Lua Nova
Lua Nova
Aconteceu naquele inverno, quando os primeiros flocos de neve começaram sua precipitação infinita sobre o solo coberto pelas folhas douradas do outono. O vento estava absurdamente frio, mas não era tão incomodo quanto o calor sufocante do verão. As nuvens tempestuosas começavam a dominar o céu obscuro daquele crepúsculo.
A rotina eterna me consumia. Talvez fosse a idade ou apenas a minha condição feminina, que me prendia às variações hormonais, mas o barulho amigo tornara-se insuportável, as paredes ameaçavam se fechar a minha volta, o teto me esmagaria e todas aquelas criaturas esquisitas que me acompanhavam iriam dissolver meu cérebro. Eu precisava de espaço. Esta noite nem a mais bela música seria apreciada pelos meus ouvidos que ansiavam pelo silêncio pesado, palpável que apenas a solidão podia proporcionar.
A solidão era algo que me assustava, mas hoje é a única coisa que pode me seduzir. Larguei os livros e sai pelo buraco do retrato. Minha mente fervilhava e impelia minhas pernas por caminhos que levavam a lugar nenhum. Eu sentia como se as verdades estivessem me perseguindo, tentando tirar de mim a minha psique sonhadora, meu mundo independente que sabia como me resguardar dos horrores daquilo que era real. Já há algum tempo em que eu sinto seu chamado urgente. Os perigos do mundo começam a me assustar e a preocupação com a segurança dos meus amigos é algo que já está tão presente como os meus amuletos contra narguilés.
Talvez o vazio, e não mais a divagação eterna, fosse o meu combustível. Um passo após o outro, ouvindo apenas o ecoar dos meus sapatos em atrito com o chão de pedra.
Quando dei por mim, percebi que estava no Hall de Entrada. Estava frio ali, ainda que as portas estivessem fechadas. Arrumei melhor o casaco em volta de mim e parei diante de uma janela.
Dali eu podia contemplar o Lago e a lua refletindo-se soberana em seu espelho negro. Era um lugar escuro e silencioso, um lugar que me abrigaria bem, mesmo ao relento.
Foi quando as portas se abriram com um barulho enorme. Tropeçando, quase sem forças, uma figura negra invade o hall. O vento gelado joga a capa por sua cabeça e ele tomba. O silencio é invadido pelos sibilos furiosos do vento em sinfonia ao gemido gutural que vinha do fundo da garganta do professor.
Corri para o corpo caído e machucado de Severus Snape. Acendi a ponta da minha varinha e iluminei seu rosto. A boca estava machucada, as mãos estavam quebradas e tinham a aparência de bolas de carne. O nariz adunco sangrava, sujando o chão polido. Havia lama e galhos secos na sua roupa e cabelo.
-Professor!
Ele apenas me olhou com aqueles profundos olhos negros, quase me sugando para o seu abismo. Sua respiração falhou quando ele tentou falar alguma coisa, produzindo apenas um terrível barulho de engasgo, e quando ele desmaiou foi como se o mundo se fechasse sobre mim.
-Professor! –chamei com mais urgência, mas ele não se moveu.
De início eu não soube o que fazer dividida entre a certeza de que precisava achar ajuda e o medo de deixá-lo sozinho. Mas o senso prático que eu havia adquirido devido à convivência com a Armada de Dumbledore gritou-me que eu podia fazer as duas coisas. Conjurei uma maca e petrifiquei o professor, para que nenhum de seus ossos entrasse em atrito quando eu fosse levitá-lo até a maca. Acomodei-o cuidadosamente. Onde ele estivera deitado, agora havia uma imensa mancha de sangue.
-Wingardium Leviosa! –ordenei apontando a varinha para a maca e cuidadosamente conduzi o professor semi-vivo até o terceiro andar. Estava tudo deserto e gelado.
Diante da porta da enfermaria, chamei Madame Pomfrey. Ela deixou uma exclamação de surpresa escapar pelos lábios finos, temperada com um leve desdém e logo assumiu a maca.
