King's Cross
—Capítulo 12—
King’s Cross
A grande estação de trem em Londres estava lotada como de costume. Multidões de pessoas entravam e saiam das plataformas, embarcando e desembarcando dos trens. Algumas pessoas passavam solitárias, apressadas. Outras falavam em telefones celulares, carregando valises. Haviam também aqueles grupos de pessoas, sempre desconfiados, que seguiam rumo à divisória das plataformas 9 e 10 e sumiam de vista.
A mulher de longos cabelos loiros e cacheados estava sentada num pequeno café ali perto, observando justamente esses grupos de pessoas. Vez ou outra bebia um gole do café, mas, na maioria do tempo, parecia esquecer que havia pedido. Seu olhar estreitou na direção de um homem vestido com um terno negro, com feições rudes, que pareciam ter sido talhadas em pedra. Andava de um lado para o outro, mas sem nunca afastar-se da barreira entre as plataformas.
—Tem dois vigiando a entrada. —Disse um homem de cabelos ruivos, espetados, barba fechada e rosto arredondado, sentando-se bruscamente ao lado da mulher, que derramou um pouco de café com o susto.
—Porra, Pedro! —Exclamou Sophia, pegando um pouco de guardanapo para se secar. —Avisa da próxima vez!
—Vincent! —Exclamou o garoto por entre os dentes, olhando furtivamente para os lados. —Não esqueça. Não podemos usar nossos nomes de verdade.
—Tudo bem, tudo bem...me esqueci. —Disse a garota, com uma certa impaciência, enquanto terminava de secar a roupa. —Onde está a Demelza?
—Está terminando de se vestir. —Murmurou Pedro, olhando por cima do ombro. O homem que vigiava a plataforma havia recomeçado a andar, enquanto outro se encostava na divisória, assumindo seu lugar. —Foi difícil encontrar um banheiro vazio.
—Ela tem que ir rápido. Faltam trinta minutos para o trem partir.
Pedro assentiu brevemente, sentindo as mãos suarem.
Mesmo a contragosto, as garotas concordaram em ajudar-lo. Em pouco tempo armaram um plano que, na opinião dos três, tinha tudo para dar errado.
Pedro e Sophia se disfarçariam como um casal levando sua filha até o Expresso de Hogwarts. Gillian, a filha, encheu o malão de coisas leves, para facilitar na hora de carregar. Entrariam na plataforma 9½ e, uma vez lá dentro, tentariam identificar Rodolphus Lestrange. O que aconteceria a partir daí, não havia sido planejado.
—Ainda podemos desistir. —Disse Sophia, olhando nervosamente para os lados.
—Se vocês quiserem voltar para o apartamento, tudo bem. —Disse Pedro, ainda olhando por cima do ombro, na direção das plataformas, antes de voltar a olhar para a prima. —Eu vou continuar.
—Não vamos te deixar aqui sozinho. —Murmurou Sophia, olhando feio para o primo. Pedro meramente sorriu para a prima e voltou a vigiar os dois.
—Pronto! Consegui! Foi mais difícil do que imaginei. —Disse uma voz ao lado deles.
Pedro e Sophia olharam para o lado ao mesmo tempo e encararam a garota. Pedro deixou o queixo cair de leve, enquanto Sophia prendeu uma risada, levando a mão até a boca. Gillian ergueu uma de suas sobrancelhas angulosas e bem delineadas, olhando sem entender para os dois.
—O que? Ficou ruim? —Perguntou a garota, que estava com o cabelo loiro, num penteado estilo anos 80 e rosto pontudo.
—Não...está ótimo. —Disse Pedro, trocando um olhar divertido com a prima, antes de voltar-se para Gillian. —Mas...Cherie Curie?
—Ah, vai! Eu não consegui pensar em mais ninguém! —Disse a garota, com um ar desanimado. —Vamos! Não podemos perder o trem.
Pedro olhou brevemente para o relógio de pulso. Faltava pouco mais de meia-hora para o trem partir. Levantou-se da cadeira rapidamente e, lançando um rápido olhar à plataforma de embarque, viu que o Comensal que andava havia retomado o posto próximo à divisória, enquanto o outro reassumia o posto. Pigarreou impaciente enquanto Sophia terminava de pagar o café e, antes que elas resolvessem ir, o garoto já estava à meio caminho da plataforma.
—Ped...Vincent! —Exclamou Sophia, esticando o braço para segurar o do primo. —Não acha que chegar lá sozinho vai ser...estranho?
