Capítulo 4



Capítulo 4


 


Harry deixou que ela escapasse. Pelo menos para se deliciar com a visão do traseiro dela envolto em calças levemente soltas sobre o corpo, enquanto ela caminhava o mais rápido que podia — quase ao ponto de estar correndo, diga-se de passagem, e agora essa do Archie! Ele não comera nada, nem ao menos sabia que ele existia.


O que ela estivesse fazendo em Londres, ele de­cidiu, ela era muito boa em sua atividade, se é que ele podia julgar esse mérito pelas roupas que ela ves­tia. Na verdade, isso trazia à tona a pergunta: o que ela estava fazendo de volta em Melchester? Uma ci­dade agradável, certamente, e até mesmo estava cres­cendo rapidamente, mas Londres era o lugar para alguém com as qualificações dela.


— Que menina adorável — disse Maggie quando ele retornou-lhe o olhar.


— Exatamente o que eu pensava.


— Duvido disso,Harry. — Sua risada se trans­formou numa tosse, fazendo com que seus olhos se fechassem. — Por que você não vai com ela? A cida­de não é lugar para uma jovem sozinha à noite.


— Exatamente o que eu pensava — ele repetiu. Mas ela já estava dormindo. Ele parou na sala das enfermeiras para explicar que voltaria mais tarde e então andou até o estacionamento.


A primeira coisa que viu foi um carro velho com o capo aberto e a figura inegável de Hermione debruça­da sobre ele. Ele teria reconhecido aquele bumbum em qualquer lugar.


— Sabe que eu imaginei que você possuísse um carro muito mais sensível e moderno — ele disse.


— É mesmo? — ela se endireitou. — Bem, nem sempre você está certo.


— Verdade. Mas posso sempre ser útil.


— Prove isso fazendo com que esse carro volte a funcionar.


— A única coisa útil que estou preparado para fazer com esse troço patético que você chama de carro é chamar o ferro-velho para rebocá-lo e aca­bar logo com o sofrimento dele.


— Você não é tão bom assim com motores, não é mesmo?


— Essa tática não vai funcionar comigo, prince­sa. Não tenho que lhe provar nada, especialmente quando o meu fiel garanhão está ali aguardando para sair galopando com uma donzela em apuros.


— Você está me oferecendo sua moto emprestada?


— De jeito nenhum. O que estou oferecendo é carona até a livraria. No meu carro.


— Sinto muito Potter, mas minha mãe me dis­se para jamais pegar carona com estranhos.


— Não sou estranho.


— Isso é uma questão de...


— Não sou nem um estranho.


Ela começou, como se ele tivesse tocado num nervo, e o sentimento de que ele a conhecia se in­tensificara. Será que ela já trabalhara em algum de seus escritórios? Mas, se fosse o caso, ela também o teria reconhecido. E se tivesse? Por que ela não falava nada?


— Potter...


Na esperança de evitar mais discussões, ele dei­xou suas preocupações de lado — e poderia averi­guar isso mais tarde — e disse:


— Antes de você dizer qualquer coisa, devo lhe avisar que terá de esperar uns 20 minutos por um táxi, no mínimo, e embora pense que vai valer a pena, pense no Archie morrendo de fome.


— Estou tentando não pensar sobre isso — ela de­clarou, fechando o capo e em seguida pegando sua bolsa e trancando o carro.


— Eu lhe prometo que nada mais irá me persua­dir a pegar uma carona como você.


— Pode acreditar — ele disse -, nada neste mundo irá me persuadir a lhe oferecer uma carona.


E finalmente ela sorriu para ele.


— Acho que mereci isso.


— Sem dúvida, mas discutiremos sua atitude hostil inexplicada contra mim num outro momento ele disse, sem retornar o sorriso ou sugerir que uma conversa durante o jantar seria o apropriado. Ela estaria esperando por isso e teria sua recusa brusca esperando por ele. Era hora de implemen­tar esse jogo um pouquinho e parar de ser tão pre­visível. — Vamos, meu carro está estacionado bem ali.


Ela parou quando ele se aproximou de seu Jaguar E-type azul-marinho, modelo de colecionador, e abriu a porta para ela.


— Isto é seu? — ela perguntou. Certamente, não esperava por algo desse tipo.


— Homens como eu ganham boas gorjetas — ele disse.


— Não...


