Os meus enormes caninos
Meu pai era um lobisomem. Eu nunca o conheci, nunca soube como ele era ou o nome dele. Minha mãe só me contou isso quando eu tinha onze anos, quando eu fui aceita em Hogwarts. Ela sempre torceu que eu não tivesse herdado seus poderes mágicos, sendo uma mera garota normal, nas palavras dela. Nas minhas, um Aborto.
Eu teria conseguido sobreviver sendo apenas a filha de um lobisomem, simplesmente tendo que me depilar com o dobro de freqüência de uma adolescente normal e comendo carne quase crua durante a lua cheia, quando as minhas unhas ficavam mais grossas e escuras. Mas a minha sorte, a sorte de nascer mulher quando filha de um lobisomem, minha sorte nunca ia deixar por isso.
Nas férias de verão do meu terceiro ano minha mãe precisou ir viajar para a Paris por alguns dias. Dias de lua cheia. Ela me fez prometer de pé junto que eu não quebraria nada em casa durante os meus acessos de raiva lupinos e, em troca, eu poderia convidar alguns amigos para dormir lá em casa. No fundo, ela queria que eles tomassem conta de mim.
A vila em que nós morávamos era de bruxos, então meus amigos e vizinhos eram bruxos. Três deles eram os meus melhores amigos, Agatha, Zoe e Paul. Um deles era o garoto por quem eu sempre havia sido apaixonada e tinha uma simples e dolorosa amizade, Kevin.
Agatha era a minha melhor amiga, me conhecendo desde sempre e me dava sábios conselhos de como conquistá-lo. Bem, conselhos que eu nunca seguia, mas eram sábios. Mesmo assim, ela não sabia da minha ascendência lupina, e interpretava os meus ataques de lua cheia como TPM. Na hora que ela ficou sabendo que minha mãe ia viajar, se ofereceu para organizar uma festa do pijama.
Zoe e Agatha chegaram a minha casa algumas horas antes da minha mãe sair, com tudo que é necessário para adolescentes de 13 anos poderem aproveitar uma noite do pijama. Kits de maquiagem, filmes com os atores gatinhos da vez, a prancheta de caricaturas da Agatha e CDs com músicas trouxas e bruxas, contanto que fossem animadas, melosas e falassem do primeiro amor.
- Oi, garotas. – Minha mãe disse quando abriu a porta para elas. – A Lizzie está lá no quarto. Vocês precisam de ajuda com isso?
- Tá tudo ok, tia Daia. – Zoe disse, com as duas mochilas lotadas de coisas. – A gente pode ir subindo?
- Podem sim, vão lá. – Minha mãe falou, bebericando um café. – Eu só vou terminar de arrumar tudo aqui e já vou deixar vocês.
O tema principal do meu quarto era o branco. Paredes brancas, lençóis brancos e móveis de madeira clara, levemente esbranquiçada. Alguns poucos quadros mostravam fotos minhas e da minha mãe, nas nossas viagens pela Europa. Como éramos apenas nós duas, não precisávamos do aval de ninguém para ficarmos dois meses viajando, se quiséssemos. O que havia de colorido lá eram as cortinas e a colcha da minha cama, vermelho-vinho.
Jogando tudo no pequeno sofazinho bege, minhas melhores amigas entraram.
- Você precisa mesmo redecorar isso aqui. – Disse Agatha, olhando para as paredes brancas. – Eu pinto para você, é só você...
- Agatha, eu só fico aqui umas quatro semanas por ano. – Eu disse, finalmente. – Gosto assim... Parece limpo.
- Ninguém nunca vai entender esse seu jeito Lizzie de ser. – Zoe disse, enquanto folheava as minhas revistas e mascava um chiclete de tuti-fruti.
Meu mau humor, meu humor de lua cheia já estava começando a pegar. Agatha percebeu e só rolou os olhos, como se dissesse “Qual é, se controla!” para mim. Era fácil para ela dizer, ela não precisava depilar o buço duas vezes por semana.
- Nem começa. – Eu soltei.
- Toque, toque. – Minha mãe falou, batendo no vão da minha porta, fingindo que estava fechada. – Como vocês estão?
Minha mãe era curadora do Museu Talionnian, um dos raros museus de artefatos bruxos da Inglaterra, e freqüentemente ela precisava sair em viagens para buscar e avaliar itens históricos. Geralmente as viagens dela eram durante o meu ano letivo e, quando não eram, eu ia junto. Mas dessa vez ela iria para uma convenção onde tudo seria pago pelo museu, e o dinheiro não dava para eu ir junto dessa vez.
