Disfarces
Mote: Here I stand all alone
Have my mind turned to stone
Have my heart filled up with ice
To avoid it's breakin' twice
Thanks to you, my dear old friend
But you can't help, this is the end
Of a tale that wasn't right
I will have no sleep tonight
In my heart, in my soul
I really hate to pay this toll
Should be strong, young and bold
But the only thing I feel is pain
It's alright, we'll stay friends
Trustin' in my confidence
And let's say it's just alright
Aqui estou eu sozinho
Minha mente virou pedra
Meu coração se encheu de gelo
Evitar é o rompimento duas vezes
Obrigado, minha querida velha amiga
Mas você não pode ajudar, esse é o fim
De um conto que não estava certo
Eu não vou dormir essa noite
No meu coração, na minha alma,
Eu odeio pagar esse castigo
Deveria ser forte, jovem e corajoso
Mas a única coisa que eu sinto é dor
Está tudo bem, vamos continuar amigos
Confiando na minha fé
Vamos dizer que tudo está muito bem
(Helloween, “A tale that wasn't right”, Um conto que não estava certo)
Logo os estudantes dividiram-se em duplas. A professora Winters sorteou pedaços de pergaminhos aleatórios para as duplas e revelou que cada um continha uma missão e que metade deveria ser feita sem supervisão, em algum lugar ali perto. A outra parte seria executada na frente dela.
Sírius Black, formando dupla com uma Guilhermina Ventura calada, olhou para seu papelzinho escrito numa caligrafia fina e seca:
Deveis enfrentar algo no setor oeste de Hogsmeade. Cuidado com as peças pregadas no escuro.
Despediram-se dos outros e rumaram para a trilha a caminho de Hogsmeade.
- Você tem idéia do que isso significa? - Ele perguntou à moça.
- Devemos caçar um ser que habita o escuro. Ele vai tentar nos enganar e temos que saber que é só um truque.
Ele piscou aturdido, embora ela não tenha visto. Olhava para a copa das árvores recortadas contra o céu noturno do caminho para a cidadela.
- Descobriu tudo isso só lendo essas duas frases?
- É o que está escrito aí, Black.
- Sírius. Me chama de Sírius – ele cruzou os braços irritado. Era a quarta vez que pedia isso a ela. Naquela semana.
- Sírius, que seja - Guilhermina respondeu, sem parecer realmente se importar, ainda olhando as árvores.
Seguiram mudos. Demoraram um pouco para descobrir qual setor da vila era o oeste, mas então a moça tirou um clipe do bolso, esfregou no cabelo, cavou em um jardim duma casinha um buraco que encheu de água conjurada e colocou o clipe boiando sobre uma folha de arbusto. O metal rodou um pouco e enfim parou.
- Pronto, é por ali.
- Como você sabe, Ventura?
- Um clipe magnetizado solto sobre água é uma bússola, Black – sim, ela verdadeiramente não percebia. No mundo dela, era normal dois namorados se tratarem pelo sobrenome. Ainda acrescentou, para contribuir com a irritação crescente do rapaz: - Conhecimento básico.
- Podíamos ter usado um feitiço de localização.
- E você sabe algum?
Sírius ficou calado. Ele não sabia, mas nunca imaginou que teria que passar por uma situação maluca daquelas, seguindo ordens de uma louca que achava que estava no comando de um pelotão do exército em plena guerra.
“Mas estamos em guerra, não estamos? Não é para isso que serve o curso?”.
Ele não entendia. As medidas tomadas eram cada vez mais extremas, de ambos os lados. Viu, nas férias, sua família defendendo os ideais de raça pura, entretanto não podia concordar com eles. Sua namorada era uma nascida trouxa, e mesmo assim a bruxa mais inteligente que conhecia. Se sua mãe soubesse que ele, um Black, estava de caso com uma moça sangue-ruim, Sírius teria ainda mais problemas que o normal. Para sua sorte, era discreto o bastante para não deixar suas primas e seu irmão perceberem qualquer coisa. A frieza da corvinal contribuía muito, pensou.
