#capítulo um



Capítulo Um
Ou Forgotten The Taste And Smell Of The World That Left Behind


A Dinastia Hall Evans prevalecia há anos. Benjamin, o atual Rei da época, era o oitavo. Fora o primeiro de sua pequena aldeia, antigamente localizada ao Norte dos Galeses – os remanescentes Gaalas -, que conseguira abrigo em terras longínquas e desconhecidas. O Rei Alberph VI o acolhera em seu feudo, pois requeria esforços braçais (e quanto mais, melhor). Após ser nomeado criado íntimo da família soberana da lá, Benjamin não conseguia mais se lembrar como conseguira viver longe daquelas pessoas, daqueles aromas recém-formados e, principalmente, como se acostumara tão rapidamente ao frescor da brisa do mar. 


Tinha sido em um dia nebuloso e revoltado, em um fim de uma tarde de primavera, provavelmente, que ao se afastar dos muros da fortaleza que o abraçara como se fosse ali seu habitat natural avistara aqueles cabelos que eram lambidos desarmônica e descuidadosamente pelo vento uivante. Ela era apenas uma menina (não mais de dezesseis anos), posto que sua exuberância imponente lançasse o contrário aos homens que a cercava. Era, igualmente, muito séria e perfeccionista, desestabilizando a razão de Benjamin e fazendo com que, a cada dia que passasse, esse se deflorasse cada mais vez mais pela futura Rainha. Não estava engolido ou cegado pelo poder, jamais. Não estava em seu destino, pelo o que sabia, ser Rei. O jovem apenas estava almejando aquela mulher. Apenas sua pele e seus cabelos lânguidos e fervorosos.


E da fusão do rapaz da província esquecida e da princesa do reino mais bem cuidado pela região, nascera Lily Yagh Hall Evans, vulgo Lily Evans, ou meramente A Princesa.


O povoado de Lythis, semeado e conduzido pelos pais da sexta princesa ruiva do reino, era populoso. Havia muitos idosos que prestigiavam o absolutismo estratificado, mas eficiente; crianças adoravam se esgueirar pelos jardins para conversarem com a princesa: ela era a esperança que Artemis espalhava por ali. Mesmo após dezenove anos, poucos tinham deixado de crer nas palavras da família reinante.


Marlene dizia que a Árvore gostava muito de Lily. Nunca a tinha visto, era certo, mas sua energia era captada pelos ventos, que a levavam até os pressentimentos da Mãe da Terra.


Desesperadas, as meninas, tortuosamente, tentavam desviar dos olhares dos encapuzados que, logo depois da trilha, ora ou outra teimavam em observá-las com atenção. Marlene dizia que Lily era um alvo fácil tendo seus cabelos tão chamativos. A princesa, contrariamente dos que muito julgavam, não repudiava sua marca. Sabia que se assim era, significava algo bem maior, que salvaria a todos. Claro, havia aquele ponto que não era permitido revelar, mas, como ignorava a maioria das coisas que a importunava, fingia que ele era inexistente, ou pequenino demais. Tal como um inseto microscópico.


- Lily, espere – Marlene a chamou com dificuldade. O Sol estava se pondo e não sabiam para onde estavam indo. Suas pernas as guiavam mecanicamente, não ousando a incomodar suas razões – Não sei se é uma boa idéia entrarmos no vilarejo.


A cidade estava calma. O que estava afetando o palácio, com certeza, ainda não tinha escorrido para o povo. As famílias mais necessitadas vagavam lenta e desorientadamente pelas ruelas. As crianças sorriam ao ver Lily, mas não ousavam importuná-la. A princesa era intocada e não podia ser infringida. Diminuindo o ritmo dos passos, foram para a única casa que sabiam que as ajudariam discretamente.


- Acho que isso ainda não é o que teu pai queria, Mademoiselle – a garota dos cachos agora já desfeitos falou. Buscava tentar iluminar a cabeça da amiga, mas por que a princesa ouviria conselhos de uma dama de companhia? Marlene sabia que eram amigas (a primeira amiga que Lily fizera), mas também compreendia que não faziam parte do mesmo mundo.


