Pequeno Milagre



Os segundos, pareciam durar minutos.

Os minutos, pareciam durar horas.

As horas, pareciam durar dias.

Os dias... será que já haviam passado dias?

Para Harry, parecia.

Ele não se lembrava de uma situação semelhante, que ele contasse cada segundo, cada minuto, cada hora. Não se recordava de qualquer situação que tivesse ficado tão nervoso. Todas as unhas das suas mãos já haviam sido impiedosamente ruídas até o fim. O polegar direito inclusive estava sangrando.

“ Meu Deus, que tudo dê certo...”

Ele não lembrava a última vez que tinha rezado. Talvez nunca tivesse rezado.

Mesmo quando criança, sua tios nunca haviam o levado ao culto protestante que freqüentavam. Ele jamais havia aprendido de fato as orações da religião. Nem tinha certeza se existia alguém lá em cima zelando por eles, bruxos e trouxas. Os últimos três anos de sua vida o haviam feito ficar quase ateu. Cedrico. Sirius. Moody. Gui. Deus não podia existir num mundo como aquele.

Mas no final, ele estava rezando, a cabeça escondida entre os joelhos encolhidos, os tênis sujando de poeira a cadeira que Pomfrey limpara horas antes com todo o cuidado e perfeição. Harry murmurava o que ele achava que devia ser uma prece. Parto de alto risco, Pomfrey dissera a ele, sem Draco no lado. O sonserino na verdade não sabia que poderia ter complicações quando sua filha nascesse. Hemorragias. Infecções. Uma cesariana feita num garoto por vários medi-bruxos especializados era uma coisa. Por uma única enfermeira de escola, bondosa e esforçada, mas limitada, era outra. Ainda conseguia ouvir a voz de Pomfrey dizendo as chances de Draco e o bebê sobreviverem ...

“Cerca de 60 , Sr. Potter. Mas eu não me preocupo. Nem o senhor deveria se preocupar. Essa menina é abençoada. É um pequeno milagre.”

Um pequeno milagre. Milagre.

Não seria um milagre ele e Draco se encontrarem naquela noite? Não seria um milagre o bebê, ainda do tamanho de uma cabeça de alfinete, não ter sido simplesmente absorvido pelo corpo do loiro? Não seria um milagre não ter acontecido nenhum problema sério durante a gestação? Um corpo jovem de 17 anos não estava preparado para agüentar um bebê. Principalmente Draco.

“Quadris muito estreitos. Estreitos demais para ela. Vai precisar de descanso.”

Um milagre... ou talvez nem tanto.

Afinal, alguma coisa estava acontecendo de errado para Draco praticamente desmaiar de dor por causa das contrações. Um parto prematuro... 20 dias antes do tempo previsto ... podiam significar muita coisa. Três semanas eram três semanas. Faziam diferença.

Agora ali estava ele, esperando qualquer notícia boa ou ruim que Pomfrey pudesse lhe dar. Harry tentava pensar só nas boas. Pomfrey saindo radiante da enfermaria, Pasifae e ele se levantando de um salto: “Nasceu! É uma menina linda! E saudável! O Sr. Malfoy está bem. Só está dormindo, descansando um pouco. Ele precisa”. Mas sua mente o assaltava o tempo todo com lampejos de uma enfermeira com semblante sombrio:

“Lamento. Ele não resistiu.”.

“Lamento muito. Ela nasceu morta.”

“Sr. Potter, eu lamento. Houve uma hemorragia e ... eu lamento muito. Eles morreram.”

E os lampejos continuavam, longos como num pesadelo sombrio que parecia durar horas: Parkinson chorando amargamente a morte do melhor amigo, Ron e Hermione tentando consolá-lo, cheios de pesar, ele... ele olhando um pequeno embrulho de panos que já não respirava, Draco chorando sem controle motivado pela dor pela morte da filha, Draco... Draco... Draco morto. Draco e o bebê mortos.

Se acontecesse alguma coisa, ele seria capaz de enlouquecer. Não conseguia enxergar Draco morto, a pele ainda mais pálida do que costume, os olhos azuis prateados fechados para sempre. Não se imaginava enterrando um pequenino caixão com uma recém-nascida.

