Paradigmas quebrados
Capítulo um
Paradigmas quebrados
Enquanto caminhava até a estação no outro lado da rua, Alvo Potter tinha sua cabeça fervilhando de pensamentos. Em algumas horas, estaria em Hogwarts, a famosa escola de bruxaria. Dali a poucas horas, finalmente enfrentaria aquilo que há muito o vinha incomodando.
Desde que acordara naquela manhã, com um beijo barbudo do pai, não conseguia pensar em mais nada. A colcha vermelha e dourada que pendia da cama do irmão não o ajudava a se acalmar. Logo que chegou à cozinha, Tiago pareceu murmurar algo sobre “sonserina”, mas se calou ante o olhar do pai.
Alvo tomou uma xícara de café e comeu meia torrada, em silêncio. Lílian choramingava com a mãe por não poder ir a Hogwarts. Tiago conversava sobre quadribol com Harry, e exprimia suas esperanças de entrar para o time de quadribol, neste ano.
O assunto “quadribol” fez com que Alvo deixasse a mesa e voltasse ao quarto, respondendo que ia “arrumar algumas coisas de última” hora para a mãe, quando perguntado.
Chegando ao quarto, Alvo afundou o rosto nas mãos. Sentia-se tão diferente da família!
Seus pais, e provavelmente o irmão, eram grandes jogadores de quadribol, mas Alvo mal conseguia montar numa vassoura.
Tiago estava sempre pronto para uma aventura, parecia ter amor pelo perigo. Alvo, por outro lado, preferia ficar sossegado em seu canto, perdido em pensamentos.
Lílian, sua irmã mais nova, era de uma doçura quase inefável. E embora Alvo admirasse essa característica da irmã, não a compartilhava.
E agora, talvez estivesse a ponto de se diferenciar ainda mais da família. Logo estaria embarcando para Hogwarts, e logo poderia estar sendo selecionado para a Sonserina, casa que no passado tivera inúmeros bruxos das trevas.
Alvo sentiu que alguém o abraçava. Levantou a cabeça e viu os cabelos ruivos de sua mãe, emoldurando um rosto cheio de bondade e amor.
– Preocupado, querido?
Alvo não respondeu, apenas fitou os olhos castanhos da mãe. Gina viu-se refletida naqueles olhos verdes que tanto amava, e neles viu o medo.
– Al. Não importa onde você esteja, eu sempre estarei ao seu lado. Sempre, meu amor, sempre.
O garoto sentiu-se abraçado pela ternura que parecia emanar da mãe. De olhos fechados, deixou-se envolver pelo acolhedor abraço da mãe. Sentiu todas suas preocupações o abandonarem, durante aquele momento.
Mas agora, seus fantasmas tinham voltado a assombrá-lo. Viera por todo o caminho discutindo com o irmão, que insistia em mandá-lo para a Sonserina. Ao chegar à estação, a discussão não terminara.
– Não quero ir! Não quero ir para a Sonserina!
A um olhar da mãe, Tiago calou-se. Instantes depois, o filho mais velho dos Potter atravessava a barreira.
Logo depois, foi a vez de Alvo.
– Vocês vão escrever para mim, não vão?
– Todo dia, se quiser – respondeu Gina, amorosa.
– Todo dia não – replicou Alvo. – Tiago diz que os alunos recebem carta de casa mais ou menos uma vez por mês.
– Escrevemos para Tiago três vezes por semana no ano passado – contestou Gina.
– Não acredite em tudo o que ele lhe disser sobre Hogwarts. Ele gosta de brincar, o seu irmão – acrescentou Harry.
Lado a lado com o a família, Alvo empurrou o carrinho rumo à barreira. Cada vez mais veloz, sentindo o vento passar pelo seu rosto, Alvo Severo Potter sentiu-se, pela primeira vez naquele dia, empolgado.
A fumaça da grande locomotiva vermelha enchia a plataforma. Pouco depois da família emergir na plataforma, e caminhar uma pequena distância, viram conhecidos rostos em meio à névoa.
– Acho que são eles, Al – falou Gina.
A família de quatro membros, parada ao lado do último vagão, emergiu da névoa.
– Oi – disse Alvo, aliviado. Em companhia de Rosa Weasley, sua prima, sentia-se um pouco menos apreensivo. Parte do peso que parecia estar sobre suas costas parecer se esvair.