Observou Guilhermina tomar uma ruazinha escura e a seguiu. Havia poucas pessoas fora de casa naquele horário, em tempos de assassinatos. Ainda assim, pôde ver um grupo de jovens erguendo um brinde a um casal de noivos em um bar pelo qual passaram. Eles cantavam músicas de casamento enquanto um garoto de no máximo 20 anos beijava uma morena bonita. A morena parecia Guilhermina, exceto pelo fato de que não tinha olhos etéreos e ausentes.
Ele realmente gostava dela, não é?
Deixaram o bar para trás e se meteram pelas vielas mais escuras.
- Vamos saber quando acharmos, eu suponho – ele arriscou. Perto dela, ficava inseguro. Perto dela, Sírius Black se sentia burro. Suas idéias ficavam realmente tolas quando comparadas às de Guilhermina, e isso o enchia de um ódio negro da garota. Na mesma intensidade com que a desejava, desejava também que ela batesse a cabeça com muita força e tivesse parte considerável do cérebro esmagada irremediavelmente.
Era um pensamento sórdido que vinha misturado com admiração quando ela fazia algo como a bússola cavada no jardim. Ele se sentia culpado por esse desejo oculto e irrefreável, tentava compensá-lo amando-a mais e mais.
Estava em mais um sessão de culpa, quando algo o fez interromper seu andar automático.
- Será que é aqui? - Uma Guilhermina temerosa segurou seu braço, o que o fez esquecer qualquer raiva dela.
Estavam parados em frente a um beco sem saída. Lá, algo parecia respirar, mover-se.
- Deve ser um bicho-papão, Gui, pelo que você falou. Só não sei o que um tá fazendo aqui.
- Ela pôs, Black. Ela é bem capaz disso.
- Mas como ela podia fazer isso? Ele ia fugir assim que ela o soltasse.
Os grandes olhos de mel ficaram sombrios.
- Black, ela não é normal. Me escuta, ela pode. Ela pode fazer o que quiser. Tem muita coisa que ela não nos contou, essa Senhora Winters...
Sírius se surpreendeu um pouco. A professora nova tinha qualquer coisa sobrenatural, mas não era motivo de tanto escândalo.
Olhou para os tijolos de pedra tosca do beco e deu um passo, mas sua namorada havia sido mais rápida. Logo, algo cresceu e se formou no escuro, e uma garota emergiu do beco. Era a cópia perfeita de Guilhermina Ventura.
A cópia parou em frente à garota e a mediu.
- Louca – sua voz era alta, estridente, porém o timbre era o mesmo da Ventura, sem dúvida. - É isso que é, e você sabe. Por quanto tempo vai sustentar essa mentira?
- Cale a boca, não passa de um bicho-papão – calma, mas uma calma obviamente falsa. A moça tremou, a varinha em sua mão não estava firme. - Ridículus!
Nada aconteceu. O bicho-papão deu uma risada.
- Burra! Burra! BURRA! Essa sua “inteligência”, não é? Não consegue nem fazer um feitiço! Sabe por quê? Porque você tem defeito, sua idiota, você vai enlouquecer e vão te amarrar numa cama! Sua cabeça vai explodir por causa do seu cérebro anormal, sua nojenta, vai sangrar cérebro pelos ouvidos! Mais do que já acontece! Quanto tempo acha que vai suportar viver com o dobro de neurônios?
- Calada! Ridículus!
- Não seja besta, você não faz nada direito! Tem um namorado e nem gosta dele! É básico, elementar, e nem com isso consegue lidar! Não consegue nem dizer “chega”! Como vai me eliminar? Louca!
Guilhermina começou a chorar, caiu ajoelhada e cobriu o rosto com as mãos enquanto o bicho-papão dizia mais mil verdades para ela. Quanto a Sírius, foi como se ele tivesse levado um bombarda no peito. Não conseguia pensar direito, não processava as informações. O que estava acontecendo? O maior medo de Guilhermina era sua consciência? E o que havia sido dito...
Ele permaneceu paralisado por algum tempo enquanto a garota chorava silenciosa no chão, ouvindo a bronca. Por fim, pegou-a pelo braço e a levou para longe. Ela chorava incontrolavelmente e, ao se ver livre do seu demônio, agarrou-se ao pescoço do rapaz. Estava inconsolável. Permaneceram abraçados por vários minutos, ali no meio de uma rua. Um ou dois bruxos passou e os olhos com estranheza, mas eles não viram. O abraço doía nos dois.