O garoto parou, virando meio irritado para encarar o rosto transfigurado da prima. Mesmo com o queixo mais pontudo e o rosto mais ossudo, a expressão determinada de Sophia permanecia presente. Deixou o braço relaxar um pouco, sacudindo a cabeça negativamente como se estivesse espantando um enxame de abelhas.
—Você tem razão. Me desculpa. —Murmurou, olhando para a prima por um instante, antes de olhar para o relógio. —O trem já via partir.
—Vamos rápido então. —Disse Sophia, ainda olhando para ele firmemente. Escorregou a mão pelo braço do primo antes de engatar o próprio ao dele. —Tente não parecer tão tenso.
Pedro apenas balançou a cabeça positivamente, sem emitir uma palavra. O comensal encostado na parede agora dava lugar ao que fazia a ronda pela estação. Estreitou um pouco o olhar na direção deles antes de respirar fundo, tentando manter o ar mais natural possível. Aproximaram casualmente da barreira que separava as plataformas nove e dez e já estavam quase chegando à parede de tijolos rígida, quando o braço do Comensal bloqueou o caminho.
—Varinhas. —Ordenou naquela voz baixa e rascante, que mais parecia o rugido de um felino selvagem. Pedro, Sophia e Gillian puxaram as varinhas discretamente e mostraram. O homem olhou desconfiado para elas, antes de voltar a analisar o rosto deles. —Como posso saber que são suas de verdade?
—Corda de coração de dragão, feita de carvalho, trinta centímetros. —Disse Pedro, sem emoção alguma. Olhou para Sophia e para Gillian, esperando elas falarem as especificações de suas varinhas, antes de voltar-se para o homem. —Podemos passar? Estamos quase atrasados.
—Tudo bem. —Disse o comensal, com um ar resignado, ainda olhando desconfiado para eles. —Lá dentro irão verificar seus nomes.
E, virando o rosto para observar o restante da multidão, abriu espaço para os três passarem. Sentindo uma espécie de peso descer por sua garganta e acomodar-se gelado na boca de seu estomago, Pedro seguiu ao lado de Sophia e Gillian para a plataforma 9½. Ao contrario de anos anteriores, onde a movimentação na plataforma era intensa e a conversa animada rondava o local, a plataforma parecia envolta por uma atmosfera escura. Comensais da Morte rondavam os alunos, tomando de assalto as crianças e até os pais, encostando-os na parede e fazendo uma série de perguntas sobre sua árvore genealógica.
—Isso é terrível. —Deixou escapar Gillian, junto à um suspiro triste.
—Vamos. —Resumiu-se Pedro, pondo a mão no ombro de Gillian e encaminhando-se na direção do trem.
—Com licença, senhores. —Disse uma voz arrastada e sem nenhuma emoção. Viraram o olhar para o lado e depararam com um homem atarracado, de nariz adunco e olhos maldosos e escuros. —Nomes?
—Ahm... —Pedro lançou um rápido olhar para Sophia e Gillian, antes de voltar o olhar para o homem, tentando parecer o mais natural possível. —Vincent Robins. Essa é minha esposa, Michelle. E nossa filha, Demelza Robins.
O homenzinho estreitou o olhar na direção de Gillian, como se tentasse encontrar alguma mentira em seus olhos. Gillian sorriu um tanto nervosa, apertando ainda mais o malão com as mãos, para que estas não tremessem tanto. Finalmente ele desviou o olhar na direção de um longo pergaminho que trazia em mãos, correndo o dedo por sua superfície como se procurasse algo.
—Aqui. Srta. Robins. —Murmurou com um arzinho desdenhoso, murmurando um “Grifinória”, antes de voltar a olhar para ela. —Pode embarcar.
Achando que já estava dando sorte de mais, Pedro apressou o passo, levando as duas consigo. Já havia se afastado alguns metros dele, quando ouviu sua voz novamente.
—Me desculpe, Srta. Robins. —Disse o homenzinho, a voz cheia de um triunfo estranho. Pedro fechou os olhos com força, soltando o braço de Sophia e levando ao bolso onde estava a varinha, segurando-a com força. —Eu poderia fazer algumas perguntas?
—Ahm...ahm...claro. —Disse Gillian, lançando um olhar apavorado para Pedro, antes de voltar-se para o homenzinho.
—Você é da mesma casa de Harry Potter, não? —Perguntou, estreitando o olhar.
—Ahm...sim. —A incerteza na voz de Gillian crescia, olhando para os dois ao seu lado como se buscasse um apoio.