Rosa, já usando as vestes da escola, deu-lhe um grande sorriso.
Os adultos conversavam. Lílian e Hugo, irmão mais novo de Rosa, discutiam sobre a escola, para a qual iriam no próximo ano. Alvo e Rosa permaneciam calados. Um comentário de Rony sobre a Grifinória fez com que os dois se sentissem ainda mais amedrontados.
A conversa cessou. Alvo prestou atenção. Rony apontava algo para Harry.
– Olhe quem está aí.
Um homem de cabelos loiros e sobretudo negro abotoado até o pescoço estava parado ao lado da esposa e do filho – este último, tão parecido com ele quanto Alvo era parecido com Harry. Draco Malfoy dava ao filho as últimas recomendações antes deste partir para Hogwarts.
Percebendo a presença das famílias Potter e Weasley, que fitavam-no fixamente, o Sr. Malfoy deu-lhes um breve aceno de cabeça e se virou de volta para o filho, ajudando-o a embarcar no trem.
– Então esse é o pequeno Escórpio – disse Rony, em voz baixa. – Não deixe de superá-lo em todos os testes, Rosinha. Graças a Deus, você herdou a inteligência da sua mãe.
Hermione, meio séria, meio risonha, repreendeu-o. Logo Tiago reapareceu, alardeando aos quatro ventos que vira Teddy Lupin, afilhado de Harry, beijando Victoire Weasley, filha de Fleur e Gui Weasley.
Harry considerou a ideia de convidar Teddy para morar com eles – uma vez que ele aparecia na residência dos Potter “quatro vezes por semana, para jantar”. Tiago apoiou, aceitando dividir o quarto com Alvo e dando o seu a Teddy. O pai negou veementemente, dizendo que os dois só dividiriam um quarto quando Harry quisesse “ter a casa demolida”.
“Graças a Deus”, pensou Alvo, secretamente, assim que Harry desconsiderou a ideia.
– São quase onze horas – disse Harry. – É melhor embarcar.
– Não esqueça de transmitir a Neville o nosso carinho! – recomendou Gina a Tiago, abraçando-o.
– Mamãe! Não posso transmitir carinho a um professor!
– Mas você conhece Neville...
– Aqui for a sim, mas, na escola, ele é o professor Longbottom, não é? Não posso entrar na aula de Herbologia falando em carinho...
Balançando a cabeça para a ingenuidade da mãe, ele se dirigiu para o trem. No caminho, sapecou um pontapé no irmão.
– A gente se vê, Al. Cuidado com os testrálios!
– Pensei que eles fossem invisíveis – disse Alvo, um de seus medos transparecendo. – Você disse que eram invisíveis!
Tiago, porém, apenas riu, deixando-se ser beijado pela mãe e dando um rápido abraço no pai. Assim que entrou no trem, que começava a se encher, acenou e saiu à procura dos amigos.
– Não se preocupe com os testrálios – disse Harry a Alvo. – São criaturas meigas, nada têm de apavorante. E, de qualquer modo, você não irá para a escola de carruagem, irá de barco.
Gina deu um beijo de despedida em Alvo.
– Vejo vocês no Natal.
– Tchau, Al – disse Harry, abraçando o filho. – Não esqueça que Hagrid o convidou para tomar chá na próxima sexta. Não se meta com o Pirraça. Não duele com ninguém – até aprender como se faz. E não deixo o Tiago te enrolar.
– E se eu for para a Sonserina?
O sussurro foi apenas para o pai, que percebeu que a iminência da partida levara o filho a revelar quão grande era seu medo.
Harry se abaixou, até seus olhos ficarem pouco abaixo dos de Alvo. Poderia estar fitando seus próprios olhos – dos filhos, apenas Alvo herdara os olhos de Lílian.
– Alvo Severo – ele falou baixinho, apenas para Alvo e Gina ouvirem. A esposa teve tato o suficiente para se fingir de surda e acenar para Rosa, que já estava no trem –, nós lhe demos o nome de dois diretores de Hogwarts. Um deles era da Sonserina, e foi o homem mais corajoso que já conheci.
– Mas me diga...
