Lua Cheia



Eu estaria bem se pudesse esquecer daquela dor e da imensa sensação de perda que me acometeu quando ele me abraçou uma ultima vez antes de entrar na lareira para longe de mim, para a guerra.


O lugar realmente não era o mais acolhedor que eu já tinha visto, mas tinha muito dele por ali. As paredes repletas de livros, o sofá puído num canto, o tapete verde musgo, as janelas obscurecidas por cortinas negras...


Eu me sentia protegida. Me sentia infinitamente segura. Mas algo não estava bem. O bebê remexeu-se devagar, como sempre fazia quando eu cantava para ele ou quando a voz intensa do seu pai soava macia e apaixonada ao conversar com ele. Pelo menos ele não estava sentindo toda a minha angustia.


Talvez eu nunca tenha sofrido tanto como sofri aquela noite. A incerteza me apedrejava direto no peito, eu apenas podia vê-lo sendo morto de diferentes formas, podia sentir seu amor, aquele que em deixava segura e plena, fenecendo quando o machucassem, o torturassem... quando o tirassem de mim.


A simples idéia era algo inconcebível. Eu sabia que não suportaria ter a certeza. E sua ausência prolongada não me deixava pensar em outra coisa. Eu estava isolada do mundo mágico e sabia que muitas pessoas me consideravam morta. Seria absolutamente inusitado se repentinamente eu aparecesse em Hogwarts grávida de quatro meses procurando Severus Snape. Se a guerra ainda estivesse em curso eu estaria levando a mim e ao meu bebe para a linha de fogo. Era o entardecer do segundo dia e eu, tomada por um desespero e uma certeza estranha que me fazia crer que eu deveria estar em qualquer lugar menos naquela casa, aparatei para Hogsmeade.


Puxei a capa de viagem sobre a cabeça e tentei me resguardar o máximo possível. Caminhei o mais rápido que a barriga permitiu, sempre rumando para Hogwarts, encontrando os restos de uma batalha gigantesca ao longo do trajeto. Estava acabado, e ao que parecia o lado das Trevas tinha sido subjugado. Aquilo me deu um novo animo, apesar de apertar ainda mais o meu peito. Se estava acabado, onde andaria ele?


Com alguma surpresa, descobri que podia entrar na escola sem dificuldades. Não havia barreiras anti-invasores, ou talvez eu não seja considerada uma invasora. Por toda parte, pessoas trabalhavam reconstruindo a escola, todos muito ocupados para se dar conta da minha presença. Foi com um imenso alivio que pude distinguir Harry e Hermione próximos ao Lago.


Enchendo-me de coragem, fui até eles. Depois das exclamações de surpresa, dos abraços calorosos e de infinitos pedidos de desculpas pela situação com os Malfoy, finalmente permitiram que eu falasse.


 


-Eu preciso saber... Onde está o professor Snape?


-O quê? –Hermione perguntou assustada- Por que você quer falar com Snape?


-Ele está bem? –atropelei aflita


-Não bem. Vivo. –disse Harry com algum respeito, porém com um leve descaso.


 


Eu não sabia o que sentir, e pelo jeito não senti nada. Se Harry não tivesse reflexos rápidos eu teria caído.


 


-Onde ele está?


-Na enfermaria... Luna, espere!


 


Esperar? Nem mais um segundo. Eu já atravessava os terrenos, agora quase correndo, deixando que o capuz caísse  surpreendendo a todos que me julgavam morta. Não parei ou hesitei em nenhum momento. Invadi a Enfermaria e quase fui barrada por Horace Slugorn, mas consegui me desvencilhar. Procurei nos leitos lotados de alunos, membros da AD e da Ordem... Alguns cercados por aquelas cortinas, mas não ele não estava ali. Pude ver a professora Minerva saindo com um ar bastante abatido de dentro de uma sala reservada, utilizada apenas em ocasiões onde Madame Pomfrey precisaria intervir cirurgicamente. Só podia ser ali.


Então eu vi, após invadir a sala, o momento em que a Medibruxa puxou o lençol branco para cobrir seu rosto, impassível, rígido, morto. Cai das pernas, absolutamente transtornada. O grito que saiu da minha garganta foi cortante para os meus próprios ouvidos. A dor foi a maior que já me acometeu.


 


-Severus...


 


Então uma idéia me ocorreu, não que ela já não tivesse martelado minha mente desde o momento em que ele me deixou sozinha e partiu para a guerra. Era exatamente aquilo que eu deveria fazer, não havia espaço para duvidas ou contestações.


 Fiquei de pé, tremula e fraca, ignorando a todos, afastando as mãos que, mesmo confusas e surpresas, tentavam me confortar. Descobri seu rosto lembrando-me do encantamento, segurando a varinha de forma a ocultá-la das duas bruxas presentes, mas mantendo-a encostada no corpo dele. Curvei-me de modo a quase tocar seus lábios com os meus. Sussurrei as palavras utilizando toda a determinação que havia em mim e eu era pura determinação. Eu o queria vivo, respirando, quente contra meu corpo.