—E você jogou na equipe de Quadribol enquanto ele era capitão. Certo?
—Certo...
—Você tem tido noticias dele? —Perguntou o homenzinho, parecendo ansioso pela resposta.
—Ah! —Exclamou Gillian, com um súbito entendimento em sua voz. —Não, não. Não éramos tão amigos.
A excitação do homenzinho pareceu murchar como um balão. Com um muxoxo frustrado, fez um sinal para que eles continuassem. Pedro voltou a segurar o braço da prima e arrastou-as o mais rapidamente para longe dali, para fora da visão do homenzinho e dos outros comensais.
—Até agora tudo bem. —Disse Pedro, limpando o suor do rosto. —Temos que procurar o Rodolphus.
—Mas estão todos usando mascaras. —Disse Sophia, olhando por cima do ombro. —Como vamos encontrar ele?
—É só procurar um grandalhão meio idiota. —Disse Pedro, franzindo a testa.
—Ok, como se NENHUM comensal fosse grandão e idiota. —Disse Gillian, com um ar irônico. —Isso não vai dar certo, deveríamos ir embora.
—Vocês podem ir. —Disse Pedro, esticando o pescoço para observar melhor. —É até melhor assim. Não quero colocar ninguém em perigo.
—Nós não vamos te deixar sozinho no meio de um monte de Comensais. —Disse Sophia, estreitando o olhar na direção do primo.
Pedro virou o olhar na direção da prima, sentindo um misto de irritação e gratidão. Irritação por não querer meter elas naquela situação perigosa. E gratidão, óbvio, pela lealdade que ela demonstrava. Tentando não demonstrar nada daquilo, voltou a olhar para a plataforma, esticando mais o pescoço;
—O trem parte em 10 minutos. Temos esse tempo para procurar e depois sumir da melhor maneira possível. Acho melhor nos separarmos. Esse é o Rodolphus. —E tirou do bolso do casaco a velha foto de jornal do dia do julgamento. —Se o virem, não façam nada. Tentem marcar ele de alguma forma. Pisem na capa dele, sujem com terra, qualquer coisa. É eu sei, é bem primário, mas é tudo o que podemos fazer!
Sophia e Gillian trocaram um olhar desconfiado, mas ainda assim assentiram. Com desejos mútuos de boa sorte, os três partiram em direções opostas. Os alunos já começavam a entrar no trem. As despedidas eram pontuadas por choros mais prolongados e mais intensos. Pais pareciam não querer largar seus filhos, mas eram logo separados à força por Comensais da Morte, que empurravam as crianças para dentro dos vagões. Alguns feitiços voavam em tentativas frustradas dos pais de tentar pegar seus filhos novamente, mas eram logo frustrada por Comensais. Tentando ignorar a diversão sádica dos Comensais em torturar os pais desesperados, Pedro seguiu em linha reta, olhando para cada rosto, tentando identificar algo em cada fenda de máscara.
Então, uma mascara em particular chamou sua atenção. Era uma mascara que simbolizava a dor. Usava um corpete apertado e botas de cano longo. Sua capa parecia ser mais leve do que a dos outros Comensais. Ela virou o olhar e, por um breve instante, seus olhares se encontraram. Sentiu o coração martelar no peito com força, quase gritando para ele desviar o olhar. Voltou a olhar para frente e apressou o passo, sentindo os olhos da Comensal presos em sua nuca.
Passou rapidamente por uma horda de alunos que entrava em fila no trem, sentindo finalmente o olhar longe de si. Deu mais alguns passos até encontrar uma pilastra, escondendo-se atrás dela.
—Droga...o que ela está fazendo aqui? —Perguntou baixinho, quase como praguejando, olhando por cima do ombro.
Lentamente a plataforma esvaziou-se, sobrando apenas pais angustiados olhando para o trem e os Comensais da Morte que agora se enfileiravam diante do trem para impedir que os pais tentassem tirar os filhos do Expresso. Com um suspiro profundo, Pedro começou a andar diante deles, tentando reconhecer entre as frestas das máscaras algo que denunciasse Rodolphus Lestrange. Um chiado alto anunciou que o trem estava partindo. Ouviu o som metálico das rodas em contato com os trilhos e a locomotiva começava a puxar os vagões rumo a Hogwarts...
—Hey, espere!! —Gritou uma voz retumbante que ecoou pela plataforma. —Está faltando uma!!