– Então, Sonserina terá ganhado um ótimo aluno, não é mesmo? Não importa para nós, Alvo. Mas, se importar para você, você pode escolher a Grifinória, em vez da Sonserina. O chapéu Seletor leva em conta sua escolha.
– Sério?
– Levou comigo.
Ele jamais contara isso a nenhum dos filhos, e Alvo não pode conter o assombro em seu rosto ao ouvi-lo.
As portas estavam começando a se fechar. Alvo pulou para o vagão, e sua mãe fechou a porta atrás dele. Os estudantes estavam pendurados nas janelas. Grande parte dos rostos, dentro e fora do trem, parecia estar virada para Harry.
– Por que é que eles todos estão nos encarando? – perguntou Alvo, incomodado. Assim como o pai, Alvo adorava levar uma vida tranquila, e não aceitava muito bem a fama.
– Não se preocupe, é comigo – disse Rony. – Sou excepcionalmente famoso.
Alvo, Rosa, Lílian e Hugo riram. O trem começou a se deslocar. E embora ainda apreensivo, o rosto magro de Alvo Severo Potter iluminou-se de excitação. Estava a caminho de Hogwarts, finalmente!
Alvo via o pai acenando até que o trem fez uma curva e a plataforma nove e meia desapareceu. E embora não soubesse, o pai sentia-se ligeiramente roubado por ver o filho partindo...
– Ele ficará bem – murmurou Gina para Harry, na plataforma, quando o trem sumiu de vista.
Harry baixou a mão e distraidamente tocou a cicatriz em forma de raio na testa. Lembrou-se dos pais. Como quisera que tivessem sido os seus pais que o tivessem levado ali pela primeira vez, como queria que seu pai lhe acenasse até sumir de vista...
– Sei que sim.
A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos. Tudo estava bem.
- Então, é isso – disse Rony. Embora tentasse disfarçar, seus olhos ainda estavam presos à curva em que o trem sumira. - Que tal uma passada no Caldeirão Furado pra uma rodadinha de uísque de fogo, Harry? Deixamos as crianças e s mulheres em casa e então... Ainda temos que discutir aqueles relatórios da última missão – acrescentou, ao sentir o olhar de Gina e Hermione sobre ele.
- Suponho que não se importarão se forem acompanhados de suas esposas – disse Gina, com as mãos na cintura.
- Ótima ideia – completou Hermione. - Sempre fui interessadíssima pelo trabalho dos aurores. Além disso, Gina e eu podemos dar um pulo na Floreios e Borrões. O Wishmaster Wizards vai lançar sua biografia oficial, e vocês sabem que somos apaixonadas por essa banda... pela música deles.
Rony amarrou a cara. Harry riu. De repente, sentia-se mais jovem. Lílian pegou a mão de Gina. Harry segurou a outra. Hermione ia de mãos dadas com Rony e Harry. Por sua vez, Rony agarrou a mão do filho. E, juntos, deixaram a estação. O sol brilhava, iluminando os rostos dos inseparáveis amigos e seus filhos.
Sim, pensou Harry. Tudo está bem, finalmente.
Nesse momento, um tremor sacudiu o chão abaixo de seus pés. No céu, uma nuvem negra cobria o sol.
– Ande, Alvo – disse Rosa, puxando-o da janela e despertando-o se seu transe. - Acho melhor procurarmos uma cabine, caso não queira viajar sentado no chão.
Finalmente desgrudando-se da janela, Alvo seguiu a prima, com uma mão arrastando seu malão pelo corredor e a outra segurando a gaiola de sua coruja. Muitos rostos dos que passavam pelo corredor e dos que estavam dentro das cabines se voltavam para os primos. Rosa, preocupada em encontrar lugares vagos, parecia não perceber. Alvo, porém, sentia-se muito incomodado.
Tiveram que caminhar até o primeiro vagão – eles tinham embarcado no último – para encontrar uma cabine com lugares vagos. Não necessariamente foram obrigados – um grupo de veteranos oferecera espaço para eles em sua cabine, lá pelo terceiro vagão. Rosa, porém, negou categoricamente quando sentiu o cheiro que escapava pela porta aberta da cabine. A pequena Weasley já vira a família tomando uísque de fogo, quando Rony fora promovido ao cargo de Supervisor de Aurores e Harry a Chefe da Seção de Aurores. E ela podia jurar que o cheiro que sentira na cabine era exatamente o mesmo que sentira naquela noite.
