Capítulo I



Aquele fora um dia difícil, pensou Harry, Dezessete horas de trabalho pesado, interrompido por pequenas escalas desastrosas.


Não havia uma só parte do corpo que não doesse. Trabalho físico pesado, porém, não o aborrecia. Não, eram os problemas inesperados, que ele não tinha tempo de resolver, que realmente o importunavam. E, naquele dia, haviam acontecido desde o amanhecer.


Quando estava a caminho do pasto, para acompanhar a marcação do gado, teve um problema com a mangueira do radiador do carro. Infelizmente não havia outra, de reserva. Precisou tirar Lupin do trabalho para mandá-lo a um vilarejo, a cento e oitenta quilômetros de distância, para comprar uma mangueira nova. A irritação do início do dia foi coroada coma interrupção do trabalho, porque uma cerca caíra e algumas reses haviam fugido.


Durante aquele dia, o calor fora abrasador. Para compensar, a temperatura da noite estava agradável.


O rangido da porteira que separava a centenária casa principal de Malagara das outras construções perturbava o silêncio da noite e, embora estivesse assim há seis meses, Harry lembrou-se de colocar óleo nas dobradiças. Sua lista de reparos era interminável, pois o tempo não era suficiente.              


Dane-se!, ele pensou, curvado pela fadiga, tropeçando no terceiro degrau da escada da varanda.


O telhado da casa precisava de uma reforma, mas, ao menos, as paredes e o forro estavam em ordem. Harry não tinha nem tempo, nem inclinação para consertar o que quer que fosse. Na realidade, naquele instante, só pretendia fazer três coisas: beber uma cerveja gelada, tomar um demorado banho morno e cair na cama. O que quer que exigisse mais esforço físico poderia esperar até que se levantasse, às quatro e meia, na manhã seguinte. Com certeza, o novo dia não seria tão infernal quanto aquele.


Caminhou através da escuridão da casa até chegar à geladeira e pegou uma cerveja. Enquanto abria a lata, pensou em acender a lareira, pois poderia esfriar mais tarde, como era típico em fins de maio. Mas rapidamente mudou de idéia, em vista do trabalho que isso lhe daria.


Terminada a cerveja, dirigiu-se ao banheiro, para cumprir a segunda etapa de seu plano: tomar um banho relaxante.


Harry mal fechara os olhos quando o alarme do relógio forçou a abri-los. Ergueu o braço esquerdo e pressionou pino. O som continuou.


Proferindo uma série de impropérios, ele bateu no relógio com força. Continuou tocando.


Antes que alcançasse o objeto, seriamente tentado a jogá-lo longe, deu-se conta de que fora a campainha do telefone que o acordara.


Colocando o relógio em pé, ele rosnou. Era pouco mais de onze horas. Xingando, empurrou as cobertas para o lado. - Está bem! Está bem! Já vou!


Só havia um aparelho de telefone na velha casa. E, considerando a hora e o frio, Harry não estava em seu melhor humor quando, ao pegar o fone, tropeçou.


- Potter! - ele vociferou.


- Harry?


Ao ouvir a voz da irmã, a impaciência se abrandou. - Luna?


- Hermione deveria ter-me ligado quando chegou, mas não o fez.


- Hermione? Mas que Hermione?


- Quer dizer que ela não está aí? - A voz da irmã soou repleta de pânico.


- Aqui? Luna, é muito tarde. Não tenho a mínima idéia do que você está falando...


- A especialista em computadores que você pediu-me que enviasse.


Ele rosnou. Com tudo o que estava acontecendo, a decisão de informatizar os controles e os estoques de Malagara era a menor de suas preocupações. Especialmente naquela hora. -  Havia me esquecido. Desculpe-me. Escute, estou confuso. Telefonarei amanhã, e combinaremos quando será a melhor ocasião para ela vir.


- Harry! Acabei de lhe dizer que Hermione já deveria estar  aí!


- Aqui? Agora?


- Sim! Você bebeu?


- Não - ele murmurou, olhando à sua volta, tentando acordar direito.


- Telefonei para você há uma semana!