—Me larga, seu lagarto mal acabado! —Gritou uma voz exasperada, bufando constantemente, como se estivesse lutando para se libertar.
Pedro virou o olhar rapidamente em direção a confusão. Com um rangido alto e um baque, a locomotiva parou. Um comensal adiantava-se em direção aos outros. Segurava, pela gola das vestes, em uma das mãos, uma garota de cabelos loiros e rosto pontudo. Se debatia violentamente, tentando soltar-se do homem que parecia não se incomodar.
—Ah, Gillian. —Murmurou Pedro, com um gemido dolorido.
—Edgard! Quem é essa?! —Perguntou o Comensal, sacudindo Gillian na direção do homenzinho de antes. Edgard atrapalhou-se, mas tirou rapidamente o grande pergaminho do bolso, desenrolando-o.
—Ahm, aqui...aqui...só um instante... —Dizia com uma voz um tanto tremula, passando o dedo pela lista. —Aqui! É a Srta. Robins. Demelza Robins.
—Ah, Srta. Robins. —Disse o comensal que segurava Gillian, sorrindo de uma forma maldosa. —Muito bem. Alguém tem que mostrar os novos modos de Hogwarts aos alunos.
Todos os pais na plataforma agora olhavam para a cena, ainda mais angustiados do que antes. Os alunos se acotovelavam nas janelas para ver o que estava acontecendo. O Comensal grandalhão largou Gillian no chão, como se ela fosse um saco de batatas. Puxou a varinha do cinto e apontou para ela, com uma expressão de cruel satisfação.
—Cruci...
—Estupefaça! —O grito veio do meio da multidão furando a pequena aglomeração e atingindo a mão do Comensal, que girou e tropeçou para o lado. Sua varinha voou alguns metros no ar, caindo próximo aos outros Comensais que se enfileiravam diante do trem.
—Mas o que diabos... —Praguejou o Comensal, a mão aparentemente dormente pelo feitiço, virando-se na direção de onde viera.
A multidão deu um passo para o lado, para abrir a visão. Sophia estava parada com a varinha ainda erguida, apontando diretamente para o Comensal da Morte. Lentamente o choque foi dando lugar à raiva. O rosto do Comensal se retraiu em rugas profundas de ódio.
—Oras, quem pensa que é sua... —Dizia o grandalhão, o dedo em riste apontando para Sophia. Em passos apressados, foi em sua direção.
—Locomotor Mortis!
À alguns passos dela, a perna do Comensal grudou-se na outra. Seu corpo balançou-se para frente e para trás como se fosse uma torre sem equilíbrio, antes de tombar de costas no chão. Como uma platéia num jogo de tênis, os pais e os Comensais da Morte viraram seus rostos para o outro lado. Agora era Pedro quem estava segurando a varinha, apontando diretamente para o Comensal caído de costas no chão. Por um instante o silêncio no local foi sepulcral. Então, com um berro de fúria, o grandalhão voltou a falar.
—Seus idiotas! O que fazem aí parados?! Peguem eles!!
Como em câmera lenta, todos os Comensais puxaram suas varinhas do bolso. Quando os feitiços começaram a ser disparados para todos os lados, na tentativa de acertar Pedro e Sophia, os pais começaram a desaparatar. Um Comensal berrou uma ordem para o maquinista seguir com o trem, enquanto estudantes se jogavam no chão, desviando de feitiços que quebravam as janelas do Expresso de Hogwarts.
—Você está bem?! —Berrou Pedro, desviando de alguns feitiços, empurrando um Comensal com o ombro até chegar onde Gillian estava. A garota estava abaixada, as mãos sobre a cabeça, desviando dos feitiços.
—Estou ótima! Mas me lembre de te matar se sairmos vivos daqui! —Disse a garota, levantando-se um pouco receosa, mantendo as mãos sobre a cabeça para proteger-se dos feitiços que voavam para todos os lados.
—Encontre a Sophia e saiam daqui rápido! —Gritou Pedro, empurrando ela pelo ombro, enquanto, com a outra mão, fazia um movimento em forma de arco com a varinha, desviando um feitiço que voava na direção deles.
—Pára de ser teimoso, nós não vamos te abandonar! —Gritou Gillian, tentando sobressair-se à balburdia geral. Puxou a varinha meio atrapalhada, lançando um facho de luz vermelha de sua ponta, derrubando um Comensal que partia em direção à eles.
—Eu não vou ficar! Mas a Soh precisa de alguém para aparatar com ela! —Gritou Pedro, abaixando-se e desviando-se de mais um feitiço. O expresso já se tornava apenas uma linha de fumaça ao longe. —Agora VAI!