- Não posso fugir do reino desse jeito – ofegou a outra, tentando ignorar as gotículas de suor que nasciam em sua testa – E tenho de deixar a Poppy segura. Ela não pode ir conosco.


- Eu não quero ir – Poppy falou sonolenta.


Marlene desviou os olhos do rosto magro da criança e pousou na nuca da princesa.


- Ela tem de ir conosco – lembrou-lhe – Poppy deve ir até Esther, como nós!


Lily se mexeu pouco a vontade.


- Não iremos para o colo da Esther – a ruiva comunicou.


- Ah, não, Mademoiselle! – Marlene exclamou, sentindo o pânico crescer ao ouvir aquilo – A senhorita não pode burlar seu pai! Ele saberá!


- Marlene, estou tentando nos salvar – Lily parou e olhou para a amiga – Se não quer cooperar, então, volte para o castelo – ameaçou.


- Não, de maneira alguma – a garota balançou avidamente a cabeça, negando – Eu quero ser salva.


- Então, não volte a questionar minhas decisões, por favor – Lily disse. Adorava Marlene, mas tinha que ser dura. Princesas eram afáveis, mas quando tinham que ser respeitadas, tinha aprendido, deveriam ser frias e calculistas.


- Oh, me desculpe, Princesa – Marlene disse, sentindo-se culpada.


- Bem, deixe para lá – Lily suspirou sofregamente. Tentava se lembrar qual rua tinha que descer para chegar a tempo – Venha, depois dessa, viramos para o Leste.


Afagando os cabelos de Poppy, chegavam mais perto da ajuda; tinham de chegar a tempo.


- Sr. Meadowes? – Lily chamou, empurrando a porta de madeira, hesitante – Olá? Alguém...


As meninas levaram um susto quando o velho saiu detrás de um cesto imenso de perfumarias.


- Menina Evans? – o dono do estabelecimento se chocou. A princesa não era autorizada a visitar o povoado depois que o Sol desaparecia no Morro Yum. O que estaria fazendo ali, juntamente com Marlene e Poppy? – Mas que diabos a senhorita está fazendo aqui a essa hora?


- Preciso de um favor – murmurou, passando os olhos rapidamente pelo local. Onde estava Dorcas? – Fique sabendo que posso retribuir e que agradeceria muito se...


- Ah, senhorita – o senhor se constrangeu – Não quero lhe retirar nada. Temos tudo que precisamos.


- Muito bem, eu entendo – ela rapidamente o cortou – Mas por acaso a Dorcas está? Ou ainda não voltou da Colheita?


- Está, claro que está. A Colheita termina assim que os ventos trazidos por Artemis perpassam por aqui – ele lhe contou.


Lily já sabia daquilo, mas se calou por educação.


- Hm, posso viajar com ela por alguns dias? – a princesa lhe perguntou.


- Desculpe, o que disse? – Sr. Meadowes se surpreendeu.


- Senhor – ela olhou para o alto da estrada pela pequena janela -, existe coisas acontecendo; não posso explicar agora, mas Dorcas deve me ajudar.


- T-tudo bem, menina Evans – o velho olhou ressentido e hesitante para a ruiva – Dorcas? – foi em direção à escada torta e chamou a filha.


A menina morena, dos grandes olhos brilhantes de azuis, apareceu descendo rapidamente os degraus.


- Ah, pai, o que já não lhe pe... – a garota parou. Estranhou a presença das amigas ali. Esquadrinhou os olhos e foi para junto delas – Princesa? O que está fazen...


- Ótimo – Lily abriu um pequeno sorriso satisfeito no canto de seus lábios – O que lhe peço é que se despeça de seu pai e venha comigo. O Rei logo virá ajudá-lo.


- Espere... vocês estão fugindo? – Sr. Meadowes levou as mãos ao peito, assustado.


Marlene perdeu o resto de sua cor.


- O quê? – Dorcas logo interveio assustada - Mas para onde? E por quê? E quem disse que quero lhe ajudar? – inquiriu brevemente.