Primeiro o sorriso e agora ela estava meio con­fusa. Tão confusa quanto no momento em que ele se virou depois de trancar a porta da loja e se pegou bem ali, tão próxima a ele. Havia algo de muito atraente sobre uma mulher tão segura de si perden­do o controle. O toque extra de cor em seu rosto era enfatizado pela claridade de sua pele...


— Só quis dizer... — Seu gesto indicava que ela não sabia ao certo o que estava dizendo. Mas ele podia tentar adivinhar.


— Quer dizer, se eu o peguei emprestado? E, mais importante, se eu pedi a permissão do dono antes de pegá-lo?


— Sim... — E então: — Não! Perdão. Nem sei mais o que quis dizer.


É um pedido de desculpas. O pacote completo. Ele estava finalmente chegando a algum lugar.


— É um belo carro, Potter — ela disse ao entrar no carro com a facilidade de uma mulher que sabia como entrar num carro esporte. Nádegas primeiro, em seguida as pernas. — É um carro clássico.


— É mesmo — ele concordou. — E pode ficar tran­qüila que tenho a permissão incondicional do dono para usá-lo.


Ela olhou para ele.


— É seu, não é mesmo?


— Cada pedacinho dele — ele disse ao fechar a porta para ela e se dirigir paro o lado do motorista e dar a partida.


Ele nunca se cansava do ronco gutural e suave do motor, da maneira como as pessoas olhavam para ele quando passava pelas ruas. Ele poderia dirigir qualquer carro que quisesse, os carros es­porte mais velozes, qualquer um desses símbolos de riqueza que meninos pobres que se tornam bem de vida dirigiam para avisar ao mundo que esta­vam na área. Ele tinha uma meia dúzia deles para escolher na garagem subterrânea do seu apartamen­to na beira no rio Tâmisa em Londres e numa cabana que comprara num vilarejo à pouca distância de Melchester. Mas essa belezura de 40 anos era o seu favorito.


Ele nunca falhara em fazer as mulheres — até as mais seguras de si como Hermione Granger — suspira­rem.


— Você o reformou por conta própria, Potter? —Hermione perguntou, muito educada, com a respira­ção sob controle, enquanto ele pegava a estrada, na direção da velha parte da cidade. — O Jaguar?


Ele podia ser educado também, mas não ia dei­xar que ela se livrasse dessa tão fácil.


— Certamente, você não acredita que um homem simples e trabalhador como eu poderia restaurar um carro como esse e deixá-lo nessas condições?


— Não creio que tenha jamais sugerido que você fosse um homem simples. E tenho consciência de que em busca de suas paixões as pessoas são capa­zes de coisas extraordinárias.


— Restaurar carros não é minha paixão. — Ele parou no sinal e olhou para ela. — Tenho coisas mais interessantes para fazer deitado, do que coberto de graxa.


Se ele estivesse esperando por uma resposta ir­ritada a tal insinuação, ficaria desapontado. Ela não disse nada e com o perfil no escuro não foi possível ver sua expressão. Em vez disso, ela levantou a mão e ajeitou o cabelo com seus dedos finos num gesto mais nervoso do que espontâneo.


Dessa forma, ele teve a incômoda sensação de que a autoconfiança dela estava apenas na superfí­cie. Havia fragilidade por baixo de toda aquela pose e a autoconfiança não era nada além de uma más­cara superficial — bem polida, mas muito fina. Isso provocava nele um sentimento de proteção e ele se pegou desejando oferecer a ela afirmação em vez de provocação. Ele desejou tocar na mão dela e di­zer: Não se preocupe. Tudo vai ficar bem. Eu farei com que tudo fique bem.


Loucura.


Neil estava certo. Mulheres como Hermione Granger sempre lhe causaram problemas. Ele estava muito mais seguro com mulheres que entendia. Mulheres objetivas, que sabiam exatamente o que ele estava oferecendo, que sabiam que ele lhes proporciona­ria diversão, sexo bom para ambos e absolutamente nenhum compromisso.


Mas desde quando ele preferia as coisas mais seguras?


Ele arrancou devagar com o carro — essa mulher não era do tipo que se impressionava com pegas de adolescentes — e disse:


— Veja bem, eu não estava tentando manipular você no hospital.


Ela olhou para ele.


— Perdão?


