A terrível transformação
A enfermeira disse que meus caninos poderiam ou não se modificar com a transformação. O trabalho dela seria verificar se eles iriam ou não e se isso iria influenciar de alguma forma na minha mastigação. Eu não pude deixar de soltar uma risada irônica, como se o meu maior problema fosse a minha mastigação.
Naquela tarde, mamãe veio de novo para o hospital ficar comigo. Ela parecia preocupada. Toda a minha mobilidade já tinha voltado, então eu consegui sentar na cama para que ela pudesse conversar sério comigo.
- Liz... – Ela começou, pensando bem nas palavras. Como curadora, ela estava acostumada com discursos escritos com antecedência, e não gostava de improvisos. Eu pude ver que ela estava escolhendo as palavras com cuidado. – Os curandeiros disseram... Eles disseram que poderiam me ensinar a fazer aquela poção... Como é o nome?
- Mata-cão? – Eu arrisquei. Poções era a minha matéria favorita, uma das poucas coisas em que eu me destacava.
- Acho que seria essa. – Mamãe disse enquanto torcia um cacho do cabelo. – De qualquer forma, eles disseram que poderiam me ensinar. Eu falei que não adiantaria, que eu sou péssima com poções e eles disseram que poderiam lhe ensinar. Mas como... bem, como tem o seu pai, ela não vai ter os mesmos efeitos que em... você sabe.
Imaginei que com o “você sabe” ela queria dizer “outros lobisomens”. Eu senti um enorme frio na barriga. Eu não me sentia diferente. Estava machucada, mas não me sentia isso. Não me sentia um lobisomem. Mamãe pigarreou antes de continuar.
- Então eles vão lhe ensinar a fazer a poção. Também vão nos dar uma licença de compra, sabe, para os ingredientes mais raros. Eles... Eles também querem que você esteja aqui para a sua primeira transformação.
Mamãe estava a ponto de chorar novamente. Eu respirei fundo. Sabia que não entenderia direito o que acontecera até a minha primeira transformação. Lembrei de Ted Lupin e seus relatos das dolorosas transformações. Claro, como eu era antes, Ted era apenas um filho de lobisomem e não se transformava completamente. Mas as descrições que o garoto fazia eram assustadoras.
- Eu vou precisar ficar aqui até a lua cheia? – Eu perguntei. Mamãe me olhou cheia de orgulho pela minha coragem, mas a verdade era que eu não conseguia entender o que estava acontecendo ali.
- Se você quiser, se você achar melhor. – Ela disse. – Mas pode voltar para casa também.
Resolvi voltar para casa. Como eu havia dito, a primeira coisa que fiz foi chamar Zoe, Agatha e Paul para me ajudarem a pintar o meu quarto. Paul estava viajando, por isso não havia me visitado no hospital.
Todas nós desconfiávamos que Paul era gay, mas ele nunca confessara nada. Ele dizia que Kevin era o homem perfeito para mim e sempre me ajudava a escolher as minhas roupas. Fiquei com medo de como ele iria reagir quando eu contasse para ele do ataque e do que... do que eu havia me tornado. Com um sorriso triste, ele simplesmente me deu um beijo na bochecha, fazendo com que eu me sentisse querida.
- Rosa? – Zoe reclamou quando viu uma das latas de tinta.
- Não, garota, isso é salmão. – Disse Paul.
- A Liz não combina com rosa! – Ela protestou. – Deveria ser roxo, ou preto, ou azul ou até vermelho. Mas rosa?
- Salmão! – Insistiu Paul.
- Eu só... cansei do branco. – Eu disse, tímida. Olhei para o meu gesso, que agora já tinha todo tipo de desenho. A maioria deles feitos por Agatha.
- Você quer coloridão ou tem algo em mente? – Agatha perguntou, coordenando a operação.
- Eu só não quero mais branco. – Eu adverti.
Cada um se responsabilizou por uma parede. Mamãe estava preocupada comigo e, a cada cinco ou dez minutos, ela aparecia para oferecer alguma coisa, como limonada e sanduíches.
Quando terminamos, meu quarto parecia um arco-íris. Eu sabia que iria ter dificuldade de dormir ali e que até as próximas férias mamãe já teria mandado pintar as paredes de amarelo ou azul bebê, mas eu estava satisfeita. Num canto perto da porta, estavam as nossas assinaturas e a data. No final, eu puxei um pincel com tinta branca, para a surpresa de todos, e pintei uma lua crescente do tamanho de um palmo. Ficamos em silêncio, contemplando a lua de tinta. Me senti forte sabendo que os meus amigos não estavam com medo de mim.
