Um dom desperto



~ Capítulo 7 ~ Um dom desperto

É a verdade o que assombra

O descaso que condena,

A estupidez o que destrói

Eu vejo tudo que se foi

E o que não existe mais

- Metal Contra Núvens, Legião Urbana

Os olhos de Lílian demoraram um pouco para se habituar à luz alaranjada da lareira, acesa em plena primavera. Tinha a cabeça latejante e um pouco de enjôo e sabia que isso nada tinha a ver com a gravidez. Inclinou-se um pouco na poltrona, jogando a cabeça para trás.

Depois daquela perturbadora visita à Hogwarts, Gweena Tirésias já a visitara em casa duas vezes, as quais sempre incluíam a mesma tortura de ficar horas sentada, olhando para o fogo na sala abafada até entrar numa espécie de transe. Eventualmente, conseguia ter visões pouco claras e sem muito sentido, nada como o pavor daqueles sonhos estranhos.

- É natural ter medo. Mas você nunca poderá calar essas visões. Mesmo que você finja que nada está acontecendo, elas vão continuar te amedrontando. É por isso que você tem que conhecer bem o seu Dom, só assim vai saber quando o que ele mostra é verdade e quando você está apenas se amedrontando sozinha.

Lílian mirou Gweena e suspirou sem emoção. Será que as videntes eram tão pouco humanas que não podiam entender quando a pessoa queria ficar um pouco em silêncio? Ela estava machucada, tinha sido atingida por uma potente Azaração Ferreteante numa emboscada, Tiago estava fora há mais de dez dias e há pouco recebera uma coruja de Minerva contando que o Ministério tinha resolvido instaurar um inquérito para averiguar se a Ordem era ou não uma entidade legal e Crouch ventilava a possibilidade de levar a julgamento membros que tivessem usado maldições imperdoáveis, mesmo durante duelos de vida e morte.

- Acho que não quero falar sobre isso hoje, senhora Vablatsky. Eu sei que foi meu marido que pediu para Dumbledore liberá-la para vir aqui, mas...
A vidente a mirou com estranheza, as rugas que marcavam seu rosto como um mapa hidrológico ficaram ainda mais pronunciadas no rosto pálido salpicado de manchas pardas.

- Você não entende - falou por fim, a voz mais asmática que o usual. - A mente humana é limitada, não consegue ir além dos limites do tempo e do espaço, mas pessoas como nós conseguem transcender essa realidade indo além do que os cinco sentidos conseguem registrar.

Lílian piscou confusa. Se estivesse em pé teria tido que sentar porque exatamente naquele momento percebeu nos olhos de Gweena algo que nunca vira ali antes - desespero.

Claro, por que pensar que ela não se sentia sozinha, quando as videntes eram conhecidas por seu isolamento social? Por que pensar que ela estava contente com essa situação? Por que duvidar que mesmo aquela mulher fria pudesse se apegar a outra pessoa simplesmente por achar que ela podia entender pelo menos um pouquinho do seu sofrimento?

- O que você quer que eu veja, Gweena? - perguntou Lílian, por fim, chamando pela primeira vez a vidente pelo primeiro nome.

- A realidade, a verdade além desse véu de ilusões! - a vidente sacudiu os braços ossudos. - Este mundo caminha para a autodissolução, assim como os nossos corpos físicos caminham para a morte. Mas você, como eu, é capaz de ver que tudo isso não passa de ilusão. Passado, presente, futuro, tudo é uma coisa só.

- Eu não entendo...

- Não tente entender as minhas palavras com a mente, elas não têm explicação nem lógica racional. Você sabe tudo que precisa saber, só o que poderá te impedir será o medo de fracassar.

- Eu não tenho medo de fracassar - toda aquela conversa estava deixando Lílian mal-humorada. Estava machucada, suas entranhas ardiam em culpa por ter matado um ser humano e Gweena tinha que escolher logo esse momento para expor suas teorias malucas sobre a realidade. - Eu não quero mais saber, está bem?

A vidente sacudia a cabeça, exasperada, e mechas de seu cabelo cinzento esvoaçaram para fora do capuz. Então se levantou da poltrona e cobriu a distância que a separava da porta sem olhar para Lílian.