Alvo já pensava em voltar para o terceiro vagão e dizer aos veteranos que tinham mudado de ideia, quando encontraram a cabine no primeiro vagão. Com muito esforço, jogaram os malões dentro da cabine e jogaram-se, exaustos, num dos bancos.
- Ah, Al! - disse Rosa, a cabeça encostada no ombro do garoto. - É tão estranho, mas ao mesmo tempo é excitante estar indo para o lugar onde nossos pais viveram tantas aventuras...
- Bem... - respondeu Alvo, olhando a paisagem que passava rápido pela janela. - Se por um lado é excitante estar indo para Hogwarts, por outro é triste estar deixando minha família para trás. Já estou com saudades. Pelo menos você está comigo, Rô, e isso realmente significa alguma coisa. De jeito nenhum eu quero passar um ano longe de papai e mamãe com o trasgo do Tiago me enchendo.
Rosa riu. E nesse instante, uma repentina escuridão se formou quando o sol foi encoberto por uma densa nuvem negra, ao mesmo tempo em que o Expresso dava um grande solavanco – não como as sacudidelas do trem seguindo pelos trilhos, e sim um verdadeiro pulo.
Em seguida, o caos. Assim que o Expresso parou, batendo com um grande impacto de volta nos trilhos – impossível dizer como o trem não descarrilara – a porta da cabine se abriu violentamente e um garoto com seu malão foi arremessado em cima dos jovens Potter e Weasley.
Pandemônio. Malões e corpos se confundiam. A coruja de Alvo piava loucamente, junto com outra desconhecida. Por fim, o garoto loiro de olhos cinza estava em cima de Rosa, seu rosto fino e aparvalhado a centímetros da face estupefata da Weasley. Olhos azuis e cinzentos se encararam por um instante.
- Oi! - o grito veio do outro lado da cabine, interrompendo o transe. Alvo não estava numa situação invejável. O peso dos três malões prendia o garoto ao chão. - Eu estou muito bem aqui, sabe, mas não seria nada mau se me dessem uma pequena ajuda.
Sem dizer palavra, Escórpio Malfoy levantou-se e ofereceu o braço para ajudar Rosa. Esta, porém, levantou-se sozinha, e então lutaram para retirar os malões de cima de Alvo. As corujas só calaram o bico quando foram libertadas. Nenhum deles se preocupou muito com isso, provavelmente elas seguiriam o trem.
- Puxa, obrigado – disse Alvo, quando os malões estavam bem acomodados a um canto. - Espere, você não é...
- Escórpio Malfoy, prazer – disse o garoto, parecendo um pouco nervoso, e rapidamente acrescentou: - Por favor, me deixem ficar aqui. Juro que não vou incomodar, eu nem falo com vocês, se quiserem...
Alvo sentiu-se surpreso. Se este garoto era filho de Draco Malfoy, em muito diferia das descrições feitas pela família (principalmente por Rony) sobre Draco. Parecia assustado, e nem um pouco arrogante ou convencido.
- Sinta-se à vontade – disse ele. - Nós somos...
- Potter e Weasley. Quer dizer, Alvo Potter e Rosa Weasley. Meu pai me disse.
Os três foram até a porta da cabine e espiaram o corredor. Muitos estudantes corriam pra lá e pra cá, e monitores gritavam para que todos voltassem às cabines que a situação seria esclarecida dali a alguns instantes.
Os estudantes que passavam traziam consigo as mais mirabolantes teorias. Alguns calouros argumentavam que aquilo devia fazer parte do teste para ingressar na escola. Uns falavam em um raio que teria caído sobre os trilhos. Outros falavam em dementadores.
Alvo voltou para o assento que ocupava, sendo seguido por Rosa e Escórpio. O último bateu a porta da cabine atrás de si.
Os olhos verdes de Alvo agora percorriam a varinha – que carregava no bolso desde que saíra de casa – de alto a baixo. Vinte e sete centímetros, inflexível, sabugueiro e pena de fênix.
Varinha de sabugueiro, azar o ano inteiro. Alvo lembrava-se de tio Rony comentando essa velha superstição, como uma piada, quando Alvo mostrara a varinha nova para a família. E hoje, no momento em que Alvo tocara a varinha em seu bolso, o trem parara de maneira inexplicável.