Sim, ele enlouqueceria. Mas continuaria vivo. Nenhum dos dois gostaria que ele se suicidasse pela dor da perda. Gostariam que ele continuasse a viver, tentasse superar.

Mas Harry cortaria os pulsos se lhe mandassem escolher.

Já ouvira algumas histórias sobre isso, tanto quando criança quando adolescente. O parto chegava a um ponto extremo, no qual se precisava escolher entre a vida da mãe ou da criança. Os médicos não tinham autoridade para essa escolha; quem escolhia quem viveria era o parente mais próximo, que muitas vezes era o pai.

Uma situação em que Harry nunca se imaginara. Mas agora, parecia extremamente real e palpável.

De um lado, Draco. Se o deixasse morrer, ele simplesmente se sentiria o mais imundo dos seres humanos. Draco confiava nele. Draco o amava.

E ele o amava.

Do outro lado, sua filha. Seu sangue. Sua carne. Não a conhecia realmente. O mais próximo que estivera dela foi uma certa vez em um dos encontros do jardim com Draco. Conseguira ouvir as batidas de seu pequeno coração, com a orelha encostada na barriga de seis meses. Sequer a segurara no colo, mas já a amava e estava disposto a protegê-la com todas as suas forças, inclusive com a sua vida. Se a deixasse morrer, alguma coisa dentro dele iria se quebrar. Se estilhaçar. E Draco, quando soubesse o que havia acontecido... Harry não iria agüentar seu olhar de tristeza e desespero.

Ele não podia escolher entre eles dois. Não conseguia.

“Eu preciso tanto deles...”

Harry Potter nunca havia sido religioso. Nunca havia tido tempo suficiente para isso. Nunca havia se interessado por isso. Mas agora ele precisava ser. No meio de sua prece sussurrada, dirigida a ninguém, ele prometeu que, se tudo desse certo, se Draco e a menina ficassem bem, ele iria ao culto protestante todos os domingos, pelo resto de sua vida, não importava o quanto ela durasse.

“ Seja o que Deus quiser.”

Mal terminara o pensamento quando ouviu um choro alto de bebê ecoar pela anti-sala da enfermaria.


Pansy confessava, no início ela não gostava de Harry Potter.

Nem um pouquinho.

Há alguns meses atrás, ela achava-o muito cheio de si e metido a herói ... bem, achava-o grifinório demais. Depois que mudara de lado, havia começado a mudar sua opinião sobre ele. Tudo bem que ele era metido a herói, mas não era tão cheio de si como ela imaginava. Quando ela mudou de lado, ele tratou-a com educação e pareceu realmente satisfeito que a Ordem tivesse mais uma aliada, ao contrário de Granger, que continuava torcendo o nariz todas às vezes que a via, e Weasley, que fingia que ela não existia.

Depois do descolamento de placenta de Draco, ela virou uma espécie de babá do loiro. Ele freqüentemente desobedecia ao repouso, sob alguma justificativa fajuta. Draco nunca gostara de ficar parado. Apesar de seu comportamento mimado ter tido uma assustadora melhora, ele ainda tinha certas opiniões bastante irresponsáveis, como, por exemplo, achar que o deslocamento de placenta não era tão sério assim. Quando Pansy o surpreendia tentando fugir do repouso, ele insistia em não descansar ( “ Minhas costas vão ficar acabadas”) e os dois acabavam tendo uma discussão. Sempre Pansy conseguia levar Draco de volta para a cama, mas... demorava um tempinho.

Isso até ela descobrir o poder do nome Harry Potter sobre ele. Depois, era só falar as palavrinhas mágicas ( “ O Harry não ia gostar disso...”) para que a discussão acabasse em dois tempos. Draco ainda tentava argumentar, mas usar Harry como argumento era desleal por parte de Pasifae. O loiro desistia, dava os ombros para uma Pansy vitoriosa no Salão Comunal e descia para o seu dormitório. Era absolutamente incrível como Harry, mesmo indiretamente, conseguia convencê-lo de qualquer coisa.

Na época Pansy não entendia muito bem. Mas depois de um tempo compreendeu... era tudo tão óbvio!