- Estamos condenadas ao conhecimento, e você sabe bem disso - murmurou, com a mão pousada na maçaneta. - Mas não se esqueça que o fato de existirem outros planos de realidade não invalida a experiência de se viver neste mundo. Se aqui estamos manifestados, de alguma forma esta existência possui significado.

Lílian ficaria estática pelos próximos, olhando fixamente para a luz da lareira. Suas feições não mudariam nem mesmo quando Gweena saiu. E não mudariam, para o desespero dos elfos domésticos, até que as chamas se tornassem esverdeadas e delas saltasse um jovem envolto numa capa de viagem cheia de fuligem.

Tiago Potter apenas sorriu, e aquilo foi suficiente para que algo se partisse dentro dela. Lílian chorou nos braços do marido.

- Não precisa chorar - murmurou ele, tranqüilizador, passando os dedos pelo rosto dela, limpando as lágrimas.

Ah, como ela amava o toque daquelas mãos...

- Tiago... - sussurrou ela, com a voz fraca - nós somos felizes, não somos?

Provavelmente, pensou ele, abraçando a esposa com força, nunca seria capaz de achar uma resposta para aquela pergunta. Geralmente, eles eram felizes, ou pelo menos, não tinham uma vida infeliz e cheia de dor como muitas pessoas lá fora. Por outro lado, suas vidas estavam atualmente imersas na impotência e na angústia, na espera e na solidão. Não sabia se eram felizes. Assim como não entendia o motivo de Lílian estar chorando de novo.

:::......:::

- Eu nunca pedi pra nascer! - gritou uma Marlene de treze anos.

Elladora simplesmente observou a sobrinha no espelho de maquiagem. Era incrível como uma criança poderia se tornar tão problemática como aquela. Nos bons tempos, uma menina que gritasse dessa maneira com alguém mais velho seria jogada no fosso da mansão para ser afogada pelos grindylows.

- Não pediu? Você devia agradecer por estar aqui! Ângela teve você fora de um casamento respeitável e morreu antes de poder corrigir o erro. Você devia era agradecer por ter parentes tão gentis que aceitaram uma criança bastarda como você no seio da família. Se fosse uma Black, teria sido deixada na sarjeta, isso sim...

Marlene se encolheu junto à parede e ficou olhando fixamente para o chão, enquanto seus soluços se tornavam cada vez mais altos e freqüentes.

- É melhor você ir à casa dos Black amanhã, ouviu?

- Ouvi.

Elladora Black McKinnon parecia muito mais velha que seus quarenta e dois anos. Tinha olheiras permanentes e os cabelos se resumiam a fios irregulares cheios de mechas grisalhas. Na mãe esquerda, que não se ocupava em segurar o espelho, tinha uma taça de sidecar e um cigarro não terminado descansava no cinzeiro de prata sobre a mesa de maquiagem.

- Como você pode beber a essa hora da manhã? - murmurou a garota, aos poucos se recuperando do acesso de choro convulsivo.

- E o que te interessa isso? Por que não quis ir para o Largo Grimmauld com Araminta?

- Estava com cólicas. Fiquei menstruada ontem.

- Ah, então aconteceu... - a voz da tia não demonstrava a menor emoção. Ela pousou o espelho na mesa e levou o cigarro à boca. Após uma longa tragada, completou: - É melhor você tomar cuidado.

- Do que você está falando?

- Do que eu estou falando? Se você fica menstruada pode engravidar! - ela sacudiu a taça, derramando Sidecar no tapete, antes de sorver o restante e, num gesto que parecia corriqueiro, atirou o cristal para longe, para desespero do elfo doméstico, que teve que atravessar o quarto como um foguete para impedir que a taça se espatifasse contra a parede.

- Você costumava ser mais rápida, Kim...

- É Krust, madame...

- Que seja... Vou conversar com o meu marido, talvez você já esteja velho demais. E faz tanto tempo que não acrescento nenhum novo troféu à coleção...

- Não vou engravidar, tia Elladora - disse Marlene.

- Foi o que sua mãe disse. Espero que o que aconteceu com ela lhe sirva de lição.

:::......:::

Marlene olhou mais uma vez para o quarto que fora seu desde que se entendia por gente. As paredes cobertas por um papel de parede florido, cortinas cor-de-rosa, cada centímetro do chão coberto por um fofo tapete lilás. A cama com detalhes em marfim, o enorme espelho, quadros e mais quadros de bailarinas, princesas e fadas.

