Cotidiano
Serena avançou por um Salão Comunal semi-vazio, e rumou para seu dormitório. Entrou silenciosamente e fechou a cortina que envolvia sua cama. Deixou-se chorar. Nunca chorara na vida, nem quando pequena, não achava que choro algum resolvesse qualquer coisa.
Porém agora sua mente estava em confusão constante, e todas as emoções misturadas, uma hora transbordam. E no caso de Serena, elas agora transbordavam pelos olhos, em forma de gotas.
Ela chorava baixinho, para não ser ouvida. Mas era o contrário, justamente, o que ela queria fazer. Queria gritar, espernear.
Virou-se então de barriga para baixo, e contemplou de sua janela a lua cheia que pairava no céu.
Tudo o que vinha em sua mente era o último olhar da mãe para ela. Fora tão cheio de sentimentos e significado como Serena nunca conhecera na vida. E sim, o olhar de Snape. Quando falou, após a última lembrança ser mostrada, sua voz e semblante também eram confusos. As palavras eram as mesmas: duras como sempre. Mas o olhar dizia coisas que iam além do conhecimento de Serena, e ela estava demasiada enraivecida para tentar desvendar.
No café da manhã, Serena não apareceu. Não queria encará-lo novamente. Não iria também à primeira aula: Poções. Inventaria depois uma desculpa qualquer, porque naquele dia nada a faria ver Snape novamente.
Seguida de Poções, teria Defesa Contra as Artes das Trevas, ensinado por um bruxo estrangeiro, francês, Louis LeBlanc. Não era um professor muito popular, nem muito querido, era apenas um professor. Ele ensinava DCAT de um modo comum, sem demais demonstrações ou adrenalina, deixando a disciplina cansativa.
Serena deixava a sala de DCAT, distraída tentando lembrar os nomes dos livros que pegaria na biblioteca, para um estudo próprio de Poções. Ela era deveras avançada em Poções, para sua idade e para o pouco estudo mágico que tinha. Porém era um dom natural, íntimo e instintivo demais para qualquer compreensão.
Um garoto de cabelos castanhos esbarrou nela, de leve, porém fazendo-a derrubar todo seu material. Ela abaixou-se para pegá-los, e ele também.
‘-Oh, Me desculpe... Deixe-me te ajudar.’ – ele levantou a cabeça, a fim de ver quem era.
Então encontrou olhos azuis como o céu, e frios como uma tempestade.
‘-Não preciso de sua ajuda, Potter.’ – rosnou ela pegando alguns livros – ‘Vá salvar garotinhas indefesas.’
Ele estivera perdido em seus olhos, até raciocinar o suficiente e associar a imagem daquela garota bonita e misteriosa à Serena Snape, e se criticou mentalmente por tê-la olhado abobalhadamente.
E Harry Potter levantou-se somente quando Serena já deixara o corredor e estava bem longe. Mas os olhos de Serena não deixaram a mente de Harry tão cedo, na verdade, perturbaram-no a noite toda.
Serena não compareceu a mais duas aulas de Poções, até que recebeu um bilhete vindo de uma coruja escura.
‘Senhorita Serena, espero-te em minha sala o mais rápido possível.
Professor Snape’
Ele assinara como ‘professor’, e esse foi um dos motivos de Serena ter comparecido à sala dele. E, bem, se ela não o fizesse, certamente tomaria uma detenção com Snape, o que ela menos queria nos últimos dias.
‘-Pois não, professor?’ – disse quando Snape abriu uma fresta da porta de sua sala.
‘-Entre. ’ – ele disse e virou-se, a fim de se sentar em sua cadeira – ‘Gostaria de saber se a senhorita sabe a data dos exames.’ – disse ironicamente.
‘-Pois sim, professor. ’ – disse, o sorriso fino nos lábios –‘Se é só isso, pergunto se posso me retirar.’
‘-A senhorita não vai poder faltar a todas as aulas de Poções do ano, Serena. Pois, ao contrário do que você pensa, você não sabe tudo sobre Poções. ’
‘-Eu já disse para não me chamar de Serena, professor. ’ – a garota falou, calma e ameaçadora.
‘-Está certo, senhorita Serena. Você não pode fugir das coisas para sempre. Encare-as. ’
‘-Quem sabe quando o senhor encarar, Snape.’ – Serena arqueou uma sobrancelha e saiu da sala.