A moça ainda ouvia os ecos do bicho-papão e sabia que tudo era verdade. Estava destinada à loucura, era um questão de tempo. Agarrava-se desesperadamente a um garoto por quem não sentia nada, na esperança de que ele a sacudisse e dissesse ter sido um sonho, era hora de acordar.
Para Sírius, aquele abraço era a despedida dolorosa da relação de mentira à qual ele se acostumara e aprendera a gostar. Era saber que tinha sido logrado no ponto mais fraco de qualquer pessoa. Era remorso por odiá-la em seus momentos de genialidade. Era, também, ódio de si mesmo. Por tudo.
Quando voltaram, a maioria dos grupos já havia terminado de enfrentar seus desafios. Uma loira alta do último ano azarava dois barretes vermelhos enquanto sua parceira servia de madrinha.
A Senhora Winters viu Sírius e Guilhermina chegarem, e os dois perceberam que ela avaliou suas faces. Levantou uma sobrancelha para eles e pediu com um gesto que se aproximassem.
- Então?
- Bem – Sírius começou, evitando olhá-la nos olhos –, achamos o bicho-papão e o enfrentamos direito na segunda vez, mas não conseguimos rir.
- Ele acabou convosco, percebo – o tom seco, o rosto sério. - Esperava mais de vós, peras vossas famas. Dispensados.
Rumaram juntos e mudos para o castelo. Tiago e Remo os viram, perceberam o estado péssimo dos dois. Eram os próximos a enfrentarem um desafio e não deviam sair da fila. Não ousaram gritar.
Observaram atentamente um barrete esganar a loura e começaram a temer o que viria pela frente.
- Foi horrível! Horrível, Sírius! Se aquela Alice do quinto ano não tivesse nocauteado o diabrete, ele teria matado a garota! E sabe o que é pior? - Dizia Tiago, com os olhos arregalados, batendo o cabo do garfo na mesa.
- Ela nem ajudou! Imagina, Pedro, a professora ficou olhando com a maior calma! - Completou Remo, gesticulando com desconcerto.
Sírius estava de muito mau-humor. Resmungou qualquer coisa enquanto Pedro ouvia boquiaberto, o café da manhã esquecido. Ele não passara nos testes de aptidão.
- O quê? - Ninguém entendeu o que o moreno quis dizer.
- Ela falei – ele resmungou entre dentes – que ela disse que não ia ajudar!
- Mas é uma coisa quando tem um aluno morrendo – argumentou Tiago.
- Bom, a garota não morreu, não é? Ela ajudaria se visse que não tinha jeito, eu acho – Lupin não parecia tão certo. - Até que nosso desafio não foi dos piores. Diabretes. E você, Six?
O garoto olhou com raiva para Remo.
- Um bicho papão me disse que a Ventura não sentia nada por mim e não acabamos com ele porque não conseguíamos rir. Foi ótimo!
Os três outros se calaram, convenientemente com as bocas cheias de comida. Viraram as cabeças ao mesmo tempo quando uma mulher vestida de negro entrou no salão e rumou para a mesa dos professores.
A cabeça de Remo foi a única que acompanhou Érica Winters até que ela começasse a se servir. O garoto só voltou para o seu prato quando a professora lançou-lhe um olhar curioso.
- Vai quebrar o pescoço – Tiago falou, com um sorrisinho, embora encarasse a comida.
- Ela tem alguma coisa que não me deixa tirar os olhos – disse o dos cabelos castanho-claros.
- É essa a professora? É a mulher mais bonita que já vi, mas me dá arrepios – confessou Pedro, lançando um olhar para a Senhora Winters.
- Ela me dá medo – disse Tiago, baixo, como se contasse um segredo. - Não medo, mas vocês entenderam. Credo. Ela não se importa, perceberam? Nos trata com desprezo. Didática nenhuma. Deixou a gente se matar com os demônios ontem e só falava se era pra xingar.
Os outros calaram. Era isso, bem isso.
Na outra ponta do salão, uma Viviane cansada comia um ovo frito. Havia feito parte da segunda dupla e conseguira alguma perfeição ao enfrentar os kappas. Voltara encharcada para o castelo, mas ao menos não levara xingos. Isso parecia ser muito bom.
