - E pare de rir. – acrescentei, enquanto ele gargalhava.
Ele parecia não ter me ouvido. Eu bufei, e com mais cautela possível dei-lhe as costas, indo em direção à saída do lago. Tiago segurou minha cintura.
- Aonde você vai? – sua voz era ainda de riso.
- Vou embora daqui. – falei, tentando me esquivar do aperto.
- Eu não vou deixar.
- Tente me impedir.
O pior que eu era fraca demais para ele, mas mesmo assim tentei me desvencilhar.
- Fique calma, Lílian. – ele disse, rindo.
- Então me solta!
Ele me soltou. Sua expressão era a que estava prestes a chorar de tanto rir.
- Idiota. – murmurei.
Ele me agarrou pela cintura novamente.
- Você é muito tolinha, Evans.
E então me beijou.
- Sai. – tentei falar, mas ele não deixava. Então decidi não resistir; eu não queria resistir mesmo.
- Chega Tiago. – eu disse depois de um longo tempo, arfando. Sua boca estava ligeiramente vermelha. – Vamos voltar para dentro, estou morrendo de frio.
- Eu te aqueço.
- Não. Prefiro a lareira da sala comunal.
Ele fez uma cara desapontada.
- Vamos logo. – eu disse, rindo e pegando na sua mão.
Patinamos até a beira do lago. Lá ele murmurou outro feitiço e minhas botas voltaram ao normal.
Ainda estávamos de mãos dadas enquanto voltávamos pro castelo.
- Você falou com o Ranhoso? – ele perguntou vagamente.
- Não. E não é Ranhoso, Tiago...
- Eu não sei por que você ainda é amiga dele. Depois de tudo o que ele te disse, tudo o que ele te fez e você ainda gosta dele. Ele adora Artes das Trevas, Lílian, e vai se tornar um servo de Você-Sabe-Quem assim que sair daqui!
Ele terminou a frase com um suspiro.
- Eu já sei disso tudo. – eu disse, de cabeça baixa. – Mas ele é meu amigo de muito tempo. E eu não quero acabar com uma amizade assim.
- Eu sei. Eu também nunca acabaria com a amizade entre mim e meus amigos. Mas chega uma hora que temos que separar deles em algumas circunstancias. Ou pelo menos ajudarmos a não seguir esse caminho. Se bem que o Ranhoso nunca vai ter cura.
Ele dizia tudo aquilo com a voz irritada.
Eu não quis responder. Não quis continuar com esse assunto.
Era muito difícil conviver entre duas pessoas que se odiavam: você não sabia com quem concordar, não sabia em quem acreditar. Sev era um grande amigo, e acho que vai ser difícil eu ficar longe dele, apesar de tudo.
Mas como explicar isso à Maria? Ao Tiago? Eles nunca iriam entender.
Eu sabia que Tiago era muito chegado aos amigos, e por isso talvez tivesse uma idéia geral sobre o assunto.
O que incomodava, porém, era realmente o fato de Sev está se tornando um Comensal da Morte e que cada vez mais ele se tornava o Severo diferente do qual eu conhecia.
Estávamos andando pelo corredor do segundo andar, indo para a Sala Comunal, quando topamos, para minha infelicidade, com Sev. Senti Tiago segurar minha mão com mais força.
Sev olhou de mim para Tiago, e então sua boca se contorceu num sorriso perverso.
- E então, Lílian. Ainda com o seu... – ele olhou pra Tiago com a expressão enraivecida.
- Namorado. – completou Tiago indulgente.
Sev fez um muxoxo.
- Suponho que a Lílian ainda não falou com você a respeito de sua promessa... que digamos, não foi bem cumprida.
- Sim, já falou. E pra sua informação, suas palavras não valeram nada. – respondeu Tiago, a voz se alterando.
- Lamento. – disse Sev, sua voz ríspida; ele olhou pra mim. – Pensei que você seria mais inteligente, Lílian.
- Eu sei, Sev. – respondi, atenta caso algum mostrasse que ia atacar. – Mas eu sei que você também o azarava. E aproveitando a oportunidade eu quero falar pra vocês pararem com isso.
- Só se ele parar. – respondeu Tiago.
- Eu nunca iria perder a chance de acabar com sua raça, Potter. Mas eu sei que você é fraco. Fraco o bastante pra já desistir do jogo não é?
- Tiago! – gritei, quando Tiago agarrou Sev pelas vestes.
- Repete isso. – sibilou Tiago.
- Parem com isso vocês dois! – eu disse, tentando separa-los, sem sucesso.
- Fraco é o que você é. – repetiu Sev, o rosto malicioso.
Tiago deu um soco na cara de Sev.
- Parem! – berrei.
- Quem é fraco agora, Ranhoso? – disse Tiago, sorrindo triunfante. – Você não sabe mais nada a não ser essa sua gloriosa magia das Trevas.
Sev levantou, tonto. Sua boca sangrava. Ele empunhou a varinha, mas não a usou. Ele a jogou de lado.
- Eu vou te provar... vou te provar... - ele murmurou e então avançou em Tiago.
Ele o empurrou na parede e deu um soco em seu estomago. Tiago revidou.
- Socorro! – gritei, olhando ao redor. Eu tinha medo de acabar ferindo os dois se eu usasse magia. Tiago agora sangrava também e ainda batia Sev violentamente, e Sev tentava revidar.
Nesse momento passos ecoaram pelo corredor. Aluado e Sirius puxaram Tiago para junto deles.
- Calma, Pontas! – alertou Sirius apesar de sua voz ser divertida e mostrar o contrário.
Sev levantou, cambaleante.
- Você está bem, Sev? – perguntei.
Ele assentiu e olhou furioso para Tiago que ainda estava sendo impedido pelos amigos.
- Tudo bem, tudo bem. – falou Tiago se soltando de Aluado. Ele e Sirius se entreolharam e assentiram. Hesitantes soltaram Tiago embora tivessem a varinha preparada.
- Você me paga Ranhoso. – falou Tiago e então sibilou: - Fique longe da Lílian.
- Fique você longe dela. – respondeu Sev, olhando de relance sua varinha jogada no chão.
- Acho que nessa situação vai ser difícil. – Tiago riu desdenhoso. Aparentemente eles esqueceram que eu estava ali.
- Veremos. – respondeu Sev. Ele pegou sua varinha caída no chão. – Tchau Lílian.
Eu vi ele se distanciar, até virar o corredor.
Tiago olhou pra mim, seu olhar ainda ríspido misturado com um pedido de desculpas.
- Cuide desse corte. – falei e sem querer dizer mais nenhuma palavra, fui em direção ao retrato da mulher gorda, meio abalada.
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