Serena voltou para o dormitório, após o jantar e arrumou calmamente suas coisas, alguns livros de Poções emprestados da biblioteca e os materiais para o dia seguinte. Todas as garotas já estavam deitadas, dormindo, provavelmente.
Ela lembrou-se da mãe, e uma lágrima escorreu, solitária. Queria ser como ela. Bonita como ela, viva como ela, sorridente como ela, cativante como ela. Mas graças a Severo Snape ela não era. Nenhuma das qualidades, ela pensava, se aplicava a si própria.
Fungou baixinho limpando a lágrima e sentou-se na cama, deixando a mochila de lado. Pegou um dos livros, mas não conseguia prestar atenção às páginas. E, ora, afinal por que Snape lhe chamara? Para atormentar-lhe, certamente.
Tinha raiva dele. E mais raiva ainda de ser tão parecida com ele. Queria ter herdado mais da personalidade sossegada de Alexandra.
Repentinamente, a cortina verde que envolvia sua cama foi aberta e fechada novamente, mostrando-se uma sonserina loira de olhos verdes.
‘-Não consegue dormir?’ – perguntou ela, arriscando um sorrisinho.
‘-Não. Suponho que você também não. ’ – Serena disse e olhou para o outro lado, nada receptiva a qualquer pessoa.
‘-Não.’ – confessou – ‘Pode ser impressão minha, mas eu não acho que você seja tão anti-social assim.’
‘-Pode ser.’ – disse seca, mas intimamente encabulada.
‘-Nunca nos apresentamos formalmente. Sei quem é você, e você sabe quem sou eu. E mais nada.’ – disse, certa do que estava falando – ‘Elizabeth Duncan. Prazer.’ – ela sorriu, estendendo a mão, e quando sorria, Eliza Duncan lembrava Alexia Spring, os olhos iluminados, o sorriso verdadeiro.
Isso a fez desgostar menos da garota.
‘-Prazer, Serena Snape.’
‘-É provável que você não sinta o mesmo, já que você parece se encaixar tão bem na sonserina, mas, bem, não me sinto bem nesta casa.’ – confessou, olhando para baixo.
‘-Só porque não falo com ninguém e sou irônica não quer dizer que me encaixe na sonserina.’- falou de verdade pela primeira vez – ‘Para todos aqui, sonserinos legítimos são idiotas como o Malfoy e o Zabini, que fazem alguma coisa e a sonserina inteira aplaude.’ – Serena revirou os olhos.
‘-Pois é.’ – Elizabeth deu de ombros – ‘Acho que só estou aqui porque meu pai era sonserino. Bem, mas minha mãe era grifinória.’
‘-Eu também estou aqui porque meu pai é sonserino.’ – disse – ‘E realmente não vejo outra casa provável para mim. Mesmo minha mãe também sendo grifinória, acho que nunca iria para lá.’ – Serena deu um riso abafado.
‘-Tenho ouvido você acordada até tarde. Talvez nós duas precisemos de companhia.’
‘-Talvez.’ – Serena disse de mau grado, nunca fora boa em amizades.
‘-Você me lembra alguém... ’ – disse Eliza, pensativa – ‘Não é o cabelo. Seus cabelos são escuros, mas os traços... ’
Serena não disse nada. Apenas observou uma garota doce forçada a ser uma sonserina e riu internamente.
‘-Você está na casa errada, Elizabeth. Com certeza.’
‘-Eu também acho.’ – ela baixou o olhar – ‘Mas o chapéu seletor me disse que eu não poderia ser grifinória, nem corvinal, nem lufa-lufa, então me pôs na casa da qual meu pai foi.’
‘-Você é bruxa? Digo, puro sangue, como o Malfoy costuma dizer.’ – perguntou, curiosa.
‘-Minha mãe é puro sangue, mas meu pai tem alguns trouxas na família.’ – disse, surgindo um sorrisinho simpático e sincero em seu rosto – ‘E você?’
‘-Não sei nada sobre minha família. Cresci num orfanato trouxa.’
‘-Num orfanato?’ – perguntou, pesarosa.
‘-É.’ – Serena deu de ombros.
‘-Mas como você descobriu que era bruxa?’
‘-Meu pai, antes de me abandonar, me deixou um baú, com uns livros bruxos que ele achava essenciais e uma funcionária mestiça que me tirava as dúvidas e me contava histórias sobre o mundo bruxo.’ – disse, sem emoção alguma na voz.