Comeu vagarosamente e foi se esticar na beira do lago até o almoço. Lá, encontrou Carol conversando com uma garota do seu dormitório, Narcisa Black. Passou longe, não se dava com Narcisa. Era uma garota bem bonita e estava encorpando, mas torcera o nariz ao ouvir a palavra Lloyd. Desde aquele dia, Viviane decidira odiá-la.
Foi para a outra ponta do lago, perto da entrada para o castelo mesmo, e se deitou em baixo de uma faia. O tempo começava a esfriar, os alunos aproveitavam o sol antes que ele fosse rendido pela neve do inverno.
Estava observando as pessoas quando viu os grifinórios saírem. Sírius tinha uma cara péssima. Ela viu quando Tiago cutucou os outros dois e eles todos pularam em cima do mau-humorado e começaram a lhe fazer cócegas. O moreno bem que tentou lutar, mas acabou derrubado, preso e às gargalhadas.
Nesse ponto, ela decidiu que era seguro se aproximar.
- Ei, Black, eles te pegaram?
- É, pegaram – respondeu, entre lágrimas. Ele se debatia enquanto os amigos trocavam comandos, como se segurá-lo fosse alguma operação militar.
- Viviane, tira os sapatos deles! - Disse Pedro, o rosto corado de excitação, segurando os joelhos de Sírius.
- Nem pensar – a garota murmurou, divertida –, a McGonagall tá atrás de vocês com a Winters.
- Não vai nos pegar com essa – Tiago falou, enquanto fazia cócegas debaixo do braço do amigo.
- Não? - A voz dura da professora de transformação. - O que pensam que estão fazendo? Desculpe, as coisas geralmente não são assim, Winters.
Os três pularam de cima de Sírius em um átimo, ficando espalhados pelo chão. A senhora Winters os mediu com os olhos e estendeu a mão para ajudar Remo, o que estava mais próximo dela, a se levantar.
- São mancebos, eles não pensam.
Lupin ficou escarlate ao segurar sua mão enluvada e calou-se ante ao insulto. McGonagall pareceu confusa com essa intervenção inesperada. Perdeu as palavras de castigo que trazia na ponta da língua e se limitou a uma repreensão leve:
- Mesmo assim, sem lutas ou gracinhas, ouviram? Vou lhe mostrar as estufas, Senhora, venha.
Quando se afastaram, Viviane tirou um capim seco do cabelo negro de Sírius. Remo ainda estava um pouco corado.
- Alguém me explica porque a McGonagall trata ela com tantos dedos assim? - A garota perguntou, esfregando o capim entre o dedão e o indicador.
- Eu trataria – disse Pedro.
- Você não é o vice-diretor chamando alguém bem mais novo de “senhor”. Não sei, ela é estranha.
- Ela inspira respeito, vocês não acham? - Disse Lupin, olhando as duas já longe.
- E inspira outra coisa em certa pessoa – falou Sírius, fazendo sua primeira piadinha do dia, aparentemente esquecido da Ventura.
- Acho ela bonita, e daí? Você acha meia Hogwarts bonita – defendeu-se Remo, consciente que seria fatal citar Guilhermina naquele momento, embora estivesse morrendo de vontade de fazê-lo.
Viviane rolou os olhos.
- Vou deixar as mocinhas com suas brigas. Tenho que repassar umas músicas pro ensaio de hoje.
- Como vai com a banda? - Tiago perguntou.
- Eles mais conversam que ensaiam, não sei se devia ser assim – parou para jogar o capim longe. - Mas como a Senhora Winters falou, mancebos “não pensam”. Tô vendo que eu vou ter que escrever as músicas próprias. Sozinha.
Deu um sorriso bonito para eles e caminhou para o castelo. As coisas seguiam em relativa ordem. Os ensaios rendiam cada vez menos, como era de se esperar, e quase viraram reuniões quando começou a cair a neve.
- Eu sei que é óbvio, mas podíamos tocar Exilados – comentou Augusto no último ensaio antes das férias.