Todos os dias eu olhava para o calendário, com medo de a lua cheia chegar mais cedo. Também pensava muito em Kevin, que eu nunca mais vira. Mamãe não gostava muito dele e não sabia da minha paixão secreta, mas passou a admirá-lo depois que ele me salvou. Ela disse que eu não precisava me preocupar, que ele iria passar ali mais cedo ou mais tarde.
Sem dúvida que eu queria que fosse mais cedo, mas ele acabou aparecendo mais tarde. Era a véspera da lua cheia, e eu estava aproveitando o ar noturno. Na manhã seguinte eu iria para o hospital, beberia a poção e passaria pela transformação mais dolorosa da minha vida. Eu estava morrendo de medo.
Sentada na varanda, eu enrolava um cacho do meu cabelo no dedo, preocupada. Mal reparei quando o garoto de quinze anos entrou no meu pátio e sentou do meu lado.
- Como você está? – Ele perguntou, sem me olhar nos olhos.
- Apavorada. – Eu falei, sincera. Olhava para as poucas constelações que eu conseguia lembrar o nome.
Ficamos ali, sentados, sem olhar um para o outro por o que me pareceu uma eternidade. Eu queria que o tempo parasse... Kevin era meu vizinho e amigo, e mesmo não sendo íntimo, ele estava ali me consolando da forma dele. Me senti mais triste do que eu consigo lembrar. Finalmente eu não encontrei mais nenhuma constelação que eu lembrasse o nome.
- Kevin, eu... – Eu comecei a falar, tirando os olhos do céu (evitando olhar para a lua) e olhando para ele. – Eu não tenho como agradecer.
- Queria ter podido chegar cinco minutos mais cedo.
E não disse mais nada e começou a vasculhar na mochila. Finalmente encontrou o que procurava: uma caixinha de madeira.
- Eu imagino que isso vai ser útil para você. – Ele me entregou.
Abri o pequeno embrulho e devolvi a caixa, que ele guardou de volta na mochila. Embrulhado em papel seda branco estava um pequeno relógio com a pulseira negra e o mostrador prateado.
- É um mostrador lunar. – Ele disse. – Vê o fundo do mostrador? Ele mostra como está a lua, em que fase. Pensei que poderia ser útil.
Eu sorri e me joguei num abraço espontâneo. Kevin e eu não éramos bons amigos, mal havíamos cruzado a linha dos “conhecidos”, e aquele era o primeiro presente que eu recebia dele. Senti o suave cheiro dele antes de me constranger e desistir do abraço.
- Sim. – Eu disse, sem jeito. – Vai ser muito útil sim, muito obrigada.
Coloquei o relógio no meu pulso desajeitada, pois ainda estava com o gesso no braço direito. Imaginei o quão romântico seria se o Kevin se oferecesse para colocar o relógio, mas ele estava parado, só me olhando.
- Onde você conseguiu isso? – Eu perguntei quando finalmente consegui fechar a pulseira de couro.
- Eu tive que ir para Londres outro dia. Imaginei que fosse ser útil. – Ele falou, sem emoção.
- Obrigada. – Eu disse mais uma vez.
Kevin voltou o seu olhar para a lua de novo. Vi ele banhado pela luz prata, que refletia seus olhos cinzentos e cabelos castanho-escuros. Eu me apaixonara quando vi aqueles olhos cinzentos... Eles diziam tanto de Kevin! Como ele era misterioso e inteligente...
Fiquei divagando pelo que pareceu ser apenas um segundo. Mas, aparentemente, foi muito mais tempo, porque Kevin se levantou de um pulo e disse que precisava ir.
- Eu só vim para te entregar o mostrador. – Ele disse, e eu senti uma pontada no peito. – E ver se estava tudo bem. Boa sorte amanhã.
“Boa sorte amanhã”, eu repeti para mim mesma enquanto ele dobrava a esquina para ir para casa. E eu fui para o meu quarto flutuando em nuvens.
Naquela noite, eu não consegui dormir. Me arrastei até a cama da minha mãe e fiquei acordada, com ela me fazendo cafuné, até umas três horas da manhã. O sono só veio por cansaço, porque eu estava apavorada demais para realmente conseguir dormir. Qualquer um que queira me culpar, vá em frente, mas lembre que na outra noite seria a minha primeira transformação e, além de dolorosa, ela seria violenta.