-Eu o encontrei no hall de entrada, ele vai ficar bem?
-Não sei, Lovegood. –ela me disse soturnamente, quase como se não estivesse se importando- Apenas procure o professor Slugorn, ele talvez possa me ajudar com algumas poções.
Eu não me movi. Eu sabia que mais de uma pessoa ficaria feliz com a morte do professor Snape, Madame Pomfrey e Minerva McGonagall eram duas delas. Ele havia matado o professor Dumbledore e ninguém podia perdoá-lo por isso, nem mesmo eu. Mas eu não podia permitir que eles o deixassem morrer, ainda mais diante da situação em que ele estava. Alguma coisa realmente hostil havia feito aquilo com ele, e eu desconfiava que fosse o próprio Lorde das Trevas. Não era a primeira vez que ele chegava machucado e dava aula sentado na sua cadeira quase o tempo inteiro. E talvez ninguém olhasse o suficiente para perceber a eterna sombra de tristeza que havia sobre seus olhos.
-O que está esperando, Lovegood?
-De que poções acha que vai precisar, senhora? –perguntei educadamente.
-Hum... –ela sequer havia pensado nisso, ele continuava imóvel sobre a maca, suas mãos sangravam e nesta posição eu podia perceber que sua orelha esquerda estava quase decepada.
-Madame Pomfrey, quando a senhora vai começar a tratar das feridas dele? –inquiri.
-Assim que você estiver fora daqui, indo procurar o professor de poções.
Com um aceno da varinha, eu abri a porta do imenso armário repleto de poções etiquetadas. Ela me olhou como se estivesse concluindo que eu tinha detectado suas intenções. Para confirmar isso, enviei o meu patrono em forma de coelho com um chamado ao professor. Ela me olhou com certa vergonha e foi até o armário. Adiantei-me e puxei a fita que prendia a capa do diretor. Cuidadosamente, para não machucá-lo mais, puxei-a de baixo do seu corpo. As mãos estavam terrivelmente quebradas e eu não podia parar de olhar para elas. Estiquei seus braços do lado do corpo e fui tirar seus sapatos.
Madame Pomfrey me entregou um frasco com uma poção verde clara e um chumaço de algodão.
-Aplique essa poção na orelha dele até que pare de sangrar. Depois procure por outros cortes assim.
-Sim senhora. –e mesmo enojada com tanto sangue, eu limpei o ferimento, realmente com medo de que a orelha dele fosse apartar-se completamente de sua cabeça.
Ele abriu os olhos por um instante, mas logo os fechou. Foi o suficiente para que ele entendesse que estava sendo tratado.
-O senhor vai ficar bem. –eu murmurei sem poder ter a menor certeza daquilo e ele fechou os olhos devagar, tranquilamente- Madame, já está limpo aqui. –eu avisei quando a orelha dele parou de sangrar.
-Certo, agora desabotoe este casaco. –ela disse assumindo o lugar onde eu estava e unindo novamente a orelha do professor ao resto da cabeça.
Conforme eu retirava os botões, percebia que minhas mãos estavam manchando-se de um liquido viscoso quase marrom. A camisa, outrora branca, estava suja com sangue seco.
-E agora? -perguntei observando a vertente infinita de sangue que manchava a cama.
-Tire a camisa também.
E dessa vez eu tentei ser mais rápida e quando descobri o peito do professor, recuei assustada.
-Merlin! –exclamou Madame Pomfrey correndo até o armário das poções e pegando um potinho de vidro, que continha uma pasta amarelada.
O peito dele estava completamente perfurado, como se alguém tivesse arrancado pedacinhos de sua pele com uma tesoura. Alguns cortes eram grandes e deixavam a mostra a carne viva e rosada. Mas isso não era o pior. Em cada um dos cortes havia uma espécie de molusco achatado que mordiam as bordas da ferida e soltavam um liquido marrom. O cheiro de algo podre enchia o ar.