- Que tal uma coisa diferente? Todo mundo toca Exilados. Além do mais, não tem graça sem o violino do Pedro – disse Viviane. Ninguém conseguia reproduzir o som deles. Era uma mistura de roque com instrumentos de música erudita, e a mistura saía fantástica. Um toque folk, letras inusitadas, acordes originais, um vocalista carismático e pronto. Exilados da Montanha era a banda mais popular da Europa em 1974.
- O que você sugere, então? - Alexandre, um tom de sarcasmo.
- Vocês ouviram falar do KISS? Meu pai me mostrou um LP deles antes das aulas, é muito bom. Podíamos tocar uma que chama Deuce.
- Não. É trouxa, ninguém vai conhecer – de novo Bowman, baforando inconscientemente fumaça de cigarro na cara dela enquanto começava um longo sermão sobre o porquê deviam tocar Exilados.
Viviane foi irritada passar o Natal com seu pai. Ser criada como trouxa estava lhe trazendo alguns problemas. Nem sobre música ela podia falar! Será que era crime? Será que era crime que sua mãe bruxa tivesse levado um tiro dez anos antes?
Apesar de tudo, foi um bom Natal. Voltou para Hogwarts com uma bolinha de pêlos marrom dentro de uma cesta de vime. A bolinha se chamava Caio e era um filhote de gato extremamente chorão e carente. Talvez tivesse sido o melhor presente da vida de Viviane. Até ali.
Foram dias menos solitários cuidando dele. Carol cada vez mais se aproximava de Narcisa e agia estranho. Ainda conversavam muito, mas a loirinha também parecia estar adquirindo qualquer coisa como orgulho de seu sobrenome.
Mudando o foco para a Grifinória, Sírius Black havia esquecido Guilhermina e se concentrado mais uma vez nos amigos e em Severo Snape, o eterno inimigo.
Tiago Potter novamente chamara Lílian Evans para sair, apenas para ouvir mais um não da ruiva dos olhos verdes. Ela estava namorando um quintanista da lufa-lufa agora, um “cara maduro”, nas palavras dela.
Pedro Pettigrew se apaixonara pela vizinha de sua avó, mas ele não ousaria nutrir esperanças por uma mulher de mais de 30 anos. Amor platônico passageiro, seus amigos definiram, entre risos.
Mas Remo... Remo Lupin mal podia esperar cada sexta-feira para vê-la, por mais impassível que ela fosse. Aos poucos, notou que Winters era menos seca com ele, ou talvez fosse somente uma impressão. O rapaz lamentou profundamente quando o primeiro dia do curso depois das férias de Natal coincidiu com a lua cheia.
Cansado, levantou-se tarde no sábado, os outros já haviam descido para tomar café da manhã. Arrumou-se de mal humor, pressentindo uma noite péssima. De novo. Havia um corte em seu rosto e vários pelos membros, mas ele passou a pomada esverdeada e fedorenta da Senhorita Pomfrey e tudo ficou bem com um pouco a mais de desodorante perfumado.
Não sentia fome, porém sabia precisar comer algo. Aquelas noites de lobisomem acabavam com ele...
Havia a pouco saído da sala comunal quando sentiu um arrepio na nuca, sabia o que ele significava. Não demorou a ver Érica Winters dobrar o corredor, sozinha. Ela o avistou e parou a sua frente, inclinando um pouco a cabeça em uma fria, porém inconfundível, reverência.
- Perdestes uma aula importante.
- Ahn... imagino que sim. Todas são importantes – desconcerto da parte dele.
- Essa vos interessava, Lupin. Tratei de demônios-humanos. Deveis ter perguntas.
O garoto sentiu um certo peso no peito. Demônios-humanos eram o motivo pelo qual havia entrado no curso.
Fora da grade curricular normal, eles era alvo de lendas e histórias fantásticas. Havia pouca informação confiável, porém o Manual dos Aurores dizia:
Demônio-humano: diz-se do espírito imortal que pode assumir um corpo, criá-lo a partir do nada e se misturar com os humanos ou outros animais. São divididos em duas categorias.
Demônio-humano etéreo: a espécie mais poderosa, praticamente nada a limita. Pode desfazer ou refazer seu corpo quando desejar, sem que isso o canse. Os poderes mentais são grandes, e incluem feitiços sem o auxílio de nenhum tipo de varinha ou similar. Geralmente os grandes generais têm tatuagens pelo corpo que simbolizam sua posição na hierarquia.