Ele não acreditou que ela não tivesse entendido. Ela foi rápida demais para não saber sobre o que ele estava falando. Mas ele também estava sendo um tanto quanto econômico ao dizer a verdade. Não sobre o apartamento. Embora fosse perfeito. Para ele. Se ela se mudasse para lá, ele teria todo o tem­po do mundo para continuar com o joguinho que ambos começaram. E ele teria a cláusula perfeita para ir embora no minuto exato em que visse sua independência ameaçada... Mas ele continuou com o jogo.


— Sobre o apartamento — ele disse. — É bem pos­sível que ele precise de alguma decoração. Acho que me lembro de muitos pretos e vermelhos e não acho que Maggie tenha mudado nada por lá desde que Jimmy partiu. Mas tem espaço suficiente por lá. Você disse que procurava um emprego e um lu­gar para morar. Isso significaria que todos os seus problemas seriam resolvidos numa só tacada.


— O único problema que tenho é você — ela re­trucou.


— E Archie — ele lembrou.


Ela levantou as mãos num gesto incontrolado.


— Tudo bem. E Archie. Mas isso é apenas tempo­rário. Eu não posso me responsabilizar por Maggie. Ou pela loja. Quem vai saber quanto tempo ela leva­rá para se recuperar? A enfermeira disse que foi um infarto leve. É bem possível que ela tenha outro.


— E se alguém não tomar a frente de imediato, alguém competente, a loja fechará, você sabe dis­so, não sabe?


— Você é a segunda pessoa a me dizer isso hoje.


— Bem, você sabe então que não estou apenas dizendo isso por dizer. E, obviamente, isso não vai ser algo demorado. Ela está um pouco confusa no momento, mas logo que se der conta do que está acontecendo Maggie tomará providências para con­seguir alguém permanente.


— Ela também precisará de ajuda. Não será ca­paz de viver no apartamento sozinha. Vai que ela tenha um outro infarto. Demoraria muito até que alguém sentisse falta dela.


— Nesse caso, Jimmy a levaria para um asilo mais rápido do que você pensa.


— Você parece conhecê-lo muito bem.


— Bem o suficiente. Ele puxou o pai. A única pessoa em quem ele está interessado é ele mesmo. — E quando ela olhou para ele: — Maggie foi muito boa para mim quando eu estava com problemas e precisava de alguém. Pague-me um jantar e lhe digo toda a história.


— Tenho uma idéia melhor. Por que você mesmo não muda para o apartamento acima da loja? Dessa maneira você estará por perto se ela precisar de algo.


— Não sou eu quem precisa de um lugar para morar — ele disse. — E já tenho emprego.


— Que tipo de emprego? Um vendedor de óleo de cobra?


— Perdão?


— Não se faça de difícil, Potter.


— Eu? O que eu tenho a ganhar com isso? — ele deu de ombros para controlar o sorriso. Vendedor de óleo de cobra. Se Neil tivesse ouvido isso não perdoaria nunca... — Só estou sempre tentando aju­dar as pessoas. A decisão é sua, Hermione. Dê uma olha­da antes de decidir. — Ele passava com o carro nas ruas estreitas próximas à catedral e finalmente es­tacionou na parte de trás da loja. — Mas primeiro precisamos cuidar de Archie. O que você acha que ele é? — ele perguntou ao destrancar a porta e desli­gar o alarme.


— O seu amigo Jimmy não tinha gosto por ani­mais de estimação exóticos, tinha? — ela pergun­tou.


— Você não vai querer saber a resposta a essa pergunta. — Ela ergueu as sobrancelhas como se su­gerisse que ele precisava crescer. Obviamente, ela pensou que ele estivesse brincando. — Quanto tem­po aranhas venenosas vivem? — ele perguntou. — E cobras?


— Ah, não comece... — ela disse. Mas mesmo assim ela não pôde deixar de tremer ao pensar na­queles bichos.


— Sim, bem, isso foi há muitos anos. Archie não deve ser nada mais do que um periquito neurótico.


— Provavelmente. Mesmo assim, estou começan­do a desejar que tivéssemos perguntado a Maggie o que ele era antes de sairmos do hospital — ela disse no curvar-se para olhar debaixo da mesa.


— Nós? Você é a pessoa que ela deixou no coman­do. Só estou aqui de pura bondade minha — ele disse. — E não acho que vá encontrar o Archie aí, Hermione, pois se estivesse aí teríamos visto ele de manhã.