Descartando essa ideia com um aceno de cabeça, Alvo guardou a varinha e voltou sua atenção aos dois companheiros de viagem, que permaneciam calados e decididamente evitavam se olhar.
Ao ver que Alvo interrompera sua divagações, Rosa começou a falar.
- Como você acha que o trem não descarrilou? Mamãe uma vez me disse que estava trabalhando num projeto de prender o trem aos trilhos por magia. Pode ser isso. O que acha?
- Não sei... - Alvo respondeu vagamente. Desviou seu olhar para Malfoy. Rapidamente, este virou o rosto pela janela e fingiu estar contemplando a paisagem; Alvo sabia que seu olhar estivera fixo nele. O que diabos levaria um Malfoy a dividir uma cabine com um Potter e uma Weasley?
- Hum... Escórpio? - chamou Alvo.
- Sim? - os olhos cinzentos fitavam os verdes.
- É... prazer em conhecê-lo – Alvo disse, apressadamente. Nunca fora bom em apresentações. Ainda mais com um Malfoy. - Então... anh... animado para Hogwarts?
Rosa olhava para o outro lado. Ela não tinha tanta facilidade quanto Alvo para romper o preconceito contra os Malfoy. O garoto, por outro lado, sentia uma estranha simpatia pelo novo conhecido.
- Bastante – disse Escórpio, parecendo aliviado. De que, Alvo não fazia ideia. - Pra qual cas...
Estavam em vias de entrar no assunto que Alvo queria evitar mais que tudo, quando Tiago irrompeu na cabine, varinha erguida, escancarando a porta.
- Finalmente! - exclamou o irmão Potter mais velho. - Procurei vocês em todas as cabines. Cheguei a pensar que vocês não tinham embarcado. Pensei até que vocês tinham parado o trem.
- Imaginação fértil a sua – respondeu Rosa.
- Er... então, tudo bem por aqui? - disse Tiago, incomodado em exercer a função de “irmão mais velho protetor”.
- Tudo – respondeu Alvo. - Tiago, você tem ideia do que aconteceu?
- Claro! O trem deu um tremendo solavanco, então parou.
Alvo e Rosa reviraram os olhos. Entre risadas, Tiago começou:
- Bem, acho que...
Seus olhos caíram sobre Escórpio, quieto a seu canto.
- E você, quem é? - disse, desconfiado. A varinha ainda erguida.
- Escórpio Malfoy.
- Malfoy, é? - Alvo se sentiu incomodado pelo desprezo na voz do irmão. - E o que faz aqui?
- Ele está conosco – interrompeu Alvo.
Por um momento, Tiago pareceu não ouvir, olhos fixos em Escórpio, então se voltou para o irmão e o primo.
- Ele está... com vocês? - disse, sério.
- Sim, está.
- Ok. - Tiago conservou sua estranha seriedade. - Então... eu volto mais tarde, talvez. A gente se vê, Al.
- A gente se vê.
Dando uma última olhada em Escórpio, saiu da cabine.
- Não ligue para ele – Alvo apressou-se a dizer. - Ele até que é boa pessoa, só ficou assim porque... bem, nossas famílias não são lá muito bem relacionadas.
- Tudo bem – respondeu Escórpio, parecendo um tanto infeliz. - Estou me acostumando. Em todas as cabines que passei, até chegar aqui, eu fui expulso assim que me apresentei. Em algumas, nem precisei me apresentar. Numa outra, eu tive que correr para não ser azarado. Por sorte, a próxima era essa.
O trem deu um solavanco para a frente. Logo, estava novamente ganhando velocidade e a viagem prosseguia.
Rosa olhou para Escórpio, com uma expressão estranha no rosto.
- Você foi expulso das cabines até chegar nessa?
Escórpio assentiu.
- Bem... sinta-se feliz por sermos boas pessoas e por não haver outra cabine para a qual pudéssemos te expulsar.
E, puxando um grosso livro de seu malão, entreteu-se na leitura.
Escórpio fitava-a, sem saber se devia se sentir agradecido ou ofendido. Por fim, desistiu de pensar. Desviou os olhos para Alvo, que apenas sorriu e encolheu os ombros.