-Lovegood, corte essas roupas. Nós precisamos ver até onde esses cortes vão.
Mas eu não conseguia me aproximar e parecia que a cada momento ele ficava mais pálido. Novamente eu percebi os olhos do professor abertos e dessa vez eles estavam ainda mais vazios. Havia um pedido de ajuda silencioso neles, e uma desesperança imensa. Suas sobrancelhas apertaram-se como se ele estivesse com dor e quando Madame Pomfrey arrancou o primeiro dos vermes, ele deixou um gemido baixo escapar e não se moveu mais. Peguei uma tesoura e comecei a cortar as vestes. Primeiro as mangas da camisa e do casaco. As feridas continuavam ali. No braço esquerdo, onde havia a marca negra, não haviam poucas feridas e alguns vermes roíam a tatuagem.
Madame Pomfrey continuava sua luta contra os bichos e a cada pedaço de roupa que eu tirava do professor, mais deles surgiam. As pernas estavam feridas também, embora em uma proporção menor. A roupa íntima dele estava limpa e nas coxas quase não havia nenhum verme.
-Eles iam devorá-lo vivo. –Madame Pomfrey disse puxando os bichinhos fervorosamente- Eu me pergunto: quem seria capaz de fazer algo assim?
-Eu não faço idéia, senhora. –eu murmurei com a voz tremula, pegando uma pinça e ajudando-a na tarefa grotesca de limpar a pele dele.
-Aplique este ungüento nos cortes que já cuidamos. Vai ajudar a desinfetar.
Passamos cerca de uma hora limpando o corpo dele daquelas criaturinhas nojentas. Madame Pomfrey me ensinou a fechar cortes e logo o corpo do professor estava completamente pintado de cicatrizes rosadas. Enquanto eu curava sua boca ferida, Madame Pomfrey emendava os ossos de suas mãos, movendo cada uma das articulações. Foi quando ele novamente abriu os olhos.
-Professor... –arfei aliviada, afastando seus cabelos do rosto.
-Você vai viver, Snape. –Madame Pomfrey disse com descaso- Consegue se mover? Eu já emendei suas costelas, mas ainda preciso extrair o sangue que deve estar nos seus pulmões.
-O senhor precisa de ajuda pra se mover? –perguntei e a resposta dele foi fechar a mão em torno do meu antebraço.
Cuidadosamente, ajudamo-lo a se sentar. Estava curvado, dolorido, pálido e ainda respirava ruidosamente.
-Apóie-se nela, Severus. Ainda preciso retirar alguns dos seus amiguinhos das suas costas.
Era um homem grande, magro, machucado e extremamente abalado. Sua testa encontrou meu ombro e ele ficou ali, arfando de dor enquanto eu servia como suporte. Finquei o calcanhar no chão. Ele estava quase sem forças e seu peso estava derramado sobre mim. Minhas mãos seguraram seus ombros enquanto os braços dele, quase sem forças, tentavam segurar-se em mim. Ele tremia e soluçava levemente.
-Devagar, Madame. –eu pedi percebendo que ele não suportaria muito mais daquilo.
-Esses são maiores. –ela explicou, como se aquilo justificasse a violência com a qual ela tratava dos ferimentos.
Finalmente o suplicio estava terminando. Ele já havia desmaiado novamente e eu lutava para mantê-lo sentado enquanto Madame Pomfrey procurava por mais feridas. Quando dei por mim, estávamos quase abraçados, minhas mãos sentindo a pele de suas costas, meu queixo encaixado no seu ombro. O sangue dele me sujava, mas não importava.
-Lovegood... –eu ouvi a voz dele tentando me dizer alguma coisa, mas ele não tinha forças para quase nada.
-Não se esforce Professor. Está quase terminado. Logo vai poder descansar.
-Hum... –ele soltou um breve gemido esgoelado.
-Vai ficar tudo bem, não se preocupe. Já está acabado. Está seguro agora.