Desde que Harry irrompera como um furacão pelas portas da enfermaria, sabendo só Morgana sabia como Draco estava lá, Pansy começara a desconfiar que alguma coisa estava acontecendo entre os dois. A desconfiança só aumentou quando o sonserino conseguiu burlar suas vigilâncias, simplesmente desaparecendo no meio da noite. Como se fosse invisível...

Draco conseguira fugir do inevitável interrogatório da sonserina por alguns dias, mas numa tarde ensolarada de sábado foi literalmente posto na parede: Pansy conseguiu cercá-lo na biblioteca. Depois de alguns minutos sobre pressão cerrada, o garoto confessou: vinha se encontrando com Harry em algumas salas da parte abandonada do castelo.

O queixo de Pansy caiu na hora. Não apenas falando, mas de fato. Ela ficou de boca aberta enquanto Draco corava profundamente naquele canto cheio de livros mofados.

A partir de aí Pasifae começou a ver Harry Potter com olhos completamente diferentes.

O grifinório e Draco podem ter demorado mais do que o previsto do que Pansy achava para se acertarem, mas, quando isso finalmente aconteceu, a transformação nos dois garotos não podia ter sido melhor e mais bela. Draco, cujo sorriso ultimamente se resumia a uma peculiar contração de sobrancelha, passou a exibir no olhar o brilho da mais pura felicidade, e Harry, que andava triste e desanimado, começou a sorrir por razões aparentes tolas, parecendo muitíssimo contente.

Foram seis semanas absolutamente perfeitas para os dois. Pela primeira vez em muito tempo na vida de ambos, as coisas fluíam com perfeição. Até o Lord das Trevas parecia mais quieto. Pansy se sentia feliz pelos dois.

Agora aquilo.

Harry estava sentado com o rosto entre os joelhos, os tênis sujando a cadeira. Naquela última uma hora e meia, ele roera todas as unhas das mãos sem piedade. Uma delas estava sangrando. Qual delas, Pansy não saberia identificar. Estava nervosa demais para isso. Estava quase imitando Harry e começando a acabar com as suas unhas. Sempre achara isso um hábito nojento e repugnante, coisa de fracos. Mas havia certas coisas que mudavam.

Se havia uma lição que Pansy podia tirar daqueles últimos meses, é que certas coisas realmente mudavam.

O sol batia forte nas esquadrias de madeira, fazendo reflexos nas vidraças da ante-sala da enfermaria, formando desenhos de sombras no chão de mármore. Em algum lugar, um relógio bateu meio-dia. Meio distraída pela frustração da espera, Pasifae começou a lembrar de uma antiga lenda bruxa que dizia que crianças que nasciam meio dia em ponto teriam muita sorte. Fazia sentido. De certa forma, eram iluminadas...

“Mas não é possível. Nenhum bebê pode nascer exatamente meio dia em ponto!”

Foi quando um choro ecoou pela ante-sala da enfermaria.


Harry levantou-se de imediato, surpreendentemente alerta, respirando rápido. Pansy pareceu acordar de repente, como se andasse sonhando. Olhava fixamente para a porta.

Uma badalada. Duas. Três. Quatro. O barulho das massas de alunos famintos indo almoçar encheu a enfermaria por alguns instantes, antes de começar a dissipar lentamente e, por fim, desaparecer, como se nunca tivesse existido. Dentro da enfermaria, o choro de bebê parara, sendo substituído por soluços ocasionais. Mas ninguém abria a porta.

Se Harry tivesse que descrever os minutos que passou ali, em pé, esperando alguma notícia, qualquer uma, usaria uma só: angustiantes.

Um, dois, três, quatro minutos. Harry contou-os no relógio de pulso. Acabara de lembrar que estava usando um.

Cinco, seis, sete, oito minutos. Já estava ficando insuportável quando o barulho de alguém mexendo numa gaveta veio de dentro. Mais alguns segundos antes que uma chave se encaixasse na fechadura e finalmente abrisse a porta.

Madame Pomfrey saiu de dentro da enfermaria na qual estivera as duas últimas horas trancada. Seu avental tinha uma estranha coloração avermelhada na frente, parecendo horrivelmente com sangue que não fora muito bem tirado com um Feitiço de Limpeza. Seu rosto estava vermelho e seus olhos se encontravam levemente inchados, como se tivesse chorado nos últimos minutos. Parecia que agora sabiam de onde vinham os soluços.