- Sim, sim. Lembro-me. Escute Luna, não há motivo para pânico. O avião deve ter se atrasado e ela certamente decidiu ficar em Isa em vez de dirigir até aqui. "


- Ela não ia dirigir. Um de seus conhecidos do aeroporto de Mount Isa telefonou e disse que lhe conseguiria um lugar no avião de um vizinho. Alguém chamado Weasley ou algo parecido iria levá-la até Malagara. Mas, se ela ainda não chegou, onde... Oh, o avião deve ter caído!


- Luna...


- Os aviões pequenos sempre caem.


- Luna! - Ele a interrompeu com energia e deu um longo suspiro. - Acalme-se, está bem? O avião não caiu. Eu já saberia, caso fosse assim. E, com certeza, também saberia se algo houvesse acontecido com Ron Weasley.


- Então onde está Hermione? Por que não chegou aí? Por que não telefonou para mim?


Só a genuína preocupação na voz da irmã conseguiu diminuir a irritação dele.


- Ron é muito sociável e gosta de desempenhar o papel de rico barão. Provavelmente ela está em Primrose Downs, degustando de um jantar cinco estrelas, acompanhado de um vinho centenário. Relaxe. Vou ligar para lá. Qual é mesmo o nome dela?


- Hermione. Hermione Granger.


- Pensei que fosse mandar um rapaz.


- Sim, mas achei que Elliot não era muito confiável.


- Essa Hermione também não parece grande coisa. Afinal, nem sequer lhe telefonou, como combinaram.


Ouviu-se um longo suspiro do outro lado da linha.


- É isso que me preocupa. Hermione sempre cumpre o prometido. É uma das pessoas mais responsáveis que conheço.


- Talvez ela tenha esquecido e...


- Não seja ridículo! Hermione não esquece, é muito responsável. Estou realmente preocupada.


- Está bem, está bem. Vou ligar para a casa de Weasley e lhe informo em seguida.


Depois de tentar tranqüilizar a irmã, Harry desligou o telefone e soltou um longo e cansado suspiro. Tudo o que queria era ir para a cama. Resignadamente, discou o número de Weasley.


 


-


 


- E então - Hermione disse em voz alta, procurando esquecer a secura de seus lábios enquanto atravessava a estrada empoeirada, na esperança de que o movimento a protegesse do frio -, depois de pegar cada cliente dela, vou comprar a empresa e fazê-la trabalhar na recepção.


O som do motor de um carro interrompeu seu plano de vingança contra Luna. Com o coração palpitando, arremessou-se na direção do ruído e, um segundo depois, precisou proteger os olhos quando uma luz repentina iluminou a mureta que se estendia paralela ao aeroporto. Quase instantaneamente, duas outras luzes, mais fracas, surgiram, e levou um instante para que ela identificasse a configuração triangular na capota do carro e nos faróis.


- Obrigada! Oh, muito obrigada mesmo! - sussurrou com fervor, mantendo-se imóvel enquanto o veículo avançava.


O carro parou a alguns centímetros de Hermione, que não conseguiu evitar o desejo de estender o braço para tocá-lo. Através da lataria do capô, os dedos absorveram as últimas vibrações do motor, mas, quando a máquina parou, uma emoção brotou dentro dela. Uma mistura de raiva, alívio, gratidão, choque.


Lógico que o alívio e a gratidão seriam manifestados mais tarde. A raiva, que vinha cultivando nas últimas cinco horas, era prioritária. Valorizar a raiva foi o único meio de ignorar como estava sedenta, faminta e com frio. E, admitiu pela primeira vez, como estivera assustada.


- Você está bem? - um homem perguntou, aparecendo por detrás do volante.


À medida que se dirigia até onde ela se encontrava, duas coisas ocorreram a Gina. Uma era que seu salvador era alto, muito alto. A outra era que, por ironia, naquele instante em que se sentia segura, tinha vontade de chorar. Balançando a cabeça, forçou-se a manter a calma, para não gritar de raiva ou atirar-se nos braços daquele estranho e soluçar como um bebê.


- Você está bem? - ele repetiu.