- Sim, estamos – Lily confirmou decidida, ignorando a filha do boticário. Nunca achou que mentir ou omitir algo auxiliaria nos acontecimentos, fossem eles quais fossem – O reino está sendo invadido por bárbaros, eu creio. O Rei e a Rainha saberão o que fazer enquanto procuro abrigo seguro longe daqui.


- Senhorita, os eunucos não a querem? – o velho perguntou, curioso e assombrado.


- O que é um eunuco? – Dorcas quis saber ingenuamente, procurando os olhos de Marlene para detectar alguma sombra de riso perpassando em seu rosto afoito, mas nada encontrou. O único sentimento que pairava ali era medo.


- É possível que sim, senhor, por isso preciso viajar – replicou a princesa.


- E Dorcas irá por que...?


- Se estiver comigo, estará mais segura do que com o Rei. Ninguém ousaria me atingir tão cruelmente.


Lily não estava certa se aquelas palavras eram verdadeiras ou se surtiriam o efeito desejado, porém não tinha mais tempo para conversa. Precisava deixar Poppy ali e partir.


- Mas se os bárbaros... – o senhor recomeçou, mostrando-se incapaz de entender a profundidade do problema.


- Dorcas, tu vens ou não? – Lily olhou seriamente para a amiga.


Dorcas pestanejou. A princesa tinha enlouquecido? Logo o quilômetro seria torturado por invasores e a ruiva decidira fugir bem no meio da confusão? E o que eram eunucos?


- Pai, proteja a Poppy – Dorcas deu um passo à frente, direcionando as mãos para a criança encolhida nos braços de Lily.


- Lily... – Poppy murmurou, tentando em vão se agarrar aos cabelos da ruiva.


A prima mais velha era tudo o que queria ser. Com seus quatro aninhos, imitava a futura Rainha e se deliciava com as histórias dos mais velhos. Não queria se separar daqueles braços; eram eles que a levava até as flores ou até o lago. Como sobreviveria sem Lily? Quem mais a ensinaria o alfabeto e a escrita?  


- Dorcas... – Sr. Meadowes recebeu a menininha espantado.


- Não, eu não quero ficar – ela reclamou, fazendo movimentos com os braços, tentando chegar até a Lily e fazendo menção de projetar os lábios em choro.


- Poppy, me perdoe. Voltarei assim que possível. Você entende, não entende? – Lily encostou sua testa na da prima.


- Não – devolveu a outra.


- Se viajaremos, precisamos de mantimentos – a filha do boticário vasculhava o primeiro piso da apertada casinha.


- Dorcas, não acho que temos tempo... – Marlene sussurrou.


- Pai – a menina olhou para ele, pesarosa.


- O Rei virá. Ele sempre pensou em nós – o senhor falou, tentando impedir que a separação lhe fosse de toda dolorosa. Sorriu bondoso, encorajando as meninas – Se precisas partir, é melhor fazê-lo rápido. Está escurecendo. Os ventos as enganarão mais tarde.


- O Vale está esquisito. Vamos, meninas – Dorcas chamou.


As três saíram pela porta, escutando o choro de Poppy e a tentativa de consolo do boticário. Sabiam: não havia mais como retroceder. Estavam sós.


* * *


Por sorte, Dorcas era perspicaz. Sua sagacidade trazia benefícios aos que estavam ao seu redor, pois a menina além de gentil e intrépida, não ficava muito atrás em perseverança extrema. Tinha afanado alguns potes sem descrição do armário da cozinha e não se desgrudava de sua bolsa de couro. As amigas brincavam que dava para encontrar um elefante branco lá dentro, de tantos utensílios que continham lá. Dorcas, na verdade, era o gênio do trio. Sempre carregava cordas sobressalentes ou cantis cheios de água do lago. Não gostava de pensar sobre isso, mas achava que sem ela, seus conhecidos não sobreviveriam por muito tempo.