- Tudo tranqüilo, mãe. – Eu disse, mau-humorada. Agatha e mamãe viraram os olhos.
- Liz, se controla. – Minha mãe disse. – Eu vou indo, vim me despedir.
- Se cuida, viu? – Eu disse, dando um abraço apertado e um beijo nela. – Me liga, se conseguir sinal.
- Vou tentar. – Mamãe disse, me abraçando também. Depois de alguns minutos assim, ela se virou para a Agatha e a Zoe. – Não deixem a minha menina se meter em encrencas.
- Pode deixar, tia Daia. – Elas disseram juntas, com dois sorrisos cheios de dentes.
Algumas horas mais tarde, terminamos de assistir As Brumas de Avalon e já tínhamos nos maquiado e tirado fotos. Eu imaginava que a noite ia ser bem menos entediante do que o que realmente estava sendo, e Zoe e Agatha compartilhavam do meu pensamento. Duas garrafas de cerveja amanteigada (sem álcool, feita em casa) depois, Zoe sugeriu uma brincadeira: verdade ou desafio.
- Que coisa mais sem graça. – Eu disse, carrancuda. – Quer dizer, nós estamos só em três... E não é como se vocês não soubessem todos os seus segredos.
- Cala a boca, Liz. – Disse Agatha. – Você não é exatamente um livro aberto... e vai ser divertido!
- Isso aí. Ou você está com medinho? – Zoe me provocou. Eu senti o gene de lobisomem do meu pai rosnar a menção de minha suposta covardia. Zoe me conhecia bem demais, sabia que aquela simples frase me faria mudar de idéia.
Na mesinha da sala, entre potes de pipoca e caixas de pizza, uma garrafa vazia de cerveja amanteigada rodava fazendo aquele barulho típico de vidro na madeira. Com os meus sentidos aguçados pela lua, eu consegui contar dezenove voltas antes da garrafa parar, apontando para mim e para a Agatha.
- Ok... Verdade ou de... – Eu comecei.
- Verdade, é claro. – Agatha respondeu, sorrindo.
- Anh... – Eu pensei por uns instantes. – É verdade que você foi pega nos amassos com o Ted Lupin na festa de Halloween?
- Que pergunta sem graça. – Zoe resmungou. – Você sabe que é verdade, eu que peguei eles lá.
Agatha nem piscou, não ficou vermelha nem nada. Deu de ombros e disse que sim. A próxima rodada foi a Agatha para a Zoe.
- Você ficaria com o Kevin se ele pedisse, mesmo sabendo que a Liz é louca por ele?
Meus ouvidos prestavam muita atenção.
- Cara... Eu... – Ela disse. Eu joguei uma almofada nela.
- Talarica! – Eu gritei, usando a gíria idosa para fura-olhos.
- Ninguém fala mais assim, Lizzie. – Ela me jogou a almofada de volta. – E eu estava brincando, você sabe que eu nunca faria isso.
Ela, então, se jogou em cima de mim e deu alguns cascudos.
Se não me falha a memória, foram doze rodadas. Ninguém pediu desafio. Até a Agatha fazer a única pergunta que ela sabia que eu jamais responderia.
- O que você sabe do seu pai? – Ela perguntou, com os olhos vermelhos de sono.
- Desafio.
- Ah, nem vem, Liz! Tem que responder! – Ela disse, alto. – Nem você nem a sua mãe falam dele, e toda vez que alguém puxa o assunto, vocês desconversam. Eu sei que você sabe alguma coisa dele...
- Deixa ela, Aggy. Ela não pode falar sobre o “poderoso papai” dela... – Zoe caçoou. Eu fechei a cara. – Diz o desafio de uma vez.
- Ok... Deixa eu pensar. – Agatha estava se fazendo, eu sabia que ela já tinha o desafio formulado desde quando Zoe sugeriu o jogo. Senti um frio correr pela minha espinha. Ela falou as palavras lentamente, deliciando cada segundo daquele desafio que eu não cumpriria. – Você vai ir até a casa do Kevin Yancey, assim, de pijama, e dizer que você o ama desde a primeira vez que o viu.
Eu fiquei vermelha. Nunca, nem em um milhão de anos eu iria fazer aquilo. O meu amor pelo Kevin ficaria eternamente enterrado embaixo de uma camada de três anos de uma amizade simples, que eu nunca ousaria perturbar... Não respondi. Na verdade, eu acho que eu até parei de respirar por alguns minutos. Talvez tenha sido por isso que Zoe interveio em meu favor.