Ainda injuriada, Gillian estuporou mais um Comensal e correu na direção da mulher loira que tentava afastar-se de um grupo de Comensais, lançando feitiços aleatório. Pedro voltou a olhar para os Comensais próximos. Não poderia dizer se algum deles era Rodoplhus Lestrange, mas com a grande quantidade de feitiços que tinha que desviar ou rebater, não conseguia concentrar-se em procurar-lo.
Um ‘crack’ alto e urros de frustração indicavam que Sophia e Gillian haviam aparatado. Abaixou-se para desviar de um feitiço, deixando que atingisse um Comensal atrás dele, segurando a varinha com força, preparando-se para girar no ar e sumir, quando uma voz fria e cortante ecoou pela plataforma.
—Parem!
Como uma TV que é repentinamente colocada no mudo em uma cena de ação, toda a plataforma calou-se. A figura de corpete de couro negro e mascara simbolizando a dor destacou-se em meio aos demais Comensais. Era mais baixa, mas parecia intimidar até o grandalhão que antes sacudira Gillian. A pancada seca de suas botas na madeira da plataforma ecoou pelo local, quebrando o silêncio. Parou à três metros dele, olhando em seus olhos por trás da máscara fria que cobria seu rosto, antes de falar num sussurro, que espalhou-se como veneno pela plataforma.
—Vocês já terminaram o que tinham que fazer. Os moleques já estão no trem, indo direto para o Castelo. Agora, saiam daqui. —E ergueu uma mão quando um Comensal fez menção de protestar. Ele paralisou no mesmo lugar, como se tivesse sido petrificado. —Ele é meu.
Um a um, como se tivessem sido libertados de um feitiço, os Comensais começaram a desaparatar. Só quando o ultimo ‘crack’ ecoou pela plataforma, foi que ela voltou a falar.
—Tire esse disfarce ridículo. Você fica ainda mais patético desse jeito.
Por um instante Pedro permaneceu parado, a varinha segura firmemente entre as mãos que tremiam de leve. Quando as juntas estavam rígidas e brancas de tanto apertar a varinha, seu corpo relaxou. Soltou um suspiro cansado por entre os lábios antes de erguer a varinha, murmurando alguns feitiços. Como num filme acelerado, seus cabelos foram crescendo e escurecendo. Seu rosto retornou as feições originais. Quando, por fim, já era ele novamente, abaixou a varinha, mantendo-a presa firmemente na mão direita. A Comensal observou tudo impassível, os braços ao lado do corpo, encobertos pela capa.
—Como me reconheceu? —Perguntou Pedro, dando um passo para o lado. Ela notou o movimento e deu um passo na outra direção. Logo começaram a andar em círculos, sempre um de frente para o outro.
—Seu olhar. Você pode estar disfarçado do que for. Continua sempre com esse olhar de cãozinho perdido. —Murmurou a Comensal, maldosamente, enquanto seguia andando em círculos.
Pedro resmungou alguma coisa, mas aparentemente nada que a Comensal tivesse escutado. Num movimento rápido, lançou um feitiço na direção dela, que apenas virou o rosto para desviar. O feitiço atingiu parte de sua máscara, fazendo-a voar longe. A máscara bateu duas vezes no chão antes de parar próximo à beirada da plataforma. O som de sua pancada no chão ecoou por toda a plataforma vazia, antes de tornar-se apenas um zumbido
Os cabelos negros dela deslizaram por seu rosto como se fosse uma cortina. Ela virou lentamente o olhar, usando apenas uma das mãos para afastar os fios da frente de seus olhos. Ergueu o queixo, seus olhos castanhos fitando o garoto demoradamente, com uma postura um tanto quanto esnobe.
—Morgan... —Murmurou Pedro, apertando mais a varinha nas mãos. A garota dirigiu-lhe um sorriso singelo, porém um tanto macabro. Por um instante pararam de andar, apenas encarando um ao outro. Então, sem explicação, puxaram suas varinhas.
Os feitiços colidiram no meio, espalhando uma chuva de fagulhas para os lados. Mantiveram os feitiços por um instante, como dois guerreiros medindo força com espadas, antes de afastarem-se, rompendo os feitiços. Então, em movimentos rápidos, ainda como se estivessem brandindo uma espada, seguiram disparando feitiços um contra o outro, que ricocheteavam em suas defesas e explodiam no piso e na parede. Quando um feitiço da morte passou zunindo por sua orelha, Pedro correu até uma pilastra, escondendo-se atrás dela pare recuperar o fôlego.