Os clarões, aos poucos tinham se minimizado, mas não o bastante para não fazer as meninas perdidas se sobressaltar ora ou outra. O laranja era avistado ao longe e a fumaça, mesmo que estivesse a quilômetros da floresta por onde tinham se embrenhado, conseguia encontrá-las sendo dispersada pelo vento noturno, que açoitava furiosamente os rostos úmidos e cansados das três. O bosque era fechado, abrigando árvores imensas e velhas, todas muito juntas umas das outras; Marlene tinha dito que estavam no Bosque de Hall, lugar onde, muitos contavam, o Velho da Comida aguardava suas vítimas para suas seitas. Dorcas, que não acreditava piamente nas lendas da região, se limitou a deixar escapar um riso de escárnio. Lily, sendo a Princesa, nunca tinha ido parar naquela relva soberana e incrustada no morro. Nunca tivera permissão para ir tão longe de seus aposentos reais.


- Princesa? – Marlene se encostou ao lado direito da amiga. Lily resmungou – Hm, a senhorita sabe para onde vamos, se não estamos seguindo para o castelo de Esther?


Dorcas, que tentava desesperadamente ficar de olhos bem abertos, porque não estava apreciando os estalos ecoados por ali, afogou seu gritinho de susto. Então a Princesa não sabia que rumo deveriam tomar? Por que sua presença tinha sido imposta, se não chegaria salva em qualquer lugar conhecido? E seu pai? Tinha deixado seu pai no vilarejo! Não queria ter de fazê-lo, mas Lily era uma Princesa maravilhosa por uma razão: todos a respeitavam. Não apenas seu corpo, como também seus questionamentos e decisões. E se Dorcas, uma das meninas mais íntimas de Lily, que sabia preservar segredos, não soubesse a hora de acatar os mandamentos da ruiva, não saberia se estaria respirando no dia seguinte. E a Princesa disporia segurança aos seus amados.


- O que teu pai lhe falou antes de deixá-la partir do castelo, Lily? – Dorcas juntou as sobrancelhas escuras, mostrando-se muito questionadora.


Lily revirou os olhos. Estava cansada. Caminhavam há muito tempo. Pareciam dias, ainda que soubesse que não passava de três ou quatro horas. As lições de Princesa que a Rainha lhe concedia todos aos finais de tarde, não lhe ensinara a resistir bravamente a quilômetros extensos de pura adrenalina e caminhada árdua. Muito menos a se esconder com suas amigas em terras desconhecidas para tentar escapar de invasores bárbaros. Notou que ainda que faltasse bem pouco para sua coroação, seus tutores não tinham lhe preparado para seguir seu caminho em missões de risco. Não lhe contaram sobre possíveis atentados ou seqüestros. Mas, presumiu, princesas sempre estão sujeitas a impossíveis acontecimentos.


- Dorcas – Lily implorou -, não creio que tais palavras vão nos ajudar de alguma maneira.


- Tente – provocou a outra.


- Apenas temos que fugir, Dorcs – Marlene falou, temendo que a Princesa fosse se exaltar – Para... hm, qualquer lugar, como agora é o caso.


- Ah, certo. Estou mesmo muito satisfeita agora – Dorcas zombou inquieta.


- Ah, por favor. Acha mesmo que eu estou gostando dessa idéia de sair por aí? – Lily se enfureceu.


- Bem, você sempre foi do tipo que procura aventuras – a morena dos cabelos lisos deu de ombros.


- Não esse tipo de aventura, garota! – a ruiva falou – Oi, estamos no meio do nada indo para não-sei-onde!


- Bem, teríamos um rumo se você nos guiasse até Esther.


- Por que não vamos para lá, Mademoiselle? – Marlene questionou curiosa.


Lily, ao quase tropeçar em uma raiz emergente da terra recoberta por folhas, parou abruptamente. Seus cabelos, agora ensebados, grudavam em sua testa, irritando-a; suas roupas ficaram bem mais mornas do que o costume, e seu longo vestido parecia enormemente inapropriado para tal fuga. Tinha se esfiapado na barra e encardido, fazendo com que os pequenos fios se enrolassem na baixa vegetação.


- Olhem aqui, vocês duas! – exclamou ela – Estou tentando fazer com que sobrevivamos por essa noite, e se não querem que eu as deixe bem aqui, no meio do nada, é melhor calarem a boca.


Fez-se silêncio.