E com um sobressalto, eu senti que os braços dele também me envolviam. Era desajeitado, como se ele não soubesse abraçar ninguém. Sua respiração arfante e ruidosa começava a serenar e dessa vez ele não desmaiou, apenas adormeceu.
-Você deve ir. –Madame Pomfrey me disse quando colocamo-lo de volta na cama- Já é quase meia noite, você não deve ficar nos corredores a essa hora da noite.
-Mas eu gostaria de ficar, senhora. Eu a ajudei bastante esta noite, a senhora ainda pode precisar de ajuda.
-Não, eu posso fazer tudo sozinha a partir de agora. Ele vai tomar uma poção para limpar seus pulmões e vai dormir até amanhã.
-Mas...
-Luna, vá. –ela me disse dessa vez com autoridade- Tome um banho e limpe suas mãos com isso. –e me entregou um frasco com um liquido transparente- Ele vai ficar bem.
-Prometa.
-O que você quer dizer com isso? Você acha que eu vou matá-lo? –ela riu bondosamente- Luna, obrigada por sua ajuda, mas você tem que ir embora.
-Eu vou voltar de manhã, Madame.
-Tudo bem. –ela disse me dando um breve abraço- Tente descansar.
Mas aquilo não foi muito fácil. A noite foi a mais longa da minha vida. Eu ouvia sua voz em cada murmúrio sonolento das minhas companheiras de quarto e quando fechava os olhos eu apenas podia ver sua imagem decadente, machucada e frágil. Os cobertores não eram nada perto do calor escaldante de sua pele recém curada. Aquele era um dos homens mais odiosos que eu tivera a oportunidade de conhecer, mas era também um dos mais sofredores. Eu não podia vê-lo mais como um vilão depois de impedir que os vermes de Você-Sabe-Quem o devorassem vivo. Cada um daqueles comensais era potencialmente uma vitima.
Tão demoradamente adormeci que ao despertar estava muito atrasada. Tinha uma aula de Feitiços agora e, mesmo faminta, não pude comer, já que nada me desceria pela garganta. Estava apática e sonolenta, bem como extremamente preocupada.
Assim que pude, corri a enfermaria. O leito dele estava vazio.
-Madame Pomfrey! –chamei desalentada.
-Ah, Srta. Lovegood! –ela saudou vinda de sua salinha e me vendo ali, torcendo as mãos.
-Onde ele está?
-O Professor Snape?
-Quem mais?
-Ah, ele despertou sentindo-se bem melhor. Eu tentei forçá-lo a ficar aqui, mas ele não aceitou as minhas sugestões e foi embora.
-Para a diretoria?
-Sim. Luna... –ela aproximou-se de mim e segurou meu ombro- ...querida, está acontecendo alguma coisa que você queira me falar?
-Claro que não, eu só fiquei preocupada. –eu disse certamente bastante corada- Afinal, fui eu quem o encontrou, estou me sentindo bastante responsável por ele, enfim...
-Ele já esteve pior do que aquilo, querida. –ela me falou soturnamente- Acho que você não deve se preocupar. Eu entendo que seja chocante pra você, talvez tenha sido a pior cena de toda sua vida, mas eu garanto que você não deve se preocupar.
-Não é tão simples. Alguém fez aquilo com ele e isso é assustador.
-Sim. É sim. –ela concordou sentando-se numa cadeira- Luna, eu quero convidar você a me ajudar aqui na enfermaria. Você foi brilhante ontem, poderia seguir essa profissão se quisesse. Daria-me muito prazer ajudá-la e ensiná-la.
-Obrigada, senhora, mas... –eu recuei um passo- Mas eu não acredito que essa seja a melhor coisa.
-Bom, você pode pensar melhor nisso. –ela sorriu- Eu lamento que ontem eu tenha deixado que você pensasse que eu iria deixar o Professor a sua própria sorte. Eu não faria isso.