Acordei com a campainha. Reparei que minha mãe não estava mais deitada, e a campainha começou a tocar incessantemente. Com um gemido de mau humor, eu joguei as cobertas para o lado e fui até a porta da frente.
Nunca entendi as pessoas que acordam de madrugada e passam o dia inteiro de bom humor. Quando abri a porta, lá estavam Agatha e Zoe, sorrindo como duas bobas. Eu sabia o que elas estavam planejando e, sem dúvida, eu não deixaria elas seguirem com aquela idéia idiota.
- Vocês não vão. – Eu disse, em lugar de bom-dia, e fechei a porta. Agatha foi mais rápida e segurou a madeira antes que batesse.
- Mas nem a pau! – Ela disse. Agatha não era muito de xingar, isso geralmente era comigo. Ela só xingava em ocasiões extremas e os olhos castanho-avermelhados de minha amiga faiscavam através dos óculos. Presumi que essa era uma ocasião extrema. – Como você acha que a gente está se sentindo? Como você acha que eu estou me sentido? A culpa foi...
- Aggy, não. – Zoe tentou intervir, mas Agatha não lhe deu ouvidos.
- Você acha que foi fácil para nós... – Agatha já estava ficando rosada, eu sabia que ela estava segurando as lágrimas. – Ver aquela coisa e não poder fazer nada para ajudar?
Eu queria dizer para a Agatha que tudo bem, que eu não achava culpa dela, que havia sido um miserável acidente. Queria abraçar minhas amigas e dizer o quanto eu as amava e que preferia ter o coração arrancado do peito que fazer alguma coisa que as deixasse triste. Acima de tudo, eu queria dizer que o verdadeiro motivo de eu não aceitar a companhia delas era porque eu não queria que elas me vissem, que ficassem com a imagem de que eu me transformava num monstro. Queria dizer isso e muito mais, mas as palavras que saíram de minha boca foram ásperas.
- Você acha que está sendo fácil para mim? – Eu disse, com a voz fria como o Ártico.
Zoe me lançou um olhar que misturava raiva e mágoa. Agatha não conseguiu mais segurar as lágrimas e Zoe a abraçou. Enquanto elas estavam indo embora, eu me dei conta da enorme cretina que eu esta sendo. Soquei uma almofada e comecei a chorar.
Eu e mamãe chegamos no Saint Mungus pouco antes do meio dia. Eu estava atordoada com todo aquele barulho e movimento do horário de almoço. Não sei se minha audição estava ficando aguçada, mas qualquer ruído parecia perfurar os meus tímpanos. Ela me guiou direto até onde os medi-bruxos disseram que nós deveríamos ir. Eu poderia jurar que vi, com o rabo do olho, a família Weasley conversando com uma atendente.
Para o meu maior tormento, o quarto era branco. Também era enorme, com uma grande janela voltada para o oeste. Lembrei de algumas aulas de astrologia, que a lua nascia no oeste. Senti um frio na barriga.
Os móveis eram poucos. Uma cama de metal, hospitalar, um diminuto sofá e uma escrivaninha com uma cadeira, onde um bruxo de cabelos dourados preparava uma poção. Quando me viu, ele deu um sorriso e deixou a poção de lado. Ele explicou que não poderiam monitorar a minha transformação se fosse a campo aberto. O quarto estava protegido com barreiras mágicas e blindagem especial para resistir a qualquer tipo de ataque. Dei um suspiro e cocei meu braço engessado.
- Já está na hora de tirar isso. – Ele disse. – Venha aqui.
Sentei com ele no diminuto sofá. Ele era muito bonito e eu me sentia constrangida diante dele. Com delicadeza, ele puxou o meu braço engessado e, com a varinha, cortou o gesso com cuidado para não estragar nenhum dos desenhos da Agatha. Meu coração batia forte e eu, nervosa, tentava ler o nome bordado no jaleco branco do médico. Com um crack sonoro, meu gesso quebrou e o doutor Zimmer perguntou se eu queria guardá-lo. Eu disse que sim, mesmo sabendo que mamãe se livraria dele assim que possível.
Uma enfermeira bateu na porta, trazendo três almoços. O doutor Zimmer abanou a varinha e conjurou outras duas cadeiras e uma mesa, e almoçamos todos juntos aquela comida branca e sem gosto de hospital.