Marlene e Dorcas se entreolharam.


Às vezes, mesmo não querendo, a Princesa era muito Princesinha! Não era ela quem dizia que odiava aquilo?


- Ah, é, estou vendo que está fazendo muito por nós – Dorcas falou – Porque é você quem teve a idéia de trazer restos de comida e cantis de água.


Lily desceu seus olhos até a cintura da garota, munida de cantis. Sua garganta reclamou.


- Tudo bem, eu lhes conta...


- Vocês ouviram isso? – Marlene olhou para todos os lados; os olhos apertados e o maxilar travado.


Apuraram os ouvidos, quietas, sem nem ousar respirar. A escuridão, apesar da Lua alta e bolhuda no céu, embaçava a vista, colocando silhuetas inexistentes em cores difusas.


Os passos pesados se tornaram mais profundos e reverberavam pelo solo. Era ritmado e parecia pertencer a alguém que de fato estava ali presente. Marlene gemeu, achegando-se ainda mais nos corpos das amigas. Implorou por sua vida a Artemis. Que a Deusa estivesse de olhos e ouvidos ali, procurando uma maneira de safá-las do mal.


Dorcas soltou um uivo agudo. Suas mãos, que empunhavam uma faca afiada (pertencente a seu pai, que costumava usá-la para fatiar ervas e pequeninos vegetais), envergaram-se para baixo imperativamente, derrubando quaisquer objetos. A lâmina bateu em riste em seu pé. Ofegou assim que sentiu seu pescoço ser pressionado.


- Muito bem. Vejamos o que tenho aqui – a voz ondulou profunda e serena.


Lily, instintivamente, girou o corpo em direção a voz. Não era possível. Sabia que ali fora não era seguro, mas não imaginava que seria tão fácil capturá-la. Ela, a Princesa mais inteligente de todas? O quê? Era bom saber que sua mãe era apenas uma Rainha que se orgulhava de sua filha. Por que seria diferente? Tinha de honrar as habilidades inexistentes de uma pobre menina, não tinha? Não era assim que achava que passaria coragem aos demais? Fingindo ver e sentir coisas e sentimentos que nunca ali estiveram?


Ah, ótima Rainha era aquela! A melhor de todas.


E a mais mentirosa também.


- Por favor, não faça nada conosco! – Marlene implorou – Artemis irá vingá-lo. Sabe que ela sempre vinga a todos que desrespeitam uma donzela! – olhou para Lily – Sabe, ao menos, com quem está lidando? É com a Princesa! – Lily arregalou os olhos. Marlene não era muito boa em manter a boca fechada quando sujeita a situações extremas – Não pode querer ferir a Princesa!


A respiração pesada logo cessou. Não que o intruso tivesse sido acertado e estivesse caído no chão, prestes a morrer. Não. A palavra “Princesa” fora nomeada. Nunca chegara tão perto assim da menina ruiva, ainda que ansiasse desesperadamente.


- Quem é a Princesa? – perguntou autoritário.


Dorcas, que não tinha mesmo como proferir palavra alguma, fechou os olhos, porque, se fosse acontecer alguma cena completamente indecorosa, não queria assistir. Marlene não se pronunciou. Seus olhos estavam clementes e seu corpo se balançava loucamente, tremendo por sentir os sentimentos ruins a inundando.


Lily deu um pequeno passo, levemente angustiada e hesitante.


- Eu – a Princesa disse em um tom de desafio rasgando sua garganta seca.


Esperou.


Ansiava que, se fosse morrer, que o jovem não se demorasse muito. Não queria sangue nem dor. Apesar de saber que seu sangue era real, e que muitos a invejavam por isso, não entendia para que deveria usá-lo. Ah, certo. O povo. Lily adorava o povo. As crianças risonhas, as velhas contadoras de histórias, os velhos sábios e os trabalhadores camponeses. Cada um era uma peça essencial para o desenvolvimento da província. Sem qualquer um deles, jamais seria quem era. Jamais aproveitaria da água mais cristalina do Vale ou da carne mais saborosa dos Pântanos. Ainda assim, depois que ajudasse seu povo, o que faria? Presumia que nada fizesse, assim como sua mãe. A Rainha sentava-se a mesa todos os dias, orava por Artemis, ensinava às crianças próximas as letras castas da escrita regional, conversava com o Rei sobre assuntos inacessíveis para jovens damas e ensinava à filha tudo o que podia. A vida de Aimee não parecia coagida ou aventureira. Eram longos anos precários de muita solidez e tranqüilidade. Para Lily, aquilo tudo não bastava. Era monótono, desiludido, ilusório. Ser Rainha não podia ser tão fácil, tão bom.