Harry olhou ressabiado por uns instantes para as manchas de sangue nas roupas da enfermeira, sem entender o que elas estavam fazendo ali, até que se lembrou: sangue bruxo de recém nascido não se lava. Muita mágica concentrada.Respirou fundo, aliviado pela primeira vez em horas, sentindo o coração mais leve. Algo lhe dizia que estava tudo bem. Um pouco atrás dele, Pansy deu um suspiro tão fundo que deve ter matado algumas plantas.

Pomfrey estava visivelmente tentando falar algo. Reunia ar, começava, gaguejava, parava. Depois de algumas tentativas, desistiu. Não ia conseguir falar mesmo. Sorrindo pela primeira vez em meses, apontou para trás, sem se virar. Pansy entendeu que o convite não se estendia a ela e deu um passo para trás, conformada. Haveria muitas chances para ver a menina.

Harry não precisou de segundo chamado. Entrou quase correndo, esquecendo de Pasifae e Pomfrey.

Em contraste com a ante-sala completamente iluminada, a enfermaria em si estava escura, com todas as cortinas fechadas. Havia apenas uma parte iluminada, com três lampiões acesos: a cama de Draco. Ele dormia, a respiração pesada. Harry se perguntou se estaria sonhando com algo.

O bebê não estava em nenhum dos lados da cama dele, mas só bastou olhar uma vez para o lado para ver uma pequena cesta um pouco mais distante, iluminada por uma luz azulada, bruxelante. Harry foi caminhando para lá, os passos leves para não sobressaltar nem assustar o bebê. Ter um primeiro contato com a filha assustada e chorando não ia ser lá muito bom.

Apesar dos passos calculados, chegou lá num instante. Diferentemente do que achava, a cesta não era funda. Conseguiu ver a filha num instante, uma coisinha rosada e linda, quase sem cabelos. Tinha os olhinhos fechados, talvez para proteger-se da luz azul. Era maravilhosa, era... perfeita. O coração do grifinório parecia que ia explodir, e ele estava prestes a cair no choro como Pomfrey. Suas mãos se apoiaram nas bordas da cestinha, pensando se seria certo pegá-la no colo.

Foi quando aconteceu algo que não previa: a luz azul simplesmente clareiou, deixando uma luz amarela suave no lugar.O bebê estremeceu de repente, os olhinhos ainda fechados. Harry receou um pouco, sem saber muito bem o que fazer, até que o instinto paternal foi mais forte que a razão e ele pegou o pequeno embrulho de lençóis com todo o cuidado, como se estivesse segurando um cristal.

Nos braços dele, ela parecia ainda mais frágil e delicada. Começava a pensar se a luz azul não seria um equivalente bruxo da incubadora trouxa, já que ela nascera três semanas antes do esperado. Como se já soubesse fazer isso, começou a niná-la, balançando-a de um lado para o outro suavemente, um amor poderoso transbordando de seu coração.

Ela abriu os olhos vagarosamente, como se fosse a primeira vez que os fizesse. Seus olhinhos passearam um pouco antes de se fixar no rosto de Harry, encarando o pai como se estivesse vendo seu reflexo nele. Esmeralda encarando esmeralda. As lágrimas transbordaram dos olhos do grifinório. Se o bebê não fosse tão pequeno, poderia jurar que ela estava sorrindo.

Naquele momento viu que o nome dela não poderia ser Clarice. Apesar do nome ser lindo e suave, como a pequena, ela tinha nos olhos uma força estranha, peculiar. Seu nome tinha que fazer jus a ele. Aconchegada nos braços do pai, a menina fechou os olhos lentamente. Queria mesmo dormir ali, quentinha e segura. Harry segurou-a com mais firmeza e começou a niná-la de novo, sussurrando uma canção de ninar que tirara não sabia de onde da memória: “My Bonnie lies over the ocean... My Bonnie lies over the sea...”

Naquele dia, pouco lhe importava o resto do mundo. As duas coisas que mais amava na vida estavam naquele quarto. Ele não precisava de mais nada. Nada.

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