— Eu não — ela respondeu. — Não estava procu­rando. — E depois de se endireitar — Mas você está certo, não há nada aqui.


— Hora de desbravar o desconhecido, então.


— Você me conforta muito.


Ele estendeu a mão.


— Pegue na minha mão se estiver com medo.


— Guarde suas mãos para você, Potter — ela disse, ao abrir a porta que dava para o andar de cima. Hermione deu um pulo para trás quando algo mole e peludo voou da escuridão.


E de repente ela já não teve tanta repulsa dele. Não agora que ele a segurava tão perto de si.


Ela tremia muito e ele sabia que devia se sentir mal em gozar dela, mas segurá-la daquela manei­ra era bom demais para ele pensar em arrependi­mento.


Seus cabelos, com um aroma suave de xampu, alisavam o rosto dele, a gola do suéter dela tinha o toque suave da caxemira, e seu corpo, mesmo de­baixo das roupas, era uma tentação de curvas. Com uma dificuldade imensa, ele manteve as mãos pa­radas, resistindo ao fluxo quente de desejo que o impulsionava a puxá-la para mais perto, virá-la em seus braços e beijá-la. Seu corpo dizia Tudo bem. Ela quer tanto quanto você.


Talvez ela até quisesse. Mas ele não ia arriscar. Quando a beijasse, queria poder ver seu rosto. Que­ria saber que ela morreria se tivesse que esperar mais um momento.


— Está tudo bem — ele disse, afastando-se um pouco. Sua voz não foi tão firme quanto desejara que tivesse sido. Ele limpou a garganta e disse de novo: — Está tudo bem, Hermione. É só um gato.


— Eu sabia disso...


Hermione deu uma tremida. Ela não acreditara na história da aranha ou da cobra, mas só de pensar já linha sido suficiente para deixá-la toda arrepiada, e mesmo afastando-se, foi com certa relutância. De­pois do dia que tivera, a tentação de cair nos braços fortes de um homem, sem se importar o quanto seu dono era irritante, parecia quase insuportável.


Mas ela já caíra nessa uma vez, quando ficou presa num elevador por tempo suficiente para sen­tir claustrofobia. Aquilo também foi planejado? Não importava, o erro fora seu, e por que mesmo ela estava de volta à estaca zero, quando sempre apren­dia com seus erros?


E, então, afastando-se dele, ela se abaixou para tocar no gato, falando suavemente com o bichano para deixá-lo tranqüilo.


— Eu estava torcendo muito para o Archie ser um periquito — ela disse, com um sorriso fraco ao pegar o gato em seus braços. Ele era grande e carinhoso, seu pêlo, rajado. Um gatinho de livros de histórias. Ela sempre quis um gato desses quando menina. — Eu poderia levar um periquito para casa comigo.


— E não poderia levar um gato?


— Minha mãe já me tem em sua casa lhe pertur­bando. Um gato já seria abusar da boa vontade dela. Isso, supondo que ela não fosse alérgica a gatos. Venha aqui, Archie — ela disse. — Vamos atrás de algo para você comer.


Ele se esfregou nela, rosnando.


— Obrigada por fazer isso — ela disse.


— É para isso que serve um biscateiro.


— Ah, olha só, sinto muito ter dito isso. É que...


— Eu sei. Você teve um dia duro.


— Já tive dias piores — ela admitiu. — Na verdade, o dia de hoje poderia ter sido muito pior sem a sua ajuda.


— Antes de você começar a ficar boazinha comi­go acho melhor deixar claro que Archie não vai para minha casa.


— Você não pode dizer que sua mãe é alérgica — ela respondeu. — Eu já usei essa desculpa.


— Eu não vejo minha mãe há anos, então isso não vai ser problema.


— Oh... Sinto muito.


— A escolha foi dela. Aprendi a viver com isso. Mas ainda assim não posso levar o Archie comigo. Vou viajar amanhã à noite.


— Oh. Isso é muito conveniente. — E acrescen­tou: — De férias ou a trabalho? — Como se isso im­portasse. Antes que ele pudesse responder, ela disse: — Desculpe, não é da minha conta. É melhor eu ir e juntar umas coisas para Maggie.


— Para dizer a verdade, é o aniversário de 18 anos de minha filha. O padrasto dela está organizando uma festinha para ela.