Almejava por mais. Talvez por uma morte impecável, que trouxesse raiva ao povo, que fizesse os camponeses batalhar por algo que lhes era de valor.


Então, aquela era a hora de fazer merecer aquele sangue que repudiava.


Desejar a morte não era tão mais difícil quanto querer livrar-se do fardo imperial.


- Princesa? Você é a Princesa? – repetiu o jovem em um rosnado, mas não se desvencilhando de Dorcas.


Lily assentiu. Sabia que ele não podia ver seu rosto se balançar, mas mesmo assim o fez. Estava absorta demais para pensar.


O homem largou Dorcas sem muitas gentilezas e logo avançou contra Lily. Levava consigo um desejo ardente de afundar seus dedos na goela da moça.


- Fiquem quietinhas aí, madames – ele mandou a Dorcas e a Marlene, encurralando-as em um tronco incrivelmente denso – Dou minha palavra que nada farei às senhoritas se me deixarem levar a princesinha aqui – agilmente chegou até Lily e a silenciou com umas das mãos em seus lábios. De nada adiantaria se debater: seu oponente tinha muito mais músculo do que ela.


- Não, não pode levá-la! – choramingou Marlene.


- Cale a boca, sua indecente! – Dorcas cochichou a outra – Quer mesmo que ele acabe com a vida de nós três?


- Shhh – o homem fez. Não parecia estar brincando – Sem conversinhas.


Prendeu seus olhos na cor dos cabelos de Lily. Ele brilhava, tremulava. Se não era a Princesa, era a Rainha. Disso ele tinha certeza. As únicas esquisitas do povoado eram elas. Tal mãe, tal filha. Sem erros.


Riu baixo.


- Há tempos espero por esse momento, Vossa Alteza – o jovem disse, deliciando-se ao ouvir Lily represar todo o ar quando seu hálito morno a atingiu na bochecha.


- Se quer justiça veio atrás da pessoa errada! Nada posso fazer para lhe ajudar! E meu sangue será um desperdício assim que bater na terra – Lily falou afogada, quando conseguiu empurrar, não sabia como, alguns dedos que pressionavam sua boca dali.


- Quero mesmo seu sangue, Majestade – o riso dele a fez se eriçar, horrorizada.


- Não! Queira o meu! Pode querer o meu, de verdade! Mas não o da Princesa! – Marlene gritou.


- Desculpe, mas meu rancor tem dono – o homem lhe disse brevemente.


Lily cansara-se de lutar. Ele era um homem, o que ela queria? O que carregava que o convenceria a largá-la?


- Sabes onde se localiza a nascente do Rio do Pó? – ele perguntou à Princesa.


- Como saberei? Achas que saio por aí todos os dias? – ela devolveu.


- Imaginava que não – concordou – Por isso não posso lhe soltar. Ou lhe matar. Teu sangue é muito precioso para mim, Digníssima.


Lily ficou curiosa.


- O que farás comigo?


- Precisas provar do mal que teu povo real me causou – o jovem respondeu, de boa vontade.


- Mate-me de uma vez, ordinário! – exclamou ela.


- Tsc-tsc-tsc. A Rainha não foi uma boa mãe, não é mesmo? – ele riu, afrouxando as mãos sobre a moça, mas sempre atento.


- O que quer com o Rio do Pó? – Marlene perguntou.


O andarilho pousou seus olhos na garota.


- Conheces o caminho? – perguntou.


- Vim de lá – Marlene contou.