- Elizabeth – Ele disse, assim que terminou o pudim de baunilha. – Você sempre foi um caso incomum. Filhos de lobisomens são raros, ainda mais as meninas, que muito raramente sobrevivem. Existem pouquíssimos casos de descentes de lobisomens que foram atacados, eles tendem a não gostar de sair na lua cheia...
É, pode apostar que eu sabia disso.
- Não tem outra maneira de eu dizer isso. – Ele continuou, com um suspiro. – Uma transformação nunca é fácil e, no seu caso, será mais difícil ainda. Por isso você está aqui. A poção do Mata-Cão pode ajudar ou pode não fazer efeito nenhum.
- Quanto tempo vai...? – Eu consegui perguntar com um fiapo de voz. Mamãe me abraçou, prestando atenção em todas as palavras do belo médico.
- Muitas pessoas acreditam que é uma semana. – Ele falou, com um ar triste. – Mas a lua cheia dura apenas dois dias, em alguns meses três. É esse o tempo que você vai ficar transformada.
Era aquilo. Três dias por mês, mais ou menos, eu seria um monstro terrível. Imaginei que, se Zoe estivesse ali ela teria rapidamente calculado que 10% da minha vida, de agora em diante, seria transformada.
- O senhor... – Eu comecei, louca para mudar de assunto. – O senhor pode me ensinar a preparar a poção?
Mamãe pediu licença e saiu do quarto, pra brigar com alguém do museu que colocara um caldeirão de zinco na ala de magia africana. Uma insanidade. Ficamos eu e o doutor Zimmer, ele me ensinando como fazer a poção Mata-Cão. Peguei uma faca para começar, mas tive que jogá-la longe. Onde a parte de metal encostou-se à minha pele, estava queimado.
- É prata. – Falou o médico. – Você vai precisar que alguém te ajude.
Ele pegou a faca caída no chão e cortou algumas lascas de acônito.
O preparo da poção era demorado e as fórmulas eram altamente complicadas. O médico me explicou que agora era relativamente mais fácil, mas que ainda era necessário um bruxo talentoso para conseguir prepará-la. Não entendi se ele estava se vangloriando ou me elogiando. Quando ficou pronta ele me entregou um cálice de bronze e despejou o líquido esverdeado e viçoso.
- Bem a tempo. – Ele disse, olhando pela janela. O sol começava a se pôr. Olhei para o lado e vi minha mãe adormecida no sofá (eu nem reparei quando ela voltou). O doutor Zimmer deu uma última olhada na poção e me mandou beber.
Com as mãos trêmulas, eu levei o cálice aos lábios e bebi. O sabor era terrível, e eu jamais conseguiria descrevê-lo, mas não era nada comparado com a sensação. Parecia que o líquido não estava indo para o meu estômago, mas sim para o meu coração, e se alojou ali, gélido. Segurando ânsias de vômito, eu empurrei todo o líquido goela abaixo, me sentindo mais triste e fria a cada gole. Mamãe acordou com minhas tosses e foi me abraçar. Eu tremia de frio e de dor enquanto ela tentava me consolar, e o médico estava fazendo anotações em uma prancheta que ele acabara de conjurar.
- Você não pode fazer nada? – Ela perguntou desesperada, segurando minha cabeça que tremia.
- Nada mais. – Ele disse, fazendo a prancheta desaparecer no ar. Eu senti o mal estar começando a ir embora. – Agora precisamos ir.
- O quê? – Mamãe indagou. – De jeito ou maneira! Eu vou ficar aqui com a minha filha!
- Não! – Dissemos eu e o médico ao mesmo tempo. – Mamãe... Por favor...
Eu já tinha parado de tremer, mas ainda sentia muito frio. Mamãe voltou a chorar e eu percebi que o meu próprio rosto já estava molhado. Depois de muito discutir e insistir, eu e o doutor Zimmer convencemos minha mãe que eu precisava ficar sozinha. Ela me deu um beijo na testa e foi embora. Fiquei sozinha no que seria, para sempre, a pior noite da minha vida.
Fiquei encolhida na cama, tremendo de frio e enrolada em lençóis esperando pelo nascer da lua. Eu sabia que tinha uma palavra diferente para o nascer da lua, mas não conseguia lembrar. Não sabia o que esperar e voltei a tremer descontroladamente.
O que aconteceu em seguida foi... Foi terrível e continuará se repetindo em todas as luas cheias da minha vida. Senti como se a poção estivesse dentro de uma bolha, no peito, e tivesse estourado, tomando conta de cada pedacinho de mim. Então eu senti.