 


-Protecto Supremo Necro Hominus Enervate!


 


E absolutamente nada aconteceu. Continuei olhando para seu rosto impassível me perguntando onde eu havia errado, as minhas lágrimas perenes molhando seu peito.


 


-Luna, venha comigo. –Minerva McGonagall passou os braços em volta dos meus ombros- Venha, vamos conversar...


-Ele está morto...


-Sim, sim, meu bem, não há nada que possa mudar isso...


 


Relutante, cobri seu rosto com o lençol almejando ver o mais leve ondular que indicasse sua respiração, mas isso não aconteceu. Vencida, porém não conformada, me virei para sair.


 


-Luna...


 


Meu coração deu um salto, um solavanco violento no peito a medida que o som da sua voz invadiu meus ouvidos. Ele estava sentado, ainda bastante pálido, mas claramente respirando. Desvencilhei-me da professora, agora estupefata, e lancei-me aos braços dele, que se preparava para levantar.


 


-Você está bem? Você está machucado? Oh, meu Deus, Severus...


-Eu estou vivo, como se nada tivesse acontecido... –e me olhou desconfiado- Eu estava morto...


-Não, não estava. –eu disse- Talvez estivesse num profundo estado de coma... algo assim.


-Luna, o que você fez?


-Eu? Severus, do que está falando? –tentei mentir.


-Você... –e parecendo concordar que eu não poderia ter feito nada para trazê-lo de volta da morte, apenas me abraçou.


-E fiquei tão preocupada...


-Oh, Merlin! –berrou a enfermeira quando retornou trazida pela professora Minerva- Severus, você... Eu podia jurar que você... Que maldição o atingiu para deixá-lo tão... morto?


-Eu não me lembro, mas foi apenas uma. –ele disse- Acredito que tenha sido algo como o Coma de Sigmund Barts. Eu não sei. Mas, esperem... Potter?


-Está bem. –eu disse- Você...?


-Eu lhe dei minhas memórias, ele deve saber tudo. –e por incrível que pareça aquilo pareceu incomodá-lo- É por isso que vocês estão aqui. –acrescentou olhando para Minerva e Pomfrey.


-É melhor eu examinar você. –Pomfrey disse- Deite-se.


-Eu estou indo para o meu escritório. –e ficou de pé, segurando minha mão


-Vista isso... –eu lhe passei um roupão, já que ele estava apenas com um pijama da enfermaria.


-Não seja teimoso, Severus...


-Estou perfeitamente bem. Preciso avaliar os danos, não tenho tempo a perder aqui.


-Algumas pessoas do Ministério vão querer falar com você... –disse Minerva nervosa- Severus, está tudo tão confuso desde que Harry nos contou o que aconteceu...


-Por favor, madame, professora, eu acho que nós precisamos de um tempinho... Logo ele estará pronto para receber quem quer que seja, mas por hoje deixem que eu cuide dele.


-O que está havendo aqui? Quero dizer, entre vocês?


-Depois eu explico tudo, eu prometo. –garanti segurando a mão dela para transmitir segurança- Agora nos deixe ir.


 


A sensação de estar na nossa cama, abraçados e vivos, sabendo que todo o pesadelo havia acabado, foi a melhor coisa que eu havia experimentado em anos. Uma de suas mãos afagava carinhosamente nosso bebe enquanto a outra massageava minha nuca. Sem palavras, apenas desfrutando daquele momento e sentindo toda a paz que apenas a presença um do outro podia proporcionar.


Foi então que uma lufada de ar gélido me envolveu e eu soube que aquele era o aviso de que o preço pela vida dele seria cobrado. Não havia arrependimento, havia apenas a esperança de que antes da divida ser paga, eu pudesse pelo menos ver meu bebezinho falar as primeiras palavrinhas ou até mesmo dar os primeiros passos.


Afastei aquilo da minha mente. Eu havia feito a minha escolha, eu estaria preparada para suas conseqüências quando a hora chegasse e até lá, eu viveria os anos mais felizes que eu poderia ter.


Nosso bebê nasceu saudável e forte, pouco tempo depois de assinarmos os papéis do nosso casamento, acontecido do modo mais discreto possível. Um belo garoto de cabelos escuros e olhos negros. Sean Severus Snape, a nossa maior motivação, nosso pequeno pedaço de Deus.


Vivíamos em Hogsmeade, numa casa confortável e charmosa. Ele ainda como diretor de Hogwarts, eu sua esposa, dona de casa, mãe do seu filho. Éramos tudo o que queríamos de ser e tínhamos tudo o que era mais importante: um ao outro.


Mas a minha divida ainda precisava ser paga e com o passar do tempo, neste caso, ao longo de alguns anos, a magia me dava sinais de que era a hora de começar a me preparar para ir. Com cada vez mais freqüência eu sentia o vento gelado que ninguém mais podia sentir, como um abraço da morte. Algumas vezes, desmaios sem causas físicas aparentes, tontura, fraqueza...