Ele pareceu muito interessado. Grandiosamente alheio, soltou de vez a Princesa. Ela, amuada e assustada, recolheu-se rapidamente para perto das amigas. Se fosse para morrer, que fosse a primeira.


- Hmmm, interessante – ele murmurou.


- Quer chegar até lá? – Marlene quis saber, sabendo que o homem se aproximava brandamente das três.


- Achas que é capaz de me guiar?


- É longe daqui, meu senhor – desculpou-se logo ela – Mas se cooperar conosco, posso lhe ajudar.


- Perfeitamente. Preciso de tua ajuda – falou ele, passando os olhos nas três demoradamente.


A Princesa, mesmo sob o negrume da noite, carregava uma aura enlouquecedora. Quase detestável.


- Venham – acrescentou duramente.


Dorcas riu, mas escondeu o som em suas vestes.


Assim, tão fácil?


Ele achava que conseguiria seqüestrar as três?


- Hmm, acho que estou muito bem aqui, obrigada – ela contou.


- Dorcas, ele só quer a nossa ajuda! – Marlene replicou.


- Não, não quer. Ele quer a Princesa.


- Sim, quero a Princesa. Mas não posso tocá-la até chegar ao Rio do Pó.


- Você me tocou – Lily lembrou-lhe.


- Não, não do modo que quero – riu o homem.


Lily engoliu com dificuldade a saliva.


- Vais me matar no final? – a Princesa desejou saber.


- Assim espero. Tua família precisa pagar o que faz com a minha.


- O que meus pais fizeram com a tua família?


- Estou dando-lhe direito de fazer perguntas, Princesa? – zombou.


- Perdoe-me – disse ela, sempre muito educada.


Ele ignorou a voz cantada e baixa da ruiva e foi de encontro às três.


- Acha que iremos ajudá-lo se assassinará a Princesa? – Dorcas fincou os pés na terra batida.


- Nunca disse que minha vida depende de tua boa vontade, madame. Posso acabar com isso agora mesmo, se desejares. Diga-me: com dor ou sem dor? – a expressão do jovem estava muito concentrada e firme. Nenhum músculo facial pulsava.


- Não, por favor. Nós aceitamos! Eu aceito! Não faças mal a elas, quando sabes que preferes a mim! – Lily interveio desesperada, dando alguns passos vacilantes para frente, com o intuito de chegar mais parte de seu seqüestrador.


- Ótima colocação, Alteza. 


- Hmm, o senhor é um Caçador? – Marlene perguntou.


- Bem, Templário é que não é! – Dorcas riu.


- É, não sou Templário – ele falou – Ainda não sei bem o que sou. Mas tenho uma espada, se isso a anima.


- O Rei não irá gostar que esteja tentando desrespeitar a filha dele! – Dorcas resumiu.


- É, porque estou vendo o Rei bem ali! – o homem gracejou.


- Meu reino está sendo derrubado por culpa de homens teus! O que mais queres? – Lily berrou.


- Meus homens? Não. Não há ninguém comigo.


- O quê? Então, não és um invasor? – a Princesa não pôde deixar de se surpreender.


Notou que seu seqüestrador igualmente tinha ficado desconcertado e ficou um tanto mais aliviada.


Se ele a queria não eram pelos mesmos motivos que almejava seu castelo.


Mas não que isso fosse de todo muito bom.


- Outros também querem teu sangue?


- Sempre querem meu sangue! Sou uma Princesa! – lembrou-lhe Lily.


- Errado. Nunca poderiam querer teu sangue – ele a corrigiu, muito espantado – Seu reino nunca excedeu barreiras limitantes. Os povos que a querem não podem ter motivos recentes, pois tu és a primeira na linhagem dos Yagh.


- E tudo isso leva a o quê?


- Que eu tenho um ótimo motivo para querê-la, enquanto os bárbaros estão a mando de alguém.


- E você não está a mando de ninguém? Age sozinho, então? – Dorcas falou tão sarcástica que Marlene lançou a ela um olhar de ódio.


- Desde que perdemos a Cruzada dos Nobres, há sete anos, que ajo solitário.


- Então, já foi um Templário! – Dorcas sentiu a boca se entreabrir, inconsciente.


- Sim.


