De Pensamentos e Lembranças
Snape deixara Warrick em sua tarefa de detenção e saíra para sentir a brisa noturna por um momento, antes de seguir para a sala do diretor, que o esperava. Enquanto andava ao redor do lago, lhe veio na mente a figura de Allard. Pensou, incomodado, que o garoto parecia-se consigo mesmo, mas afastou o pensamento, propondo que aquela impressão seria somente devida à coincidência quanto ao cabelo. Mas por mais que tentasse, seu coração insistia em ficar apertado toda vez que lembrava no garoto. Rumou ao encontro de Dumbledore, que lhe traria novos pensamentos.
- Boa noite, professor! - Falou alegremente Dumbledore.
- Boa noite.
- Sente-se, por favor! Mandei chamar-lhe porque preciso de um grande favor seu.
- Pois não?
- Você sabe que a professora Lunare está há pouquíssimo tempo na Inglaterra e, bem, ela ainda não conhece Hogsmeade. Pensei que talvez o senhor poderia apresentar-lhe o local, o que me diz?
- Lunare? - Ele não sabia o que pensar e nem mesmo o que responder - Ah, bem... Não creio que seja o mais indicado para apresentar Hogsmeade...
- Oh, não! - Dumbledore riu-se e continuou - Escolhi o senhor porque a Srta. Lunare se sente muito só e creio que vocês têm bastantes coisas em comum e deveriam conversar um pouco.
"Coisas em comum?" Pensou Snape. Então finalmente ele iria entender alguma coisa sobre aquela aparição que lhe confundia a mente...
Estivera na biblioteca tarde da noite logo na primeira semana de aula devido a uma das comuns crises de insônia. Estava na área reservada, concetrado em sua leitura quando escutou um roçar de livros sendo retirados da prateleira. Levantou os olhos para ver um busto de alabastro que só poderia ter saído do Mundo das Idéias. Era alvo, altivo, nobre e feminíssimo. Ossatura perfeita, pescoço delgado, queixo firme, os lábios mais rubros e úmidos do que normalmente os via, as faces afogueadas centrando-se num nariz pequeno e delicado, levemente aquilino, o que reforçava as notas de autoridade. O diamantezinho mínimo que o ornamentava brilhava voluptuosamente e os olhos esverdeados tinham uma fogueira viva por detrás. Ela tinha algo de anormal naquela noite, ele pode perceber que o sangue lhe corria com força e todo aquele ser transbordava a vida. Os cabelos estavam presos descuidadamente e um cacho denso, da cor do tronco do carvalho, caía-lhe sobre o ombro esquerdo lembrando uma musa romana. Vestia um fino robe de veludo negro bordado à prata com um brasão que trazia um "L".
- Lunare... - murmurou, constatando o motivo do "L"
- Sim? - Ela respondeu num suspiro que mal se distingüia do pesado silêncio da biblioteca.
Ele nunca escutara aquele tom de voz vindo dela. Havia algo de estranho e ele havia sido surpreendido pensando alto. Não queria que ela soubesse que ele a havia notado. Procurou se controlar e responder na costumeira secura:
- O que faz aqui a uma hora destas?
- Bem, creio que, como professora, tenho autorização para sair à noite de meus aposentos... - Ela pareceu levemente incomodada e seu tom de voz já não parecia tão etéreo.
- Sim... Claro que sim. - E, sem saber mais o que falar, voltou ao livro.
Lunare se sentou numa poltrona próxima e pôs-se a examinar o volume que tinha em mãos. "Como não percebi ela entrando?! Preciso ficar mais alerta..." - Recriminava-se Snape, em pensamento. Tentou concentrar-se no livro mas o ar parecia saturado demais depois que ela chegara, algo não o deixava centrar-se na leitura. Ela também parecia incomodada, a cada minuto respirava fundo, mexia-se muito na poltrona, cruzava as pernas, punha-se com as costas eretas, passava a mão pela nuca, massageava-se os ombros, simplesmente não conseguia relaxar... Suas faces ainda estavam muito afogueadas, ela parecia estar com muito calor apesar das vestes leves que usava e da temperatura amena do local. Depois de longos minutos, levantou-se impaciente e aproximou-se da janela, abrindo-a para sentir a brisa noturna. À luz da Lua cheia, ficou observando a paisagem de Hogwarts e pareceu distrair-se, acalmar-se com o frescor que a tocava. Sem perceber, Snape voltou a se concentrar no livro e quando sentiu os olhos arderem, viu que a professora adormecera debruçada na janela. Sua primeira reação foi a de ir acordá-la, mas a luz da Lua nela a tornava surreal demais. Um medo estranho o impediu de aproximar-se dela, então simplesmente empurrou barulhentamente a cadeira quando se levantou, esperando que isso a despertasse.