— Oh. — Ele tinha uma filha de 18 anos? Ela fez um cálculo rápido e se deu conta de que ela nascera logo antes dele desaparecer da escola... — Eu não sabia. Sinto muito. — E então: — Não sobre a filha. Sobre o padrasto.


— Tudo bem. Somos muito civilizados um com o outro. Ele permitiu que eu pagasse tudo. — E co­mentou: — Enquanto estiver procurando pelas coi­sas de Maggie, não se esqueça de averiguar o sofá.


Ainda tentando digerir o fato de Harry ter uma filha adulta, ela disse:


— O sofá?


— Você prometeu dormir aqui, não foi?


Havia tantas perguntas que ela queria fazer a ele. Ele já fora casado? Quanto tempo durou? Qual o nome de sua filha?


— Na verdade — ela disse, desviando o olhar —, creio que você era quem andava prometendo as coisas por aí.


Mas ela também teve parte nesse jogo. Olhou para Archie que, depois de devorar a comida que ela lhe preparou, esfregava-se nas pernas dela, rosnando sem parar, querendo colo e carinho.


Estava com saudades de Maggie, sem dúvida. E provavelmente com medo de ser deixado sozinho por mais algum tempo.


— Não tenho escolha — ela disse, dando um abra­ço acolhedor em Archie. — Mas é só por esta noite, — Pensarei em algo amanhã.


Resolver problemas era o que ela fazia de me­lhor, afinal. Quão difícil seria organizar o cuidado de uma livraria, incluindo um gato? Não que ela tivesse algo mais interessante e empolgante a fa­zer. A alternativa era mergulhar de volta num fosso com pena de si mesma.


— É isso mesmo e, para mostrar que não deixarei você cuidando disso tudo sozinha e sem a ajuda de ninguém, farei o possível para consertar seu carro quando voltarmos para o hospital.


Sugerir que Harry parecia um tanto quanto cheio de si não era suficiente para descrevê-lo na­quele momento. Hermione teve uma enorme vontade de dar-lhe um chute na canela, mas conseguiu segurar-se. Homens se oferecendo para consertar o carro de sua mãe eram raros. Talvez nem havia quem quises­se, a não ser que fossem muito bem pagos. Mesmo assim, ela se recusou a parecer desesperada com as complexidades de um motor de combustão interna.


— Deve ser apenas um problema com as velas; — ela disse. — Normalmente, é apenas isso. Eu já estava com uma lixa na mão para resolver o problema quando você apareceu com sua história de cavalei­ro e garanhão.


— Acho que você está me confundindo com al­gum outro cavaleiro errante — ele disse —, mas se precisar da sua lixa, pode deixar que eu peço. — Ele pegou o celular do bolso. — Tenho que dar um tele­fonema. Você pode continuar sozinha por um ins­tante?


— Primeiro o almoço e agora o jantar? O que quer que faça, não conte a verdade a ela, HArry, ela nunca irá acreditar — Hermione avisou, segurando firme sua decepção e irritação pelo fato de, enquanto ele estava ali flertando com ela, uma outra mulher o esperava aparecer.


O canalha apenas sorriu para ela e, deixando-o para lá, ela foi atrás do quarto de Maggie.


O que mais ela esperava? Ele foi o rapaz que a levantara do chão e chamara-a de princesa enquanto saía com alguma rainha da St. Mary.


Ela era uma criança. Ele foi atencioso enquanto ela estava machucada, mas, além disso, ele quase não tinha consciência da existência dela. O fato de que ela o adorava, e de que o seu coração quase se partira quando ele desapareceu da face da Terra, não era culpa dele.


Ela estava machucada agora, uma voz interna lhe disse. Por que não deixar que ele a pegue de novo...


Porque ela já estava adulta, só por isso. Grande o suficiente para lutar suas próprias batalhas. E tal­vez fosse hora dela fazer exatamente isso.


E, então, removendo-o firmemente de sua cabe­ça, ela olhou à sua volta. Apesar de estar bem no centro da cidade, o apartamento era tão aconchegante quanto uma cabana no interior. Feixes de carvalho escurecido aumentavam ainda mais essa impressão, embora a lareira na sala de estar tivesse sido trocada por uma lareira elétrica que parecia muito com uma original.


Dormir ali não seria nada muito difícil de se fazer. Na verdade, ficar de babá de um gato e de uma livra­ria pareceu-lhe uma proposta bastante atraente. Não era exatamente sua idéia de emprego ideal, mas pelo menos era algo que ajudaria alguém que fora gentil com ela desde muito tempo atrás. E, além disso, Mag­gie era alguém de quem sua mãe gostava muito.