Hermione meneou a cabeça, incapaz de emitir um som. Tentou sorrir, mas não conseguiu. Em circunstâncias normais, seria prevenida, mantendo uma distância prudente de qualquer estranho, mas estava longe de tudo o que era normal há muito tempo.


Nem se preocupou em perguntar o que continha o frasco plástico que ele colocou em suas mãos. Como era um líquido, sedenta, Hermione o bebeu, levando-o aos lábios com mãos trêmulas e deixando-o escorrer pelo queixo. Era fresco, familiar e mais gostoso do que o melhor champanhe.


Durante o rápido trajeto de quatro quilômetros de sua casa até o pequeno aeroporto, Harry já se resignara a passar o restante da noite dirigindo, à procura da moça da cidade grande. Encontrar Hermione Granger, inteira, e no lugar previsto, fora um milagre. Quem sabe ainda pudesse dormir algumas horas naquela noite...


- Ao menos teve o bom senso de ficar parada - disse ele, com expressão de alívio, passando a mão pelo pescoço. - Não gostei da idéia de passar muito tempo procurando por você, depois do dia que tive.


- O dia que você teve? - ela perguntou, ofegante, afastando do rosto uma mecha do cabelo escuro. - Ergueu o tom da voz, como se ele não a houvesse escutado. - Fiquei nesse fim de mundo sem nada para comer ou beber. Passei muito calor e, de repente, esfriou tanto que precisei vestir nem sei quantos agasalhos embaixo deste.


Deste, para Harry, assemelhava-se a um roupão de banho. Parecia haver um volume considerável sob ele, mas Harry não conseguiu deduzir quanta roupa Hermione vestia, nem como era. Limitou-se a admitir que mostrara bom senso em proteger-se, a julgar pelas seis malas que estavam no chão, a alguns passos. A moça tinha roupa suficiente para enfrentar uma nevasca na Antártida.


- Precisei espantar os borrachudos, mosquitos e outros tipos de insetos. O tempo todo imaginando se aquele rebanho não viria sobre mim. Então não comece lamentando quão ruim foi seu dia.


Harry não lhe contou que aquelas cinco novilhas não constituíam um rebanho, nem para um fazendeiro novato. Tampouco acrescentou que aqueles animais estavam sendo cuidados pelos filhos de Lupin e que não ofereciam risco para ninguém. A sabedoria cochichou-lhe que gastaria saliva à toa.


- Bem, se estiver pronta agora, podemos começar a...


- Estou pronta há seis horas! Será que você poderia me dizer por que ninguém veio me esperar?


- Sinto muito por isso. Aconteceu um mal-entendido.


Achei que você viesse de carro. Pensando bem, hoje foi um dia terrível.


- Infernal. E a noite não foi nenhum piquenique. Liguei para sua casa a cada dez minutos até gastar a bateria de meu celular.


- Celulares só funcionam perto de Isa. Não há antena de retransmissão por aqui.    


- Sem antena... - Ela levantou os braços para o céu.


- Ótimo! Aterrissei no século XIX. Provavelmente também não têm eletricidade, muito menos ar-condicionado ou refrigeração. Nada senão calor, sujeira, poeira e... nada mais.


Mesmo em dias normais, Harry não tinha tempo para mulheres histéricas. Mas o fato de saber que ela tinha motivos justos para estar perturbada o impediu de mandá-la calar-se ou de largá-la ali o resto da noite.


- Escute - ele falou, procurando controlar o tom de  voz -, por que não entra no carro, enquanto pego suas malas? Imagino que queira alimentar-se e beber algo quente.


- Na verdade, o que mais quero é dizer a Harry Potter exatamente o que acho do tratamento deplorável que dedica aos visitantes. E, depois, um demorado, muito demorado banho quente.


- Bem, srta. Granger, uma dessas vontades é inútil e a outra, redundante.


- Por quê? - Ela o seguiu, enquanto Harry pegava duas das malas e as colocava na traseira da caminhonete.


- Primeiro, não temos água quente. Segundo, sou Harry Potter.


-Oh!


Potter ficou satisfeito ao perceber que ela ficara mortificada ao descobrir-lhe a identidade.


- Oh! - ela repetiu, levando uma das mãos ao pescoço. - Aqui não existe água quente?

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