- Se os bárbaros estão a mando de alguém, significa que tenho de confiar em ti? – Lily balançou a cabeça, negando o fato a si mesma.


- Significa que não sou nada comparado a eles, realmente.


- Ha, não mesmo! Não irei sair por aí em busca de um rio idiota! – Dorcas se defendeu.


- Dorcas... acho que não temos escolha – Lily lhe sussurrou.


- Lily! Ora essa! – revirou os olhos a outra.


- Ao menos temos um curso a seguir! – Marlene comentou alegre.


- Certo. Estou percebendo que nada conseguirei se não lhes der a minha palavra – o homem prosseguiu impaciente.


- Tua palavra de nada vale! Sujarás suas mãos com meu sangue à toa! – Lily disse.


- Princesa – o homem chegou mais perto dela -, cale a boca, por favor – voltou sua atenção às outras duas – Se querem meu juramento que nada farei com a Princesa até chegarmos ao Rio, terão.


Logo, o sujeito se ajoelhou.


As meninas se olharam curiosas e insatisfeitas.


- Tomem – ele jogou nas mãos trêmulas de Lily algo pesado, mas que cabia em sua palma.


Olhou.


Um pingente enorme adornado em ouro e outros metais que a Princesa sequer conhecia.


- Era de quem quero resgatar a honra – o jovem explicou.


Dorcas, impaciente, buscou em sua bolsa de couro um dos utensílios que trouxera, e logo o camafeu triangular e antigo estava visível e brilhante. Havia iniciais entrelaçadas por toda a borda do objeto e a pintura já estava muito desgastada.


James notou a careta que Lily fizera quando a luz alaranjada iluminou a todos. Percebeu também que seus olhos eram verdes, os mesmos olhos verdes que sua mãe lhe contava que tinha visto há tempos, antes de ele decidir seguir os cavaleiros na batalha.


Esqueceu-se por um mero segundo porque estava ali.


A idéia de ter a Princesa tão próxima de seu corpo fez a memória lhe voltar.


Bonita, sim, mas não o bastante para ele ser misericordioso. Afinal, beleza não é sinônimo de bondade. E ele bem sabia disso.


- James Potter? – a voz da Princesa açoitou os ouvidos do rapaz.


- Não, leia dentro – mandou, apontando para o colar.


Ansiosa e com extrema dificuldade, pela ferrugem e pela hesitação, ela descerrou as duas metades unidas apenas por uma dobradiça pequenininha. Passou as pontas dos dedos na parte côncava e aproximou-a de seu rosto.


- Archie Potter – ela forçou a vista, lendo as palavras.


- É. Era meu pai – James falou.


- E tu és James Potter? – Lily perguntou cética.


- Sim.                                                                                                


- Espere. Archie Potter? Não foi ele que foi largado na Travessia dos Mortos há uns vinte anos? – Marlene arregalou os olhos, dando-se conta de quem falavam.


- Como sabes disso, donzela? – James sentiu seu sangue ferver de excitação e de assombro.


- É a história que o Rei mais gosta de contar no jantar – Marlene contou com um ar de quem se desculpa.


As garotas se retraíram quando os olhos de James Potter relampejaram de modo bruto e fervoroso.



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 N/a: Hey Hey o/
       O primeiro capítulo está aí *-* A princípio não gostei muito dele, acho que ficou um pouco vago, mas percebi que era assim mesmo que ele deveria ser, porque os segredos irão se desenrolar nos outros capítulos. Iria postá-lo ontem, mas não tive tempo. Final de ano é muito corrido e estou em semana de simulado pro vestibular, então né ;/ Mas consegui sair mais cedo de lá e vim aqui postar o capítulo :o Por fim, comentem e me deixem feliz, porque, como sempre fico repetindo (sim, eu gosto de repetições q): os comentários me dão inspirações e me ajudam a prosseguir com as fics. Sabem que fico muito grata a todo e qualquer comentário, então dedinhos trabalhando, por favor ;) Hm, até parece que alguém lê esses N/a. Mas deixa quieto. 
       Beeijo ;*

       Nina H. 


07/12/2010

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