Ela podia até trazer seu laptop e começar a tra­balhar naquela lista: "O plano mestre para a vida de Hermione Granger ".


E, então, depois de abrir diversas gavetas e en­contrar tudo o que Maggie precisava, ela decidiu que talvez pensasse sobre a reorganização da loja.


Seria um projeto pequeno, mas pelo menos não haveria um telhado de vidro mantendo-a quietinha em seu lugar.


Ela foi até o banheiro atrás de um roupão e pegou também algumas toalhas. E uma lata de talco.


— Uma moedinha para eles?


Ela deu um pulo ao ouvir a voz de Harry e virou-se para vê-lo de pé próximo à porta a observá-la.


— Uma moedinha?


— Pelos seus pensamentos. Você estava distante.


— Não estava perguntando o que você queria di­zer com isso. Só estava questionando sua falta de conhecimento sobre economia.


— Se não quiser me dizer, é só falar, princesa.


— Na verdade, eu só estava tentando imaginar o que precisaria se estivesse num hospital.


— Ir para casa.


Ela sorriu.


— Isso parece sensato.


— Tive o apêndice removido quando tinha seis anos de idade — ele disse. — Vamos. Você pode levar o restante das coisas que ela precisar amanhã.


— Sim, é verdade.


Ele esticou a mão para pegar a bolsa que ela pre­parou. Ela era completamente capaz de carregá-la sozinha, mas dizer isso provocaria mais um daque­les rompantes, e ela então desistiu. Hermione deu um abraço em Archie — que por sinal passara o tempo inteiro colado nela — e o assegurou que voltaria em breve antes de trancá-lo no apartamento.


No hospital, Harry deixou-a na entrada e, ao pegar as chaves do carro dela, largou-a para lidar com Maggie. Quando voltou, meia hora depois o motor do carro já estava funcionando. Ele desligou e desceu.


— Tente você — ele disse.


Ligou no primeiro girar da chave.


— Meu Deus, você é um gênio.


Ele se curvou para ela e disse:


— Esse jantar vai ter que ser muito bom.


— Perdão?


— Aquele que você está me devendo.


— Na verdade, esse pode pôr na conta da minha mãe,PotTer. O carro é dela.


— Eu fiz o serviço para você, Hermione. E é você que vou procurar para acertar as contas.


— Oh, veja bem...


— Não entre em pânico. Cancelei a reserva da mesa para esta noite.


— Perdão?


— O que mais você tinha planejado? Quando tivesse terminado sua tarefa visitando os doentes no hospital?


Então era por isso que ele aparecera por lá. Ele sabia que ela estaria lá...


Ela tentou não se aparentar bajulada pela insis­tência dele e disse:


— O meu plano era vasculhar o jornal local na esperança de encontrar um apartamento que eu pu­desse alugar — ela mentiu.


Ele sorriu.


— Bem, isso já está resolvido, então podemos nos concentrar na comida. Quando você tiver recolhi­do tudo o que precisa, já estará tarde para irmos a um restaurante, a não ser que peguemos algo para comer em casa. O que você prefere? Já que está pagando. Chinês, indiano? Ah, tem um restaurante tailandês muito bom...


— Esqueça,Potter. Nunca concordei em lhe pagar um jantar, e mesmo se tivesse...


Não, não, não! Agora ela lhe dera uma abertura.


— Sim? — ele perguntou, sem delongas.


— Eu prefiro perguntar. E você decide onde e quando.


— Creio que ambos sabemos que se ficar para você decidir seria no primeiro dia frio do inferno.


Seria mesmo, se ela tivesse algum bom senso...


— Metade do prazer está na espera — ela disse.


— Metade? Acho que alguém tem passado a per­na em você, princesa.


— É mesmo? Eu estava me referindo à comida, vinhos finos e excelente companhia. Talvez você tenha algo mais em mente. — E então ela tinha algo com o que rir. — Comida de lanchonete, talvez?


— Eu, hein.


— Quando quiser.


— Está certo. Estou preparado para esperar por boa comida, bons vinhos e ótima companhia. Va­mos dizer, então, até sábado. Depois disso, esteja preparada para aparecer para pagar o jantar que eu escolher. Enquanto isso, você vai precisar de uma carona até a casa de Maggie. A não ser que sua mãe esteja preparada para lhe deixar o carro por muito tempo.