Ela levantou a cabeça devagar, parecendo um tanto perdida, parou por um momento, olhando ao redor e logo levantou-se, pegou o livro e saiu da sala, dizendo um quase imperceptível "boa noite". Andava com passos largos e simétricos, os quadris num movimento hipnótico, silencioso, como uma serpente, o robe negro fluindo como o manto da noite... Aquilo tudo fora perturbador... Logo na primeira vez que a vira, no Expresso de Hogwarts, achou-a fútil e julgou que fosse daquelas pessoas que adoram chamar atenção, principalmente por aquele visual "moderninho" inadmissível! Mas a conversa dela com os outros professores mostrava que ela não era uma ignorante qualquer, uma professorinha ordinária, ela tinha cultura, uma polidez admirável, e falava como se fosse muito mais velha... Depois, no primeiro dia de aula, ela apareceu com aquele vestido e toda a má impressão que as roupas trouxas subversivas deixaram foi por água abaixo. Só então pode perceber que ela tinha um ar arrogante e aristocrático, cabeça erguida, lábios desdenhosos e um olhar superior. E a despeito dessas características, era muito simpática com todos, mesmo com sangues-ruins - notara. A nobreza estava em seu sangue, embora suas atitudes fossem mais... populares. Seria ela, de fato, de descendência nobre? O Mestre de Poções ficou curioso com aquilo. O que uma dama faria lecionando enquanto poderia desfrutar de todos os prazeres de sua posição? A possibilidade de ela ter tido uma história semelhante à sua lhe passou pela cabeça, mas ele logo a afastou, lembrando-se que ela ainda era muito jovem para ter se envolvido com Aquele Que Não Se Deve Nomear... Mas... Lunare... Não lhe era estranho aquele nome...
Snape balançou a cabeça para afastar esses pensamentos e finalmente respondeu à Dumbledore, que o observava com um gentil sorriso no rosto calmo:
- Em comum?
- Sim. Bem, acho que ela pode falar-lhe melhor que eu. Claro, não espere que ela diga tudo desta vez, assim como você não faria isso! Mas tenho certeza que será interessante. Afinal, o que você tem a perder? Já leu tudo o que há na biblioteca mesmo...
Snape deu um leve e rápido sorriso.
- Bem, se o senhor assim prefere...
- Ótimo! Se puder me fazer mais um favor... - Ele abriu a gaveta e retirou um pequeno pedaço de pergaminho - ... traga-me esses doces da Dedosdemel! Ah, e não se esqueça de combinar com a professora um bom horário.
Andava pelos corredores sem prestar atenção onde ia, pensando que tinha sido muito bobo aceitar levar aquela garota para conhecer Hogsmeade, afinal, ela era praticamente uma criança, só vinte e três anos! O que poderia ter em comum com ele! Finalmente chegou ao topo da escadaria e, hesitando, bateu à porta.
- Só um momento!
Ele esperou, impaciente, e depois de alguns minutos ela veio abrir-lhe a porta.
- Professor Snape? Ah... - Ela estava surpresa demais com a estranha presença, fora pega desprevenida, acabara de sair do banho e os cabelos molhados ainda pingavam, formando lentamente uma pocinha no chão. Vestia uma longa camisola de seda preta ornada com delicada renda. Obviamente estava pronta para dormir e não esperava que alguém pudesse vir lhe falar tão tarde... Snape pensava consigo o que, afinal, levara-o a procurá-la de imediato, mas preferiu deixar as considerações para depois.
- Srta. Lunare, o Sr. Dumbledore me pediu se gostaria de acompanhá-la à Hogsmeade...
Antes que ele pudesse terminar a frase, ela corou e falou com um certo tom de arrependimento:
- Oh... Bem, eu sinto muito... Eu havia dito que não incomodasse ninguém por minha causa, mas ele insistiu... Olhe, não precisa...
- Não, será um prazer. - Encarando-a, ele começara a considerar que talvez fosse interessante saber o que ela tinha a dizer.
- Bem... Obrigada.
Ficara marcado para o sábado à tarde e, vagando pela biblioteca, Snape preferia não pensar naquilo até que fosse chegada a hora. Finalmente voltou para sua sala, abriu a porta e deu com Allard, que trabalhava freneticamente e já estava bem adiantado em sua tarefa. O garoto estava muito nervoso e isso lhe pareceu um tanto estranho, já que, quando o deixara, ele estava calmo, embora abatido. Tentou não se preocupar, afinal, ele poderia ter mil motivos. Resolveu dispensá-lo, precisava ficar sozinho.
- Pode ir, Warrick, esses últimos frascos contêm coisas importantes demais para ficar nas mãos de crianças. - e depois de alguns segundos, continuou com a voz fraca - Boa... boa noite.
O garoto despediu-se nervosamente e saiu. Assim que ouviu a porta bater tratou de encher a banheira e lá ficou imerso também em pensamentos... Em Lunare e em Warrick...
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