‘-Eu sinto muito’
‘-Não sinta. Não é preciso.’ – Eliza lhe lançou um olhar duvidoso – ‘Mesmo. Cresci sem ninguém, não faz falta quando nunca se teve.’
‘-Deve ser triste, não conhecer os pais.’
‘-Estou acostumada, já disse.’ – Serena disse, sem jeito – ‘Não se preocupe.’
‘-Nós deveríamos conversar mais. Você não é nenhum monstro de sete cabeças.’ – Elizabeth deu uma gargalhada baixa – ‘Estou brincando.’
‘-Cuidado com o que fala, Elizabeth. Não tenho sete cabeças, mas tenho uma varinha’ – ela arqueou uma sobrancelha, entrando na brincadeira – ‘e sei falar Avada Kedavra.’ – disse pausadamente e riu, sincera.
‘-Ah, por favor! Pode me chamar de Eliza. Elizabeth é comprido demais.’ – pediu, rindo também. – ‘Sabe, Serena, você fica diferente quando ri.’ – Serena lançou-lhe um olhar desacreditado e arqueou novamente a sobrancelha – ‘Verdade, sei lá, não parece tanto que você pode azarar alguém a qualquer segundo.’ – a garota riu baixo – ‘Sei que não nos conhecemos, mas parece você. Me entende?’ – perguntou, com um mísero fio de esperança na voz.
Serena somente acenou positivamente. Sabia o que ela queria dizer. Não que acreditasse, é claro.
‘-Acho que vou me deitar... Temos aula amanhã. Foi bom conversar com você, Serena.’ – Elizabeth deu um sorrisinho e acenou, enquanto saía pela cortina que separava as camas.
‘-Também foi bom conversar com você, Eliza.’ – disse Serena, sentada em sua cama.
A garota adormeceu rapidamente, internamente feliz pelo primeiro contato pessoal que tivera com alguém em Hogwarts.
Ultimamente, sonhara muito com uma ruiva de olhos azuis e sorriso sincero. Sua mãe lhe aparecia quase todas as noites. Certas vezes, era um trecho de uma das lembranças de Snape. Outras, ela somente lhe sorria. Algumas vezes ela falava. E toda vez Serena acordava com o coração martelando no peito. Era injusto não ter Alexandra ali.
Serena saiu apressada para uma aula de Poções, ali mesmo, nas masmorras. Acordara tarde e perdera o café da manhã, assim como duas aulas de Trato das Criaturas Mágicas. A garota tinha olheiras fundas, já que acordara a noite toda após os sonhos perturbadores com a mãe. Sua pele estava mais pálida do que o normal e tinha aspecto de cansada.
Era a primeira aula de Poções que ela freqüentava depois que soubera que Snape era seu pai. Foi somente porque não poderia perder mais nenhuma aula naquele dia, e já tinha sido chamada pelo professor Dumbledore. Ela, obviamente, mentiu, e disse que não freqüentava as aulas de Poções porque não gostava do professor, aquilo era comum, ela sabia, ninguém gostava de Snape. Apesar de ser raro na sonserina, ainda era uma explicação plausível.
Foi uma das últimas alunas a entrar na sala, e recebeu um tênue olhar de surpresa do professor.
‘-Ora, quem dá o ar da graça hoje! Senhorita Serena, achei que tivesse desistido da matéria por achar que era simples demais para você.’ – satirizou ele – ‘Da próxima vez, quando minhas aulas não estiverem agradando a senhorita, peço que me avise.’ – sorriu de lado, maliciosamente.
Serena não respondeu, apenas sentou-se em seu lugar de costume, e fez o que lhe era pedido, ao seu modo, é claro.
A sineta tocara, determinando o fim da aula e todos os alunos saíram apressadamente. Serena se enrolara com seus materiais e demorou pouco mais a deixar a sala. Enquanto terminava de guardar suas coisas, Snape veio até ela.
‘-Olheiras, Senhorita Serena. Suponho que a noite tenha sido agitada.’ – disse ele, ironicamente.
‘-Sim, professor, foi muito agitada.’ – respondeu sem ânimo, quebrando o tom de humilhação da pergunta e saiu em direção à aula de Feitiços.
Severo adicionou mentalmente em sua lista mais um traço herdado de Alexia. Quando algo a irritava, ela simplesmente concordava cordialmente e saía, deixando qualquer um sem palavras. E Serena acabara de fazer aquilo, no melhor estilo Alexandra Spring.
Em seu íntimo, Severo desejava saber o que causara olheiras em Serena, aquilo deixava-o atormentado.
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