Em cima da penteadeira cor de marfim, uma única foto num porta retratos azul. De lá, uma jovem sorria em suas vestes de formatura. Não era Marlene, embora fosse muito parecida. Os cabelos escuros e pesados, os olhos grandes e negros, a pele quase pálida demais, o nariz pequeno, as sobrancelhas cheias, o sorriso irônico.

Era sua mãe. Aquela talvez fosse a única fotografia dela que resistira à fúria da família. Isadora McKinnon causara grande alvoroço entre as famílias de bruxo puro-sangue ao descartar um casamento com Elias Malfoy arranjado pela família e, logo em seguida, fugir de casa para viver com um rapaz nascido trouxa.

O tal rapaz (nunca tinham dito a Marlene seu nome) acabou morrendo num atentado ao Gringotes dias antes do casamento. Por vontade da avó e matriarca da família, Isadora voltara para casa, para morrer de parto meses depois. Marlene, filha de um trouxa, para muitos a prova viva da degradação da pureza de sangue, acabou ganhando o nome da bisavó e cresceu num dos berços mais dourados de toda a Grã-bretanha.

Os McKinnon em geral achavam que era tudo perda de tempo, que Marlene tinha um sangue inferior, "misturado", e trataram de manter seus próprios filhos longe da garorota para evitar qualquer "contaminação".

Toda a sua infância fora feita de dias solitários, exceto talvez quando ia à mansão dos Black. Elladora Black McKinnon, casada com um tio de Marlene, tomou para si a tarefa do que considerava ser educar a garota. A vestia como uma boneca, a obrigava a ter longas e exaustivas aulas de etiqueta, francês, latim, dança, música e até pintura. Era uma espécie de vitrine em que Elladora podia exibir sua capacidade de domar "sangues-ruins".

Aquele quarto também fora obra de Elladora. Marlene nunca entendera bem aquilo. A tia sempre parecera ansiosa para vê-la longe e, ainda assim, estava sempre disposta em levá-la em compras infindáveis que sempre acabavam por abarrotar completamente o closet da garota, e também havia sido a única a se preocupar com suas notas da escola.

Elladora era cruel sim. Era cruel com ela, era cruel com todos. Mas fora a única pessoa naquela casa que se importara realmente com Marlene, a única a brigar e gritar com ela. Os outros eram simplesmente indiferentes à criança bastarda que estava ali apenas por causa da caduquice de uma velha.

E, ainda assim, agora que ela morrera, Marlene não via mais razão para permanecer entre seus parentes.

Com a mala na mão, vestindo uma capa de viagem branca, ela tentava se convencer de que o motivo pelo qual resolvera partir para era proteger sua família. Afinal, ela era membro da Ordem da Fênix, qualquer lugar onde estivesse seria um lugar perigoso.

Mas não era esse o motivo. Talvez não houvesse motivo nenhum, afinal.

- Então você vai mesmo? - ela ouviu a voz asmática às suas costas.

Marlene virou e deu com sua bisavó. Era uma senhora muito velha, talvez mais velha que Dumbledore. Era magra, tinha a pele muito pálida e fina, enrugada em volta dos olhos e nos cantos da boca. Os cabelos platinados desciam em cachos emoldurando o rosto ossudo, os olhos fundos eram do mesmo negro dos olhos de Marlene. Suas vestes azul-marinho lhe davam um ar de força e vitalidade.

- Eu... eu não vou pra longe...

- Sei - fez a velha senhora. - Você já disse. Vai morar naquele povoado de trouxas. Mas será possível que você prefere o convívio dessa gente de sangue ruim que da sua família?

Marlene apenas abaixou a cabeça, fechou a porta do quarto e desapareceu no corredor escuro. Sem se despedir, a jovem de vinte anos deixou a casa da família.

Nunca tinha desejado tanto na vida ter Remo por perto quanto naquele momento. Mas faltavam apenas dois dias para a lua cheia. Remo Lupin já estava recolhido e incomunicável para viver seu martírio mensal.

:::......:::

- Posso perguntar uma coisa? - murmurou Lílian para a mulher sentada ao seu lado.