-Embora tenha parecido. –eu murmurei- Eu preciso ir. Tenho uma aula de Trato das Criaturas Mágicas agora.
E saí da Enfermaria. No almoço eu conversei com Gina e Neville sobre o que tinha acontecido. Ao contrário do que eu imaginei, eles me repreenderam por ter ajudado o professor.
-Como você pode fazer isso, Luna?
-Mas...? –eu os fitei atônita- Ele estava morrendo, o que vocês teriam feito?
-Eu teria terminado com aquilo para ele, oras! –Neville disse- Aquele homem matou o professor Dumbledore! –e rugiu tentando manter a voz baixa.
-Harry, Rony e Mione estão lá fora matando comensais da morte, e você está aqui, salvando suas vidas! De que merda de lado você está, Luna? Este é o mundo real!
-Já está mais do que na hora de você acordar para isso! Seria lindo que você tivesse ajudado alguém que realmente merecesse ajuda, mas eu o teria deixado morrer.
-Eu não posso reconhecer vocês. –sibilei olhando de um para o outro- Eu não posso compreender vocês. Meus amigos são seres humanos, não essas pedras de gelo que vejo aqui.
E os deixei sozinhos no canto do salão. Corri para a primeira porta que vi a minha frente. Prendi a respiração, surpresa, já que ele vinha justamente por aquela passagem. Ele vinha majestosamente, com sua capa negra ondulando a sua volta, seus passos, agora firmes, ecoavam na pedra. Aleto e Amico Carrow os seguiam, grasnando alguma coisa. Nossos olhos encontraram-se por um segundo e eu apenas vi ali a mais profunda frieza. Não houve um único lampejo de reconhecimento ou gratidão. Congelei ali, esperando que ele fizesse alguma coisa, mas ele apenas passou por mim sem se abalar.
Olhei de soslaio para sua figura altiva e o que vi foi apenas o olhar de deboche vindo de Gina.
-Isso não se faz. –murmurei para mim mesma e fugi para o isolamento bárbaro que a sala precisa me dava.
Por alguns dias as coisas funcionavam assim. Eu me sentia cada vez mais sozinha durante as aulas. Gina me olhava como se quisesse me dizer alguma coisa, ou como se procurasse uma brecha para se aproximar. Mas eu não queria falar com ninguém agora, ainda mais nessa sala, sentada e esperando que ele viesse dar sua aula. Era a primeira vez que eu o veria depois daquele dia no Salão Principal, não que ele não estivesse presente em todas as refeições, mas porque eu não tinha coragem de erguer os olhos para sua figura.
-Abram o livro na página 245. –foi a primeira coisa que ele disse, sentando-se na sua cadeira. Imaginei se ele estaria bem- Leiam a parte sobre Feitiços Protetores e resolvam as questões da página 247. Depois começaremos a parte prática.
Era visível que ele estava corrigindo algumas redações. Aquelas dos alunos da Corvinal eram amarradas com fitas azuis e as da Grifinória, com fitas vermelhas. Imaginei se eu teria feito uma boa redação sobre Feitiços Bloqueadores, mas aquilo não importava.
Era estranho, mas mesmo diante de toda a ingratidão dele, eu não me arrependia de tê-lo salvo. Eu estava satisfeita por conseguir perceber que eu não estava perdendo a minha humanidade, mas estava chocada ao ver que as pessoas que eu mais amava estavam deixando que o mundo os transformasse em pedras de gelo. Eu sentia como se tivesse feito a minha parte.
Respondia as questões automaticamente, quase copiando as respostas do livro texto. Minha mente estava letárgica, meus olhos mal viam a superfície amarelada do pergaminho e eu deixava que meus cabelos caíssem me ocultando do mundo.
-Lovegood. –a sua voz fria e suave soou. Ergui a cabeça num susto, os olhos arregalados. Percebi que muitos alunos já tinham suas redações e alguns já as enfiavam na mochila, claramente desgostosos de sua nota.