Demônio-humano corpóreo: diz-se do demônio-humano que está preso ao seu corpo de alguma forma qualquer, seja por características psicológicas ou limitação de poder. Geralmente de estirpe mais baixa que os etéreos, os corpóreos sentem imensa dor ao fazer ou desfazer um corpo, e é comum optarem por apenas uma forma: espírito ou carne. A maioria dessa espécia surgiu do cruzamento de etéreos com humanos comuns, e aqueles que escolhem a forma material são geralmente chamados de elfos.
Não há registros da ocorrência de demônios desse tipo desde o final do século V, quando uma criatura que assombrava terras na Iugoslávia se revelou um soldado perdido depois da Grande Batalha de ZiKel (que durou entre 1650 e 1430 a.C., aproximadamente, e foi resultante pelo fim da guerra entre esses seres, que ficaram espalhados por todo o mundo).
A guerra começou porque alguns etéreos e corpóreos dominaram e escravizaram magos e não-bruxos (trouxas) no início de sua civilizações, com o objetivo de assumir controle sobre o planeta. Tem destaque especial o comandante e imperador etéreo Zel. Outros, considerando-se guardiões da raça humana, interferiram.
Há cerca de 6000 anos, essas criaturas vêm inspirando a imaginação de vários bruxos, o que os levou a procurar pelas câmaras em que estariam presos os mais poderosos demônios perdedores da Batalha de ZiKel. As tais câmaras, segundo reza a lenda, estão enterradas no manto terrestre (região de magma puro no interior da Terra, com temperaturas superiores a 4000 mil graus Celsos), incluindo a de Zel, porém não há confirmação para tal teoria.
Considerado por muitos como o pior inimigo da humanidade, Zel podia formar corpo para corromper humanos e meio-humanos. De posse de incríveis poderes telepáticos e mágicos, e praticamente invencível, credita-se a ele 3 milhares de anos de guerras entre demônios-humanos. Acredita-se que foi aprisionado por traidores de sua própria espécie e que permanece isolado numa câmara geocêntrica. Também se acredita que Zel tenha criado os lobisomens e vampiros, entre outros seres que vagam por nosso mundo.
Diz-se que alguns demônios-humanos derrotados foram forçados a encarnar humanos, nascendo de mulheres comuns, sem lembranças até que se sintam incapazes de machucar humanos novamente.
(Veja também: Elfos; ZiKel, Batalha de; Vampiros; Lobisomens; Extermínio de Humanos durante a Antiguidade e Pré-História.)
Zel parecia ser o responsável pela criação dos lobisomens. Criação de seres como ele...
E foi por causa disso que aceitou entrar com Érica Winters em uma sala usada para guardar carteiras e cadeiras para fazer seu questionário. Precisava saber o que era verdade, e seus instintos lhe diziam que ela era perfeita para responder às perguntas.
- Por onde desejas começar? Creio que sapeis coisa sobre o assunto.
- É, eu sei. Mas tem várias versões para tudo, não sei em que eu acredito.
- A história, Lupin, não é uma verdade absoluta. Portanto nenhuma das versões que leste está correta. Acredito que em vosso caso tal fato seja deveras perturbador – ela foi até uma janela e ficou observando a Floresta Proibida, ao longe, de costas para ele.
- Então a senhora sabe que eu... como?
- É meu trabalho sapier.
Parecia uma resposta muito boa. Ele precisava pensar em outra pergunta.
- É verdade que Zel existiu?
- Zel existe. Não pode morrer. Vai existir para sempre, mesmo que seu espírito se canse da existência e caia em profundo sono sem sonhar. Mesmo que sua alma se encha de torpor e queira morrer.
Ele se sentou numa cadeira jogada a um canto, perto de uma pilha de carteiras. Passou a mão pelos cabelos, sentindo os olhos pesados da noite em claro. Continuou, com um certo receio da resposta:
- E foi quem criou os lobisomens?
- Sim.
Somente uma palavra, nada de explicações. O que mais ele precisava saber?
- Por que? Eu... eu não entendo...