Meu braço direito, o que tinha sido atacado, pareceu se partir. Eu tentei gritar, mas no lugar da minha voz saiu um urro selvagem. As falanges dos meus dedos pareciam estar se dobrando em ângulos impossíveis, me causando uma tremenda dor e angústia. Cada osso e centímetro de pele parecia estar sendo dilacerado e em chamas. Lágrimas caíam dos meus olhos para ficarem presas no pêlo espesso que estava crescendo no meu rosto. Garras invisíveis dilaceravam o meu peito, como uma fera escapando da gaiola e me dominando. Eu sentia ânsia de vômito e acho que vomitei uma ou duas vezes.
Não sabia se já havia acabado. Não conseguia identificar sons e enxergava tudo como se e estivesse embaixo d’água. Bati na janela com minhas recém criadas garras, esperando quebrá-lo e poder fugir dali. Gritei e chorei a noite inteira, batendo insistentemente na janela. Talvez o pior de tudo era o instinto, que tomou conta de mim. A poção parecia ter funcionado, eu não queria atacar ninguém. Mas todos os meus atos eram impensados, feitos imprudentes e inconseqüentes. Ainda batendo no vidro inquebrável, tantas horas depois, eu gritava até a minha garganta doer.
A angústia daquela noite foi horrenda. Eu não tinha controle algum de quem eu era. A lua se pôs, e a transformação de volta em humana foi tão dolorosa quanto ou mais. Ninguém me visitou nos três dias de lua cheia daquele mês. Minha consciência se tornou uma colcha de retalhos, eu não conseguia diferenciar o que eu fazia do que sonhava. As poucas horas que eu estava humana eram passadas desmaiadas em meio a destruição. À noite, eu me tornava aquela fera bestial, em um redemoinho de dor e enjôo, só para tudo se repetir na manhã seguinte.
De manhã, depois da minha última primeira-transformação, a porta do quarto se abriu com um ruído metálico. Mamãe não estava ali, só o doutor Zimmer e alguns enfermeiros. Eu não comi e nem bebi nada e só pude contemplar de longe enquanto eles consertavam os móveis do quarto e limpavam tudo. Teria me sentido constrangida em deixar o doutor Zimmer limpar o meu vômito, mas eu não conseguia me mexer.
Depois de colocarem tudo nos eixos, dois dos enfermeiros (um homem e uma mulher) me juntaram do chão e me colocaram na cama. Eu sentia o toque quente das mãos deles, mas o máximo que eu conseguia mover eram as minhas pálpebras pesadas. Eu imaginei que as minhas roupas estivessem completamente destruídas, e os enfermeiros apenas me cobriram e injetaram um soro na minha veia.
- Poderia ter sido muito pior. – O doutor Zimmer comentou com alguém, passando a mão pelos cabelos dourados. Eu não conseguia imaginar como poderia ter sido pior.
Eu só cheguei em casa algumas horas depois. Mamãe gritou tanto com a enfermeira que me trouxe já que, aparentemente, eles a proibiram de voltar ao hospital enquanto eu estivesse lá. Eu passei reto pela mamãe e fui para o meu quarto colorido. Deitada na minha cama, eu comecei a soluçar.
Mamãe quis me consolar, mas eu não queria consolo algum. Depois de brigarmos por alguns minutos (muitos berros meus e murmúrios preocupados dela), consegui expulsá-la do meu quarto e ficar sozinha com a minha miséria.
Acho que ninguém jamais conseguirá descrever como se fica depois da primeira transformação em lobisomem. Anos depois, enquanto eu conversava com a Agatha, ela me disse que deveria ser como perder a virgindade de uma forma violenta. Você se sente suja e nojenta, exposta e envergonhada, imaginando como você foi capaz de algo tão grotesco. Quer se esconder do mundo, desejando que todos esqueçam quem você é, o que você fez, o que você é. No caso da virgindade, você pode ficar escondia o tempo que quiser e ter cuidado para não acontecer de novo. No caso da transformação, você sabe que vai acontecer de novo e de novo e que você nunca poderá se esconder.
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NOTA DA MARI BO
Esse foi o capítulo que eu escrevi mais rápido até hoje! OMG! :O
Eu não sei se eu consegui passar bem a agonia da transformação, espero que sim.
Sem nada a mais a declarar. Comentem. :)
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