- Ela nunca vai fazer isso. Escolhe outro desafio.
Agatha deixou-se cair no sofá, visivelmente desapontada. Ela mordeu o lábio antes de conseguir pensar em alguma coisa que achasse digna de um desafio.
- Certo, então. – Ela prosseguiu, depois de alguns poucos minutos. – Você vai ir na casa da minha avó colher duas folhas de sanguinária.
- É lua cheia. – Eu lembrei.
- E daí? – Zoe deu de ombros. Ela aceitara o desafio. – Tá com medo de que um lobisomem apareça? É isso ou a casa do Yancey.
A lua criava sombras bruxelantes no quintal da avó da Agatha. Ela morava no final da rua, fazendo divisa com o pequeno bosque da vizinhança mágica. Agatha tinha escolhido a sanguinária, uma planta de folhas gordas e vermelhas, porque ficava no final do quintal, muito perto do bosque. Eu conseguia sentir a lua cheia mexendo com as minhas entranhas, me deixando nervosa. E haviam histórias terríveis sobre as criaturas que viviam naqueles bosques.
- Qual é? Gente, isso é ridículo! – Eu disse, me acovardando. Zoe percebeu e me lançou um olhar desafiador. – Ok, ok...
Eu podia sentir o meu coração batendo acelerado. Quando eu saí da proteção da varanda, um uivo rasgou a noite, vindo de algum lugar do bosque. Olhei desesperada para as minhas companheiras de desafio, rezando para que elas desistissem dessa bobagem. Elas me olharam de volta e Agatha, a mais talentosa com feitiços de proteção, me mostrou que estava com a varinha em punho. Engoli em seco e comecei a longa trajetória até o canteiro de sanguinárias.
Com o meu punhal de ferro (tudo que fosse de prata me dava alergia, graças a herança licântropa) eu cortei o talo de uma folha. Agatha tinha dito duas. Estava a ponto de cortar o talo da segunda folha quando ouvi alguma coisa de movendo atrás dos arbustos do final do terreno. Consegui ver um par de olhos amarelos antes de sentir um grande impulso me jogando para trás. Agatha e Zoe poderiam estar gritando, eu não ouvia. Toda a minha concentração estava no meu braço direito, que estava sendo dilacerado pela criatura que estava me atacando.
Zoe disse que eu não gritei. Eu, definitivamente, não lembro se gritei ou não. Agatha tentava lançar toda a sorte de feitiços na criatura, me contaram. A única coisa que eu sei que eu lembro, foi a voz masculina que gritou o meu nome.
Uma figura prateada, que dias depois eu descobrir ser um falcão, mergulhou na criatura, desviando a atenção de mim. Mostrando os dentes, a criatura correu de volta para dentro do bosque. Não era mais apenas o meu braço que estava machucado. Uma grande parte das minhas costas e um pouco do meu pescoço. Eu estava ensopada no meu próprio sangue. A dor se espalhava por todo o meu corpo. Agatha chorava forte, segurando o rosto com as mãos, enquanto Zoe a abraçava, também chorando. Minha visão estava começando a ficar turva.
- Elizabeth! – Eu ouvi Kevin gritar novamente, mas dessa vez a voz dele parecia estar longe, mesmo estando ajoelhado do meu lado. Os olhos cinzentos dele iam perdendo o brilho e o foco a casa segundo na minha visão. – Você vai ficar bem, Liz. Vai ficar bem.
Eu acordei três dias depois, no hospital Saint Mungus, com a minha mãe adormecida no desconfortável sofá cama do quarto. Algumas pessoas dizem que demoram para conseguir se lembrar de um acidente. Eu não demorei. No instante que eu abri os meus olhos eu lembrei de tudo que tinha acontecido. A quantidade de curativos que estavam enrolados no meu corpo, principalmente no meu braço e no meu pescoço. Eu tinha dificuldade para respirar, e tentei falar com a minha mãe, mas minha voz saiu como um murmúrio.
Minha mãe acordou, mesmo tendo sido só um murmúrio. Ela, que geralmente era tão bonita e bem arrumada, estava com a maquiagem borrada e o cabelo castanho como um ninho de ratos. Ela levantou e veio passar a mão do meu cabelo, que todos diziam ser igual ao dela. Pude ver que os olhos dela estavam vermelhos de tanto chorar e de dormir mal.
- Oi... – Ela disse, sorrindo e chorando ao mesmo tempo. – Os curandeiros te deram uma poção... eu não sei bem para quê, você que entende de poções... Mas você vai ficar sem conseguir falar por mais algumas horas.