Então chegou o dia em que completaria cinco anos em que, caso eu não tivesse agido, estaríamos lamentando a morte de Severus. Estávamos no jardim, naquele fim de tarde. Sean voava na sua vassourinha de brinquedo enquanto eu levava uma jarra de suco de abóbora para a mesa, onde Severus lia uma revista sobre poções.


 


-Veja papai! Eu estou voando igual ao Harry Potter!


 


Severus bufou revirando os olhos, ainda com um leve desdém em relação ao ex-aluno.


 


-Você está indo melhor, filho. –ele disse acenando para Sean, chamando-o para a mesa- Venha, a mamãe preparou um lanche.


 


Ele se aproximou voando devagar, estacionando a vassoura justamente sobre o pai, como sempre fazia. Severus o recebeu com um abraço, ajustado os cabelos dele com a mão.


 


-Acho que alguém precisa de um banho... –eu disse servindo-os de suco.


-Agora não, mamãe... –ele pediu- Me deixe brincar só mais um pouco...


-Tudo bem, mas antes de escurecer eu quero você limpinho.


-Meu bem, você está pálida. –Severus comentou tocando meu rosto.


-Mesmo? Não estou sentindo nada incomum.


-Deve ser a luz.


-Sim, deve ser. Vou buscar mais torradas.


 


E antes que eu pudesse atingir a porta, minhas pernas fraquejaram, minha cabeça parecia que iria explodir e um frio, talvez o mais cruel frio que eu já tenha sentido, me envolveu como uma capa de neve, como o verdadeiro abraço da morte. Severo veio correndo para o meu corpo estendido no meio do jardim, o prato de porcelana que eu segurava, espatifado no chão.


 


-Luna!


-Sev... Sean...


-Luna, o que está acontecendo?! O que está sentindo?


-Eu...


 


Eu sabia o que eu estava sentindo, mas eu não podia dizer-lhe que era a morte, não com meu garotinho aflito ajoelhado ao meu lado, assustado o suficiente para estar com lágrimas nos olhos. Severo tentou erguer-me do chão, mas o movimento me causou muita dor e com o meu gemido, ele parou.


 


-Luna...


-Severus, eu não posso respirar...


-O que está havendo?


-Sean, segure a mão da mamãe... –eu pedi entre minha respiração pesada- Severus... está tudo bem...


-Bem?! Como bem, você está...


-Sim, eu estou. –eu sabia qual seria a palavra que ele diria- Mas eu estou bem com isso...


-Como isso pode estar acontecendo? Luna...


-Não se desespere. Sean precisa de você.


-Luna... –ele gemeu- Isso tem algo a ver com... cinco anos atrás?


 


Eu não precisei responder.


 


-Eu não posso acreditar nisso...


-Acredite, amor... Eu fiz. Eu troquei de lugar com você criando uma corrente mágica inegociável...


-Poucas pessoas conseguiram isso, Luna, não pode ser... Eu não posso aceitar que...


-A chave é a determinação... Eu estava certa de que prefiro você vivo, ainda que eu não esteja. Eu não tenho medo da morte...


-Mamãe...


-Filho... Sean... –e apenas por ele minha determinação pareceu titubear- O papai vai cuidar de você e a mamãe estará sempre por perto para protegê-lo... Oh, eu não posso mais sentir os meus sentidos... Eu apenas sinto o frio...


 


A dor estava deixando minha visão obscurecida e eu sequer tinha certeza se eles estavam ouvindo minhas palavras.


 


-Não, Luna, não se despeça... –Severus implorou- Deve haver uma forma de... mudarmos isso.


-Eu não quero que mude. Eu o quero vivo, Severus.


-Luna...


-Eu os amo acima de tudo... –e não falei ou me movi mais depois disso.


 


Eu estava, e ainda estou, irrevogavelmente morta. Desde então, com o passar do tempo, ao longo dos anos, tenho podido observar o desenvolvimento do meu filho e o gradual superar do meu marido, e asseguro que não tem sido algo simples, facil.


A cada Lua Cheia meu olhar se derrama sobre eles, talvez pela luz sobre a terra ser mais vibrante nesse periodo. Onde estou é tudo tão preenchido por luz que fica dificil enxergar lugares menos brilhantes e mais impuros.


E assim será sempre, até que um dia eu possa encontrar com eles neste meu paraíso cintilante. É impossivel mudar isso, será sempre assim. A lua jamais deixará de velar por suas estrelas, mesmo aquelas que se apagam. E eu posso vê-los, dois grandes amigos, pai e filho , a cada ciclo num momento novo. Sean e seu primeiro dia em Hogwarts... Severus e o cargo de Ministro da Magia... Sean e a filha de Harry, Lilian, em seu primeiro beijo...


Mas a partir de agora eu só posso ficar imaginando o que virá enquanto minguo silenciosamente. Cerro as pálpebras e sonho, o que eu mais fazia quando vivia, até que possa contemplar um pouco mais aqueles que amo sob a luz de uma nova Lua Cheia.


 


Fim


 


 


Dedicada a Thaiana e à LTF (L)

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