Ele segurava o pergaminho enrolado apontando-o em minha direção. Seus olhos fixos em mim. Fiquei de pé, sentindo que eu não tinha pernas e flutuei até ele. Segurei o pergaminho e ele ainda o manteve preso por um segundo antes de soltar. Seus olhos queimavam sobre o meu rosto.
-Murfie. –ele continuou chamando os alunos e lhes entregando suas redações. A minha estava enrolada, ao lado do livro texto. Eu não iria abrir aquilo antes de terminar meu trabalho. Eu sabia que os resultados que ele dava eram sempre muito desestimulantes.
Quando terminei as questões e as enrolei com outra fita azul, olhei a redação. Vi a nota. Aceitável, como sempre. Passei os olhos pelo texto e deixei que minha atenção fosse sugada por uma única palavra escrita no rodapé, bem debaixo do meu nome.
Obrigado.
Olhei para ele e seus olhos me diziam isso também. Sorri satisfeita percebendo que toda a minha infelicidade tinha se esvaído diante daquele agradecimento. Senti meus olhos queimarem e quando uma lágrima escorreu pelo meu rosto, eu entendi que era a hora de parar de olhar para ele. Estávamos ambos constrangidos o suficiente para que o sangue tingisse nossos rostos.
Aquela tarde eu procurei Madame Pomfrey e lhe disse que estava disposta a ser sua aprendiz. Ela pareceu estar plenamente satisfeita.
-Essa é uma ótima notícia, Luna! –ela disse me puxando para um abraço- Eu vou falar como professor Flitwick, certamente ele vai lhe dar a autorização.
-Ok. Quando eu posso começar?
-Assim que eu tiver as autorizações. Talvez os diretores queiram fazer uma entrevista para saber sobre as suas motivações. Isso vai ser bom, eu realmente estou precisando de ajuda.
No dia seguinte eu recebi um bilhete dela me convocando a duas entrevistas. A primeira seria como professor Flitwick sobre a mudança na minha decisão sobre a profissão que eu havia escolhido um ano antes, na orientação vocacional. Depois eu precisaria ir à diretoria, falar como professor Snape e esperar que ele me autorizasse a fazer um estágio nas dependências da escola.
Fazia frio quando deixei a minha sala comunal. Era sábado, e alguns alunos brincavam com bolas de neve nos jardins. Sai da sala do Professor Flitwick com um pergaminho repleto de elogios a minha pessoa, infelizmente havia uma nota de rodapé, não tão emocionante como a ultima que eu tinha visto. Ali estava escrito que eu era potencialmente relapsa.
Eu estremeci ao pensar que teria que ir até a diretoria. Aquilo era demais para mim. Como encarar a pessoa que estava presente em todos os seus sonhos e parecer natural? Eu sabia que alguma coisa errada estava acontecendo comigo e eu sabia que essa coisa era ele. Eu não conseguia parar de pensar nele, não podia.
Peguei o papel onde estava escrito a senha para a sala do diretor. “Ararambóia”. Aquilo era tão a cara dele! A escada em espiral começou a subir e antes que eu pudesse bater, a porta estava aberta e ele me aguardava.
-Bom dia, Diretor. –eu disse com a voz trêmula.
-Entre. –ele disse autoritário, com sua voz de estalactite- Os pergaminhos. –ele estendeu a mão para segurar os bilhetes do Professor Flitwick e Madame Pomfrey.
Eu não conseguia falar nada. Sentei-me onde ele havia indicado e esperei que ele lesse sua correspondência. Por um minuto achei que ele tivesse se esquecido da minha presença.
-Bom, Lovegood, eu vejo que você tem boas referencias e sua carta de solicitação está bem convincente. Eu particularmente acredito que você tem futuro como Medibruxa. E é bom que você tenha decidido fazer isso aqui, em Hogwarts, principalmente neste momento.
-Obrigada, Professor.