- Pois vós devíeis entender. Em tempos de guerra, necessita-se exércitos ferozes – ainda a voz inexpressiva, ela virada para fora.
Foi então que ele achou que era tempo de fazer a pergunta mais importante de todas. Ele tinha consciência de que poderia causar-lhe sérios problemas, mas precisava. Respirou fundo e a fez, antes que tivesse medo:
- Senhora Winters, a senhora é... um demônio?
- Sou, como bem sapeis. - Nenhuma surpresa naquela voz suave. - Por ser lobisomem, Lupin, podeis sentir-me, assim como eu posso sentir-te. Soube que era um lupino antes mesmo de ver-te.
- E mais alguém sabe da senhora?
- Dumbledore. Ele me contratou por isso, aliás. Eu era a fonte perfeita de conhecimento. Afora, talvez algum aluno muito inteligente tenha descoberto ontem. Eu não escondi o essencial para se descobrir demônios.
- E qual é o essencial?
Ela se virou para ele, cotovelos apoiados no peitoral da janela, projetando seu tronco um pouco para a frente. Havia um brilho profundo e rancoroso no fundo de suas pupilas.
- Os olhos. Os olhos de um demônio jamais serão iguais aos de um humano.
A frieza dela assumiu sentido. Havia visto o mundo em seus milênios de crueldade, havia visto mais mortes do que seria concebível para ele. De repente, o silêncio pesou como chumbo. O lobisomem encarou o demônio, aquele espírito tão brutalmente poderoso. Remo sentiu que precisava se livrar desse silêncio, não o suportaria mais.
- A senhora pode me falar de Zel?
Érica Winters suspirou.
- Zel era um ser vazio, solitário. A dor que a tomava era mui grande, ela se sentia...
O garoto se sentiu confuso com essa palavras e a interrompeu:
- “A tomava”, “ela”?
A professora assentiu.
- Zel possui corpo de mulher, deve-se chamar ela. Livros, mais uma vez enganados. Espalhou-se a crença de que possuía a forma de um homem com olhos de fogo, quando era um corpo de mulher com olhos de gelo.
- Como sabe o que se passava na mente de Zel?
Os olhos azuis dela assumiram uma expressão cansada.
- Eu vivi esse tempo.
Não era apenas isso.
Depois de descobrir que sua professora não era sequer humana, Remo não podia ter mais nenhuma surpresa forte o suficiente. Então um lampejo em sua mente fez alguma coisa se encaixar, era uma peça do quebra-cabeça da história. Era algo que ele sabia mas não queria entender.
- As lendas estavam erradas, não é? – murmurou, exasperado. - Zel não foi presa no manto da Terra.
Ela olhou fundo em seus olhos, um brilho cristalino se espalhou pelas pupilas duras e frias do demônio. Agora seu rosto não tinha nada de jovem, parecia velho e cansado, cheio de pequenas cicatrizes e marcas do tempo. Os olhos ficaram fundos e sem sentido. Agiram a vida toda sem sentido.
Remo ficou paralisado, pois, pela primeira vez, podia vê-la como realmente era. Como se um véu fosse retirado de sua vista, enxergou a simetria perfeita, os dedos enluvados possivelmente para esconder as tatuagens… e os olhos brilhantes, buracos negros sugando toda a luz e felicidade. Ela era dos fortes.
- É você, não é? – ele perguntou, temeroso. Ela não respondeu, abaixou a cabeça.
- É vosso direito conhecer o ser que vos criaste. Sim, sou a responsável por vossa desgraça. Sou Zel, fugida e perseguida.
Ela o encarou muito forte e viu a raiva se espalhando pelos olhos do rapaz conforme ele digeria as palavras e exteriorizava seus sentimentos. De seu íntimo, Érica Winters pôde ver o ódio queimando o peito de Remo ao soltar aquele grito, aquele murro numa carteira. Ela apreciou essa fúria, e reconheceu ali seu trabalho, sua obra. Não deixou de sorrir, não um sorriso frio ou de alegria, mas de apreço. Foi talvez um dos mais singelos e bonitos de sua existência, e só não digo o mais porque ela também tivera seus dias de inocência e amor, também já dançara rindo sob o luar.