A viagem prosseguiu calmamente. Desde que o sol fora encoberto por pesadas nuvens negras, não voltara a aparecer. Aquelas nuvens tinham se multiplicado no céu, e agora uma fina chuva caía sobre o Expresso. Por volta das três e meia, as luzes se acenderam e logo depois a mulher com o carrinho de lanches passou.
Alvo não queria gastar muito, por isso comprou apenas uma caixa de feijõezinhos de todos os sabores e alguns sapos de chocolate. Escórpio, por outro lado, comprou um de cada doce do carrinho. Rosa não comprou nada e recusou os doces que os garotos lhes ofereceram – seus avôs trouxas sempre diziam que doces faziam mal à saúde.
Escórpio e Alvo se divertiam comendo os feijõezinhos de todos os sabores. Os dois agora conversavam como dois bons amigos. Qualquer um que visse, não acreditaria: ali estavam dois jovens, um Potter e um Malfoy, conversando alegremente sobre os mais diversos assuntos. Um paradigma quebrado.
Em certo momento, a conversa enveredou pelo que sabiam da juventude de seus pais.
- Papai não gosta de falar muito sobre sua juventude – disse Escórpio. - Ele diz que fez muita coisa errada, e que não gostaria que eu soubesse.
- O meu pai também não fala muito – respondeu Alvo. - Algumas vezes, quando o tio Rony e a tia Hermione e ele se reúnem, eu ouço alguma coisa. Quando ele me vê ouvindo, muda de assunto ou me manda sair. Uma vez, ele me falou que viveu tempos de escuridão, que não quer lembrar.
- Bem, pelo menos, deve ser legal ter um pai que salvou o mundo.
- É menos divertido do que você imagina. É bem chato ter todos os olhares atentos sobre você, aonde quer que vá, te vigiando, te comparando com seu pai. As pessoas esperam que eu esteja à altura do grande Harry Potter.
E Alvo sentiu-se triste. Será que ele era realmente digno de carregar o nome “Potter”? Para começar, havia aquele deslocamento que ele sentia do resto da família. E talvez isso culminasse em...
Alvo forçou sua atenção de volta a Escórpio, não se permitindo pensar o que estava prestes a pensar.
-… e algumas pessoas, quando eu passava, me chamavam de “filhote de comensal da morte” - falava o loiro –, o que quer que isso signifique.
Pela primeira vez, Rosa prestava atenção à conversa dos dois. O termo “comensal da morte” chamara sua atenção. Ela baixou o livro e encarou Escórpio.
- Comensal da morte, você disse?
- Sim. Você sabe o que é?
- Está neste livro – ela mostrou a capa do livro que lia: Ascensão e Queda do Lorde das Trevas: edição atualizada e ampliada.
- E então? - perguntou Alvo.
- Comensais da Morte – respondeu ela, séria – eram os seguidores de Lord Voldemort.
- E quem é esse? - indagou Escórpio.
Alvo e Rosa o encaravam, surpresos.
- Bem – respondeu o outro, desviando o olhar para a janela –, eu me lembro de papai e mamãe comentando algo sobre um tal “Lorde das Trevas” há muito tempo atrás, quando eu era pequeno. Acho que os dois estavam brigando. Esse e o Voldemort são o mesmo?
- Malfoy – respondeu Rosa, incrédula –, Voldemort foi o maior bruxo das trevas de todos os tempos. A história de sua ascensão e queda foi publicada em uns trinta livros, e ocasionalmente as pessoas falam sobre isso. Como você não pode saber quem é ele?
- Eu nunca interagi com muitas pessoas. Na verdade, meu pai...
- Seu pai era um Comensal da Morte, assim como seus avós. Eles eram seguidores do Lorde das Trevas. Os Comensais ajudaram Lord Voldemort a se erguer, derramando o sangue de muitos inocentes.
Agora era Escórpio quem tinha a incredulidade estampada na face.
- Meu... pai? - perguntou, com voz fraca.
Rosa não respondeu. Voltara a erguer o livro na frente do rosto e estava compenetrada na leitura.
Alvo ficara estupefato com a troca de informações. Como era possível que este garoto tão amigável fosse filho de um ex-comensal? Ele não sabia muita coisa sobre o reinado de terror de Voldemort – seus pais nunca o contavam nada –, mas ouvira o suficiente para saber que o Lorde das Trevas e seus seguidores eram extremamente cruéis.