A mesa estava tomada por toda a sorte de pergaminhos, bisbilhoscópios, espelhos encardidos, chaves de portal e dezenas de livros. Da lareira saltavam pelo menos oito cabeças de bruxos, todos se espremendo e se esquivando para conseguir ver alguma coisa do que se passava na cozinha. Um espelho duvidosamente equilibrado sobre a pia mostrava cerca de dez bruxos reunidos numa espécie de sótão empoeirado, cujo teto, muito baixo, obrigava todos a se sentarem encurvados.

As paredes estavam atulhadas de quadros, que não paravam de dar palpites em relação a tudo, mesmo agora, quando ninguém estava falando nada. Todos esperavam apenas pela chegada de Dumbledore e Tiago Potter para começarem a reunião.

Minerva levantou os olhos emoldurados por óculos retangulares dos pergaminhos.

- Pode - respondeu.

- Se a senhora soubesse que está prestes a morrer, o que faria com seus últimos meses de vida?

- Por que está perguntando isso? - Minerva parecia chocada com a pergunta, mas Lílian não queria recuar.

- Tenho tido sonhos...

- Ah, é mesmo... você anda tendo encontros com aquela vidente... a professora Tirésias... Se eu fosse você não me preocuparia tanto com isso. Nada contra ela, mas a vidência é uma... hum, ciência muito incerta. Além disso, depois de Cassandra Trelawney, não foi comprovada nenhuma outra vidente legítima nesse século...

- Não é isso. É que... você sabe que isso pode muito bem acontecer... talvez seja o único meio de vencer.

- Eu prefiro deixar a esperança prevalecer até o fim.

Lílian abaixou a cabeça e se concentrou em mirar um bisbilhoscópio que girava calmamente bem no meio da mesa. Como se reagisse ao olhar, o pequeno peão começou a girar cada vez mais rápido e a emitir um zumbido agudo e irritante, como o de unhas arranhando um quadro negro.

Involuntariamente, Lílian sentiu seus dedos agarrarem as bordas da cadeira, ao mesmo tempo em que sua mente se anuviava. Por um instante, ela achou que perderia a consciência. Mas o que aconteceu foi bem o contrário. Sua mente estava mais ativa que nunca, a despeito do mundo em volta, que parecia se dissolver num redemoinho de cores.

Lílian se viu de pé num lugar escuro. As formas ao redor aos poucos entravam em foco, e ela pôde reconhecer restos das fundações de uma casa. Tudo ao redor era caos: pedaços de móveis, vidros, espelhos, tecidos, tudo feito em pedaços. Só os corpos estavam inteiros. Todos mirando a noite estrelada com olhos desfocados de morte.

:::......:::

- Lílian... O que você tem?

A jovem voltou a si bem a tempo de ver o marido puxar uma cadeira ao seu lado.

- Alguém quer por favor parar esse bisbilhoscópio?! - bradou Amélia Bonnes.

Em resposta, Sírius explodiu o aparelho com um gesto displicente de varinha, e estilhaços voaram e todas as direções, derrubando uma vela que ateou fogo ao mapa do Hospital St. Mungus.
A confusão instalada, Lílian agarrou a mão de Tiago por baixo da mesa e o puxou para perto de si.

- Onde estão os Priuet? - perguntou baixinho.

Tiago lhe lançou um olhar confuso, mas respondeu:

- Se esconderam em Edimburgo. Você sabe, Voldermot está atrás deles... Por quê?

- Diga a Dumbledore para tentar se comunicar com eles - sussurrou Lílian.

- Mas a reunião...

- Agora.

Talvez fosse o tom de voz enfático que ela usara, ou talvez fosse o jeito mandão, herança dos tempo de monitora. Poderia ser ainda o olhar de desespero de Lílian. Fosse qual fosse o motivo, Tiago não pestanejou mais, correu para Dumbledore - que ficara com os bigodes chamuscados na tentativa de controlar o pequeno incêndio.

O velho professor mirou Lílian por um instante, antes de ordenar que desocupassem a lareira. Ele desapareceu nas chamas esverdeadas.

Dois minutos depois, retornou. Olhou pesaroso para um casal sentado numa das extremidades da mesa: uma moça baixinha e gorducha de cabelos castanhos e um homem ruivo, sardento, de corpo comprido e esguio.

- Molly, Arthur... vocês vão ter que ser fortes.

:::......:::

Desculpem pela (enorme?) demora em atualizar a fic u.u

próximo capitulo: só deus sabe...

deixem comentarios ^^

Bel_Weasley.

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