Eu tentei me mexer, mas tudo doía. Percebi, então, que meu braço estava engessado. Olhei para ele pasma. Se eles não conseguiam consertar meu braço com magia, deveria ter sido muito mais sério do que eu estava pensando. Olhei para a minha mãe... Ela estava tão preocupada. E tudo por causa de uma brincadeira tão boba! Senti uma lágrima quente correr pelo meu rosto enquanto eu gesticulava um “desculpa” desajeitado para minha mãe.
- Não, Liz, não. As meninas me contaram o que aconteceu. – Ela disse, derramando mais algumas lágrimas. – Eu... eu devia ter ficado. Ora, viajar justo na lua cheia! Como eu pude fazer isso com você? Se não fosse por aquele garoto Yancey...
Quando minha mãe falou “justo na lua cheia” a realidade me golpeou. Até aquele momento eu não tinha a mínima idéia de que fera havia me atacado. Se o “lua cheia” não bastasse para me fazer concluir, o choro descontrolado da mamãe faria. Olhei mais uma vez para o meu braço, e então olhei para ela. Lobisomem?, eu gesticulei. Chorando ainda mais, minha mãe fez que sim.
Mamãe me contou direito que tinha acontecido. Quando o Lobisomem fugiu, assustado pelo patrono do Kevin, eu fiquei jogada no chão por apenas alguns minutos. Kevin chamou a avó da Agatha e eles conseguiram me levar para o hospital rapidamente. O mais difícil foi entrar em contanto com a mamãe. Ela só conseguiu vir no outro dia. Até lá, ela me contou, Agatha não saiu do meu lado.
Os curandeiros fizeram tudo o que podiam, mas as feridas feitas por um lobisomem eram imunes a qualquer magia de cura, então eu iria sarar e cicatrizar ao ritmo trouxa. Eles explicaram que por eu ser filha de um lobisomem, eu era um alvo fácil para eles. Eu não poderia receber visitas pelo resto da semana.
Implorei para a mamãe ir dormir em casa. Depois de discutirmos, ela aceitou e eu fiquei sozinha com o meu gesso branco no meu quarto de hospital branco. Prometi a mim mesma que a primeira coisa que eu iria fazer quando chegasse em casa seria pintar as paredes do meu quarto.
- Desculpa, Liz, desculpa mesmo. – Agatha dizia pela enésima vez.
Era a primeira vez que eu estava recebendo visitas, e eu já me sentia bem. Ainda estava com o gesso, ficaria com ele por mais duas semanas, mas podia me mexer agora. Agatha estava inchada de tanto chorar, mas, na minha presença, ela segurava as lágrimas. Zoe também estava ali, pálida.
- Você devia ter ido na casa do Yancey. – Foi a única coisa que ela conseguiu dizer, com uma aparência melancólica que não combinava com ela. O longo cabelo loiro de minha amiga durona estava preso num rabo de cavalo sem graça, nada típico.
Isso só serviu para me lembrar que o Kevin não havia vindo me visitar, o que me deixou com o coração pesado. Ele havia salvo a minha vida e eu não pudera agradecer. Queria poder olhar nos olhos cinzentos e me perder lá, enquanto agradecia e dizia que ele era um ótimo amigo, sentindo o sabor adstringente da palavra amigo. Ele sorriria amarelo e diria que era o dever dele me proteger, que amigos (novamente) eram para aquilo. Senti que Agatha sabia no que eu eu estava pensando quando ela me deu um sorriso triste.
- Desculpem. – Uma enfermeira, provavelmente uma aprendiz de medi-bruxa, entrou no quarto. – Elizabeth precisa descansar agora, vou ter que pedir que se retirem.
Agatha me deu um ultimo abraço carinhoso e eu pude sentir o cheiro do xampu de chocolate dela. Zoe também me deu um abraço, mas ela cheirava a alguma coisa que me lembrava frutas vermelhas. Eu me despedi das minhas melhores amigas, mentindo que estava tudo bem. Quando elas foram, a enfermeira fechou as cortinas brancas do quarto e se voltou para mim.
- Está na hora de olhar esses caninos. – Ela disse.
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NOTA DA MARI BO
A Yana sempre me colocou como lobisomem e, em uma das histórias, era assim que eu era atacada. Resolvi usar personagens completamente novos, deixando os da JK para meras menções, se vocês não se importarem. A história acontece depois de As Relíquias da Morte, enquanto o Ted Lupin ainda está estudando.
Espero que gostem... E comentem. :)
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