—Já está cansado, garoto?! —Perguntou Morgan num tom de voz maldoso. —Você estava um pouco mais disposto na nossa ultima luta.
Rangendo os dentes, Pedro levou a mão até a coxa, passando de leve os dedos pelo músculo recriado depois de ser estrunchado. Girou o corpo para fora da pilastra para lançar o feitiço, mas ela já não estava mais lá.
—Mas o q...
Antes que pudesse responder, sentiu uma dor fora do comum atravessando a lateral de seu corpo, rasgando sua carne. Olhou para baixo e viu a lamina negra de uma espada transpassando seu corpo. Num movimento rápido e acompanhado de um grito, a lâmina foi retirada. Cambaleou dois passos para frente e tombou de joelho no chão, sentindo a visão turvar-se diante de si.
—Sua concentração é péssima. —Disse Morgan, parada atrás dele. A espada que segurava pingava o sangue do garoto. Recolheu um pouco com o dedo indicador e lambeu-o antes de sorrir de uma forma macabra. —Acho que já disse isso, não?
Pedro continuava parado à sua frente, de joelhos, as mãos sobre o ferimento. Seu corpo parecia tremer intensamente, como se estivesse cometido de uma forte febre. Dando uma risada irônica pelo nariz, a garota abaixou a espada e aproximou-se lentamente dele. Parou ao seu lado e observou seu rosto encoberto pelo cabelo negro que lhe caia sobre os ombros. Ergueu a espada acima da cabeça, a ponta direcionada para o céu.
—Ultimas palavras?
—Sim... —Murmurou Pedro, a voz fraca e um tanto tremida. Respirou fundo, o corpo dando mais uma tremida, antes de virar-se num movimento rápido. Girou o braço como quem arremessa uma bola, lançando uma esfera de fogo em direção à Morgan. —Come fogo!!
A garota arregalou os olhos e abaixou a espada rapidamente, bloqueando o ataque. Quando se deu conta, o garoto já estava de pé, uma bola de fogo em cada mão. Sem esperar qualquer palavra ser dita, começou a atirar as esferas contra Morgan, que começou a recuar, protegendo o corpo com a espada. As chamas pareciam brotar de seu corpo como se cada poro de seu corpo fosse um isqueiro. Sem chances para defesas, apenas pôde andar para trás, brandindo a espada para desviar do fogo que ele lançava contra ela.
Deu mais um passo para trás e sua perna afundou um pouco, fazendo-a perde o equilíbrio. Usou a espada para apoiar-se e conseguiu repor a perna no nível do chão. Olhou para trás e deixou um xingamento baixinho escapar por entre seus lábios. Havia chegado à beirada da plataforma. Olhou para frente e deparou-se com a mão do garoto, à centímetros de seu rosto. Podia sentir pequenas ondas de calor emanando de sua pele e tocando seu rosto como uma brisa quente de verão. Por longos e angustiantes minutos, ficaram naquela posição, antes que ele fechasse as mãos, fazendo pequenas faíscas de fogo voarem por entre seus dedos, antes de dar as costas.
Morgan seguiu estática, estarrecida, no mesmo lugar. Piedade não era algo com o qual estava familiarizada. Desde cedo, havia sido criada para matar, sem sentir nada como piedade ou compaixão por seu inimigo. Encarou as costas do garoto que se afastava, ainda sem saber o que havia acontecido, até recuperar a capacidade de falar.
—HEY!! —Gritou a garota, fazendo sua voz ecoar pela plataforma. —Acha que vou ser boazinha com você só porque não me matou?!
Pedro parou com um passo suspenso no ar. Seu olhar seguia baixo, encarando o chão, o cabelo caindo por sobre seu rosto, encobrindo qualquer vislumbre de seus olhos. Por fim, deu uma risadinha baixa e voltou a andar.
—Não.
—Então...Então porque não me deu o golpe final?! —Berrou a garota, fazendo um gesto largo com a mão.
Dessa vez ele não parou de andar. O som de seus passo e a pergunta de Morgan ecoaram pela plataforma por alguns minutos. Então, com a voz baixa, porém audível para ambos, respondeu.
—Porque você é minha irmã...
E, sem esperar para ver o rosto chocado de Morgan, girou no ar, espalhando um alto crack pela plataforma, ecoando pelo local e pelo coração da garota, que agora batia dolorosamente.
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