Quando Remo, após arremessar uma carteira para o outro lado da sala, sentiu-se cansado e com a mente clareada, ele a viu sorrindo. Isso provocou nele dois sentimentos ambíguos. Por um lado, achou-a mais bonita que nunca. Por outro, quis enforcar-lhe.
E foi o último que prevaleceu.
Aproximou-se anormalmente rápido e lhe passou uma mão pelo pescoço, entretanto o sorriso não desapareceu, apenas ficou maior. Ele sentiu sua raiva crescer novamente e segurou firme o pescoço de sua professora. Foi então que algo na risada maníaca que ela soltou o fez recobrar a razão.
O que estava fazendo?
Estrangulando uma professora?
Tentando estrangular o demônio mais poderoso de todos os tempos?
Aterrorizado consigo mesmo, sentiu sua mão afrouxar e deu um passo para trás. Mais um, e outro. Esbarrou nas carteiras empilhadas e se agarrou desesperadamente a elas, ainda encarando Érica Winters.
A professora apenas observava tudo isso. Via o garoto tremendo e farejava seu medo. Há tempos não sentia o cheiro de um medo tão forte devido à sua presença. Aproximou-se dele com outro sorriso, mas não tão singelo quanto o primeiro. Esse, sim, era forte e determinado.
Ficou frente a frente com o garoto encharcado de suor frio. Pôs as pontas dos dedos da mão esquerda na face quente e molhada, que se virou, tentando escapar contato.
- És meu, Remo – ele ouviu em seu ouvido, embora o rosto dela parecesse longe.
Lupin sentiu o coração desacelerar um pouco, a adrenalina deixou seu sangue. Estava ficando tudo bem, tudo bem, repetia para si mesmo. Encarou-a, e só o que conseguiu ver foram aqueles olhos terrivelmente azuis. Sentiu-se aproximando dela, era algo incontrolável, algo pelo qual ansiava desde que a vira pela primeira vez.
Zel... bem, Zel, de cima de seus milênios de existência, olhou o rapaz à sua frente e resolveu não pensar. Pensara demais sua existência toda. Sentiu a proximidade dele, sentiu o cheiro quente e humano que invadia suas narinas como uma doença deliciosa. E ele era tão jovem…
Antes que algo pudessem detê-los…
Antes que sua mente pudesse detê-la, Zel havia feito. Sentiu os lábios macios, a carne quente, a língua úmida. Sentiu uma explosão de sensações que não conhecia, e talvez tenha também sentido um pouco de vergonha.
Quando ela resolveu se afastar, e foi bem breve, olhou em seus olhos castanhos, bonitos. Sem dizer nada, virou-se e bateu a porta da sala ao sair. Se havia feito tudo errado, pelo menos a saída seria ao antigo estilo Zel.
***
N/As
1 - Respondendo aos comentários:
*ღ nani *ღ : Obrigada! Você não sabe, mas seu comentário restaurou minhas esperanças na fic. Fazia tempo que ninguém comentava... espero que tenha gostado desse e que continue comentando! Beijos.
Chris Black: o cap correspondeu às expectativas? Inté, querida.
Ane e Lyra B. Malfoy: Olá! Obrigada. Eu tenho um xodó bem grande com a Viviane, espero que ao longo da fic ela continue te agradando aheuhaeuaheea. Ela não é a mocinha tradicional, e isso é melhor dela, né? Beijão!
2 - Ok, eu postei. Comentários em número irrisório, como sempre. Espero MAIS coments antes do próximo. Você, que lê essa fic, deve pensar: "Por que ela tá reclamando? Tem 85 comentários!". Bom, deixa eu explicar. Essa fic chegou ao capítulo 17 antes de ser abandonada três anos por total perda de rumo, e é daí que vem a grande maioria deles. Ela não será abandonada de novo enquanto houver comentários... quer dizer, leitores.
3 - Homens não lêem isso aqui? Sério, aceito críticas filhasdaputescas.
4 - Gostaram da música? Ela é realmente linda, eu adoro, a melodia também. Vou postar motes sempre que alguma coisa (música, poema, frase, o escambau) se encaixar. 5 - Me avisem se eu fumar muita banana. Até (espero) em breve.
L.W.
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