— Não, ela precisa dele para trabalhar, mas você não precisa dar uma de chofer. Estava planejando chamar um táxi.


Ele não discutiu, apenas disse:


— Por favor, vamos tentar não ter uma conversa desagradável mais uma vez. Eu lhe sigo. — E, en­tão, fechou a porta do carro dela antes de entrar em seu Jaguar.


Quando ele ligou o carro, ela já estava fora do estacionamento. Ela não estava particularmente empolgada em passar pela alameda escura atrás da loja sozinha, mas também não queria que Harry pensasse que ela era incapaz de se virar sem ele. Não que ela imaginasse que precisava, e lá estava, quando olhou pelo espelho retrovisor, o Jaguar bem atrás dela, a uma distância segura.


Era ridículo ficar irritada pela certeza de Harry que, mais cedo ou mais tarde, ela cairia na conver­sa e no charme dele. Ela seria a primeira a admitir que ele tinha toda razão para ser tão autoconfiante: ele não fazia a menor idéia que ela tomara uma va­cina contra homens do tipo dele e agora estava completamente imune.


Ela só desejava que ele fosse atrás de alguém com mais receptividade para as suas paqueras. Alguém que não se incomodasse em ser chamada de princesa. A garota que ele deixou esperando no al­moço, por exemplo.


— Não vou demorar — ela disse ao estacionar pró­xima ao que no passado fora uma enorme casa e hoje em dia estava dividida em pequenos apartamentos.


Por um momento terrível, ela pensou que ele fosse insistir em levá-la até a porta, obrigando-a a ter de explicar quem ele era. Embora ela já não fos­se mais uma menininha, sua mãe colocaria dois e dois juntos e acreditaria saber exatamente o porque dela ter se produzido toda pela primeira vez depois que perdera o emprego: ela se sentia como uma adolescente trazendo para sua casa o menino mau. Não que ela já tivesse feito isso. Ela não era assim tão estúpida. Sua mãe enfiara muito bem em sua cabeça a necessidade de se ter uma boa educação, uma boa carreira. Tudo o que ela trazia para casa era dever de casa e mais dever de casa.


Até agora.


— Só preciso explicar onde vou estar — ela disse. — E fazer uma mala para poder passar a noite por lá. Voltarei em no máximo dez minutos.


— Não se apresse. Estarei aqui.


Pensando bem, como o arquetípico menino mau, ele provavelmente passara a vida inteira evitando estar na presença de mães.


Ele não precisava ficar preocupado. A mãe dela ainda não havia voltado do seu jogo semanal de bingo e ela apenas escreveu um bilhete dizendo onde estaria, deixando-o com as chaves do carro.


Ele estava encostado no Jaguar falando no tele­fone quando ela chegou. Ele se endireitou quando a viu, fechou o telefone e guardou-o no bolso.


— Ela está ficando impaciente? — Hermione perguntou.


— Ele — Harry respondeu ao pegar o laptop dela e a bolsa e abrir a porta. — Era trabalho.


— Oh! — E acrescentou: — É meio tarde para isso, não é?


— Você sabe como é, Hermione. — Ele abriu um sorri­so lento, do canto da boca. — O trabalho de um biscateiro nunca termina.


Ela entrou no carro sem dizer uma palavra se­quer. Ele ainda estava sorrindo quando se sentou ao lado dela. Deixe que ele ria. Ela já pedira desculpas. Ela não ia se humilhar mais.


— Você já decidiu o que gostaria de comer? — ele olhou para ela. — Você está com fome, não é mesmo?


Ela estava morta de fome. Pela primeira vez em semanas ela poderia ter comido um cavalo, mas não ia admitir. Maggie certamente teria uma lata de feijões cozidos que ela podia esquentar e comer com torradas.


— Obrigada, mas acho que vou segurar até sábado.


— Até sábado?


— Essa foi a data-limite que você escolheu, não foi? Que tal oito horas no Ferryside?


— No Ferryside?


— Tem eco aqui?


— Você pode pagar um jantar lá? — ele perguntou. Provavelmente não, mais valeu a pena vê-lo momentaneamente sem palavras.


— Eu lhe disse, Harry. Não gosto de encon­tros baratos.

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