Desde pequeno, Alvo não ouvira muitas maravilhas da família Malfoy. Mas, pelo que entendera, Draco Malfoy era apenas um desafeto de seu pai, tio Rony e tia Hermione na época da escola. Nunca imaginaria algo mais grave que isso.
E mesmo sabendo disso, agora, ele não deixava de gostar de Escórpio. Quem disse que os filhos são iguais aos pais?, pensou. Escórpio é diferente de Draco, e ele vai provar isso a todos.
Pensando isso, Alvo se virou para Rosa, e quebrou o silêncio que se instaurara na cabine desde que ela revelara a identidade da família Malfoy.
- Eu espero que você não esteja julgando Escórpio pelo o que quer que seja que a sua família tenha sido.
O tom de Alvo levou Rosa a abaixar o livro novamente. A voz dele era séria, quase aborrecida. Rosa podia jurar que, no fundo, havia irritação.
- De forma alguma – respondeu ela, tão séria quanto o primo.
- Então por que você praticamente ignorou Escórpio desde ele entrou aqui?
- Não sei – respondeu ela, um tom de ironia. - Talvez tenha algo a ver com o fato de ele cair em cima de mim, me derrubar e nem ao menos pedir desculpas.
- Desculpe – apressou-se a dizer Escórpio, que assistia à discussão, meio assustado.
Os dois o ignoraram, continuando a discutir.
- Talvez ele estivesse assustado. Não foi você que foi expulsa de cada cabine que tentou entrar, foi? Não, você ainda se deu ao luxo de recusar convites, pois as cabines estavam “cheias demais”. Agora o Corp aqui teria entrado até numa cabine com trasgos, se houvesse.
- Ah, “Corp”? Já são amigos íntimos? - ela disse, a ironia agora evidente.
- E daí se formos? - Alvo elevou o tom de voz.
- Olha só pra você, morrendo de amores por um Malfoy!
Antes que Alvo respondesse, Escórpio interveio.
- Parem de brigar – pela primeira vez, ele estava de pé com a cabeça erguida e falava alto. - Eu não quero que dois amigos se separem por minha causa. Parece que a minha presença só trouxe discórdia. Eu estou saindo. Não tem problema se eu ficar no corredor, nós estamos quase chegando; seria até mais prático.
E, arrastando seu malão, se dirigiu para a porta.
Rosa deu um olhar de já-vai-tarde. Alvo, lançando a ela um último olhar de incredulidade, se adiantou até Escórpio.
- Não. Você tem tanto direito de estar aqui quanto qualquer um.
E tomou o malão de sua mão, arrastando-o de volta ao canto. Escórpio permaneceu de pé.
- Então, talvez seja hora de eu sair.
Rosa fechou o livro, que permanecera aberto durante a discussão, enfiou-o sem cuidado – o que não era de seu feitio – dentro do malão.
- Vocês precisam se trocar – disse ela, friamente. - Já estamos chegando. Vou sair para que vocês façam isso.
E bateu a porta da cabine ao sair decidida, quebrando o vidro da porta.
Escórpio olhava para os cacos de vidro no chão. Sentia que transformara em cacos uma amizade tenra e pura.
- Alvo... - começou.
- Não se desculpe – interrompeu o outro. - Se alguém precisa se desculpar, é ela. Vamos, vamos nos trocar.
Escórpio usava roupas comuns: calça, casaco e sapatos negros. Já Alvo ainda estava com a roupa de trouxa com que saíra de casa. Rapidamente trajando as vestes da escola, os dois sentaram-se, devorando mais alguns doces e aguardando que Rosa voltasse. Ela, porém não retornou.
O trem reduziu a velocidade. O maquinista avisou que logo estariam na estação Hogsmeade, e que deixassem a bagagem no trem. Estufando os bolsos com os doces restantes, alvo e Escórpio levantaram-se e esperaram que o trem parasse.
Caminhando ao lado de Escórpio entre os estudantes que se espremiam, ansiosos por sair do trem, Alvo, refletia sobre a viagem. Um Potter e um Malfoy tornando-se grandes amigos. Um Potter brigando com uma Weasley em defesa de um Malfoy.
Sim, aquela viagem quebrara paradigmas.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!