-Você leva jeito. Eu bem sei. –e a ultima frase foi quase muda- Então, eu vou assinar este papel e esperar os primeiros relatórios de Madame Pomfrey sobre seu progresso.
-Certo. –eu murmurei com um sorriso, que se extinguiu envergonhadamente quando ele me olhou.
-Eu realmente acredito em você. –ele garantiu me olhando fixamente- E confio no seu julgamento. Eu lhe serei eternamente grato por tudo o que você fez por mim. Eu sei que não deve ter sido fácil, Luna, desafiar a autoridade de Papoula dentro de seus domínios, mas você foi forte e o fez. Eu não sei o que seria de mim se você não tivesse feito isso.
-Eu fiz o que achei certo, professor. –eu disse sentindo o rosto quente.
-Obrigado por isso. Eu acho que você pode ir agora.
-Ah... Certo. Bom dia, Professor. –fiquei de pé e fui embora me sentindo potencialmente mais leve.
Alguns dias transcorreram com perfeição pra mim. A distância que eu estabeleci entre mim e os meus amigos estava presente, mas eu já permitia que aquilo fosse sublimando aos poucos. O diretor agora passou a me observar discretamente e apenas eu, por não conseguir desviar os olhos dele a maior parte do tempo em que estávamos no mesmo ambiente, reparava nisso. Eu estava cada vez mais sozinha e eu não podia negar para aquela imagem que via no espelho que havia uma sombra negra de tristeza sobre os meus olhos. Havia também um palpitar estranho sempre que o via e agora ele sempre sustentava meus olhares até que se tornava inviável. Eu confiava plena e seguramente naquele olhar firme que me sugava para suas profundezas. Até mesmo aquele leve sorriso tão divergente das costumeiras zombarias me dizia coisas e me dava idéias.
E cada dia mais eu dormia com o pensamento naqueles lábios finos e estreitos abertos numa manifestação de doçura. Eu estava irrevogavelmente apaixonada pelo meu professor e enxergava traços de retribuição nas suas atitudes e gestos.
Sempre que nossos caminhos cruzavam-se nos corredores havia uma saudação sutil, quase muda.
-Lovegood.
-Professor.
Meus dias preenchidos com os ensinamentos de Madame Pomfrey eram cada vez mais interessantes e todas as noites, quando saía da enfermaria, eu tinha o meu momento de ouro.
-Boa noite, Lovegood.
-Boa noite, professor.
Enquanto ele subia para o seu escritório, eu descia um lance de escadas para minha sala comunal e se eu olhasse para trás podia ver seus olhos pousados em mim. Aquela noite, que precedia o feriado de Natal, talvez tenha sido a melhor de todas.
-Feliz Natal, Luna.
-Pro senhor também, Professor. –e continuei pelo corredor.
-Er... Eu recebi o relatório da Madame Pomfrey sobre sua situação na Enfermaria.
Ele detinha toda a minha atenção.
-Ela está impressionada.
Sorri com alivio. Eu vinha me esforçando muito e aquelas aulas extras eram tudo pelo que eu podia esperar e a única coisa que ultimamente estava me dando prazer em Hogwarts.
-Que bom! –exclamei satisfeita.
-Você... Decidiu ficar na escola neste feriado. –ele constatou- O trem partiu hoje cedo.
-Eu não... tenho motivos para ir para casa. –e dolorosamente lembrei-me do meu pai sumido.
-Não? E o seu pai?
-Er... –suspirei esgoelada- Ele não tem... respondido as minhas corujas, senhor. Elas sempre voltam sem terem sido realmente entregues.
-Mas...? –seus olhos estreitaram-se- Você disse isso a alguém?
-Não, eu recebi uma carta hoje cedo. A coruja me devolveu. É a segunda. Mas o senhor não deve se preocupar. –eu disse percebendo que ele tinha se aproximado alguns passos- Já aconteceu antes. Ele sempre volta ou escreve. Deve estar em alguma reportagem especial.
