O menino que sobreviveu.



O sol brilhava na janela e me atrapalhava de dormir. Tentei colocar as cobertas no rosto, mas elas eram tão finas e rasgadas que nem fazia sentido tentar. Mas, além do sol outra coisa me incomodava: uma sensação de vazio, de perda, de prensa no coração. Como será que era a sensação de viver feliz. Já tinha vivido alguns momentos felizes, mas como seria acordar e dormir feliz e não pensar que lá fora pessoas podem estar morrendo e que num futuro próximo eu ou O Pior Bruxo das Trevas de Todos os Tempos – Voldemort - teremos de nos encontrar e guerrear até que um dos dois “encontre seu fim pelas mãos do outro”. Palavras sábias de uma mulher que tem tudo menos conhecimento na sua aparência. Não podemos julgar os outros pela aparência. Hagrid era prova disso. A própria professora Trellawney era prova disso. Ela previu o fim. O fim de uma guerra, o fim das mortes sem sentido, das torturas. Mas não do meu sofrimento. Já perdi muito nessa guerra. Perdi pais, amigos, perdi tempo tentando viver uma vida de aparências me preocupando com todos e tudo ao meu redor pra me esquecer de que não tenho nada nem ninguém ao meu lado e que minha vida se resume, nesse momento, a esperar a hora de matar ou morrer pelas mãos de meu pior inimigo.



Resolvo me levantar. Já não faz mais sentido me esconder nesse quarto, nessa casa que nunca considerei como minha, pois agora todos que moram nela sabem que estou preso ao meu sofrimento, que não tem mais sentido me esconder atrás de plantas, me embrenhar entre meio a pessoas que não desejam minha presença. Sei o que vou encontrar no jornal. E pela primeira vez não me importa. Só o que importa é essa sensação de perda.

Edwiges me olha com pena, ou será desconfiança? Desde que chegamos de Hogwarts ela me olha assim, com os olhos âmbar a tentar me confortar. A tentar me dizer que tudo vai dar certo e que é preciso me apoiar nas coisas e pessoas que me amam nessa vida. Devolvo o olhar dizendo que uma dessas pessoas caiu dentro de um véu num local agora distante e junto com ela foram minhas esperanças, meu chão.



Penso em Ron e Hermione. Mesmo nesse primeiro dia de férias vejo que já recebi cartas deles e resolvo abri-las para encontrar palavras de carinho, de saudade e cumplicidade, afinal Sirius também era amigo deles e eles também sentem sua falta. Esta é uma das primeiras vezes que penso em Sirius depois do que aconteceu, e percebo que para o bem do meu dia é melhor não continuar. A dor ainda é muito recente, a ferida muito funda e sensível. Reparo em outras duas cartas que me chamam atenção pela caligrafia diferente. Uma pertence a Luna e, assim como ela, tem a doçura e a vastidão de sua personalidade, assim como traços bizarros como a flor que agora canta uma música com piadas na letra e tenta me fazer cócegas. Não consigo deixar de rir. Vejo que ainda existe alegria atrofiada em meu coração e me lembro de que ela também viu a morte de perto e que foi capaz de um gesto tão especial só para me animar. Meu coração fica profundamente tocado por esse gesto.



Estranho... Tenho apenas 15 anos e deveria me sentir tocado pelos meus hormônios e não por flores com pretensão a palhaço. Mas meu forte nunca foi o humor. Os gêmeos sim têm tanto humor em seus gestos que fariam até uma estátua sorrir. Aliás, a família Weasley toda têm. Mas percebo que esqueci da outra correspondência que recebi. E, por coincidência veio de um dos Weasley mais precisamente de “uma” Weasley. Gina. Talvez uma das pessoas que deveriam me odiar, a quem eu tratei mal, e que sempre me apoiou e ajudou, todas as vezes que precisei. Sinto-me mal por tê-la humilhado na frente dos outros, por ter gritado com ela e pior agora por saber que depois de tudo isso ela ainda me ama.



Sempre me disseram isso, Hermione e mesmo Ron muitas vezes insinuaram que ela pudesse nutrir algum sentimento por mim. Mas eu nunca percebi, estava ocupado em me apaixonar pela Cho, coisa que não acabou bem, já que ela começou a sair com o garoto que a Gina namorava, aliás, um outro motivo pelo qual eu nunca suspeitei que ela... me ama.



Agora toda a força dessas palavras me acerta. Alguém me ama. A Gina, irmã do meu amigo Ron, que já passou por tantos momentos ruins comigo, que inclusive foi vítima do meu pior inimigo, me ama.

Mais uma vez vou me sentir culpado, por não perceber, por não nota-la e principalmente por não poder corresponder. Não sei se estarei vivo daqui a uma semana não sei se verei novamente o rosto de meus amigos, de Dumbledore, os terrenos de Hogwarts, como vou me entregar a uma paixão que nem mesmo acho que sinto, que pertence à outra pessoa, a outro mundo, onde todos são felizes, amam e são amados. Não pertenço a esse mundo. Meu mundo é o mundo da dor, do sofrimento, de míseros momentos felizes, mas sobrevivo, pois assim me chamam. “O menino que sobreviveu”.

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