Não era muito fácil admitir em voz alta que eu era negligenciada pelo meu pai. Eu não iria para casa neste Natal porque ele não havia respondido a minha correspondência e certamente estaria envolvido em alguma busca estranha que transformaria em uma reportagem interessante para a revista. Sinceramente, eu me sentia trocada, mas aquilo era algo que já fazia parte do meu relacionamento com ele. Certamente ele não estaria muito informado sobre 24 de Dezembro ser Noite de Natal.
-Você não quer subir e tomar um chá? –aquilo pareceu ter lhe custado muito. Pude ver uma fina linha de suor frio descer por sua têmpora- Podemos discutir alguns pormenores do seu relatório. –ele emendou.
-Professor, eu não acho que seja adequado. Isso pode render perguntas. Os Carrow, eu quero dizer.
-Não se preocupe. Suba. –e não era uma ordem. Era um pedido.
-Snape? –Aleto Carrow vinha pelo corredor- Você não vem?
-Para onde? –ele perguntou de modo letal- Acho que não fui muito claro hoje cedo quando disse que eu não iria fazer parte dessa celebração de vocês.
-Com licença, Professor. –e me retirei, satisfeita por não ter precisado negar aquele pedido. Lembrei-me de quando Padma Patil foi convidada a subir ao quarto de Amico Carrow e voltou com a memória alterada e um sangramento estranho nas partes íntimas.
Não que eu achasse que ele fosse me tocar, mas eu temia pelos Carrow, eu temia por aquela amizade e lealdade extrema entre eles. Comensais.
O dia seguinte despertou sombrio e frio, como todo aquele inverno. Sentei-me sozinha na Mesa da Corvinal, já que todos os alunos da minha casa tinham preferido ir para junto de suas famílias. A escola estava praticamente vazia, a não ser pelos Sonserinos. O dia estava prometendo ser longo e o almoço estava permeado por Comensais da Morte. O professor Snape parecia ambientado entre eles, apesar de se manter impassível. Eu estava com medo, realmente com medo. Eu via hostilidade em cada um daqueles rostos.
-Você não quer sentar-se conosco? –a Professora McGonagall veio até a minha mesa me chamar, indicando a mesa da Grifinória, onde apenas uns dois ou três quintanistas e dois sextanistas ceavam tristemente.
-Claro. –eu disse sem encontrar uma justificativa para minha solidão forçada.
Era como se fôssemos intrusos em Hogwarts. Desambientados, desconfiados e incomodados, era assim que cada um de nós se sentia. O dia arrastou-se para mim, sozinha na minha sala comunal. Foi um susto imenso quando alguém entrou pela passagem. Suas feições emolduradas por cabelos negros pareciam leves.
-Luna. –ele disse se aproximando de braços cruzados, a capa fechada em torno de si mesmo como se o resguardasse de algum ataque eminente.
-Professor! –exclamei ficando de pé- Aconteceu alguma coisa?
-Ontem você me disse sobre o desaparecimento do seu pai.
-Oh! Meu Deus! –arfei deixando meu corpo desabar na poltrona.
-Não, não se preocupe! –ele estendeu o braço inseguro- Eu vim tranqüilizá-la. Nenhum comensal o pegou, não há ordens neste sentido.
-Ah... –sorri aliviada sentindo meus músculos retraídos pelo susto relaxarem- Isso é realmente reconfortante.
-Eu imaginei que fosse. –e me brindou com um de seus sorrisos desacostumados.
-Obrigada por ter se dado o trabalho de investigar isso. Pode ter sido incomodo.
-Não, não foi. –ele garantiu.
-Realmente me sinto grata, Professor. Acho que estamos quites.
-Jamais. Mas talvez estejamos se você aceitar tomar um chá comigo esta noite.
-O que?
-Pode ser aqui, se isso faz você se sentir menos ameaçada pelos Carrow.
-Tudo bem. –eu disse quase num suspiro- Esta noite.
-Ótimo.
E saiu com um rodopio teatral da sua capa.
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