CAPÍTULO 02



CAPÍTULO 02


 


- Já localizou o número do tele-link do namorado dela?


- Sim, senhora. Jeremy Vandoren. Mora na Segunda Avenida e trabalha como analista financeiro na firma Foster, Bride & Rumsey, em Wall Street. - Hermione olhou para o notebook enquanto transmitia o resto das informações. - Divorciado, atualmente solteiro, trinta e seis anos. Um espécime muito atraente do sexo masculino. Senhora.


- Hummm. - Gina colocou um dos discos da segurança para reproduzir no computador de sua mesa. - Vamos averiguar se esse atraente espécime masculino fez uma visitinha à namorada na noite passada.


- Aceita um pouco de café, tenente?


- O quê?


- Aceita um pouco de café?


- Se quer tomar café, Hermione, é só dizer. - resmungou Gina, estreitando os olhos enquanto olhava o vídeo.


Pelas costas de Gina, Hermione girou os olhos de irritação e disse:


- Tenente, eu quero tomar café.


- Ora, sirva-se logo... e já que você vai pegar café aproveite e traga um para mim também. Veja só, vítima entrando em casa às dezesseis e quarenta e cinco. Pausar disco! - ordenou Gina, para poder dar uma boa olhada em Marianna Hawley.


Muito arrumada, bonita, jovem, os cabelos castanhos brilhantes cobertos por uma boina vermelha que combinava perfeitamente com o casaco também vermelho e o brilho das botas elegantes e caras.


- Ela voltava das compras. - comentou Hermione, colocando a caneca de café ao lado do cotovelo de Gina.


- Isso mesmo. E fez compras na Bloomingdales. Continuar o vídeo! - disse Gina, com a voz um pouco mais alta, observando Marianna trocar as sacolas de mão e procurar pelo cartão-chave. Sua boca se movia, percebeu Gina. Falava sozinha. Não, notou em seguida, Marianna estava cantando. Nesse momento a mulher jogou os cabelos para trás, trocou as sacolas de mão mais uma vez, entrou em casa e fechou a porta.


A luz vermelha de segurança acima do portal imediatamente se acendeu, trancando a porta. Conforme o disco continuava a passar em velocidade acelerada, Gina viu outros vizinhos entrando e saindo, alguns sozinhos, outros acompanhados. Vidas comuns que seguiam em frente.


- Ela ficou em casa na hora do jantar. - afirmou Gina, olhando agora para dentro do apartamento através da porta, com os olhos da imaginação.


Conseguia ver Marianna movimentando-se despreocupada por entre os cômodos, usando a calça simples azul-marinho e o suéter branco que mais tarde seria cortado e arrancado do seu corpo.


Deve estar ligando o telão para não se sentir muito sozinha. Agora abre o closet, pendura o casaco vermelho, guarda a boina em uma prateleira e as botas na sapateira. Em seguida guarda as sacolas de compras. Era uma mulher organizada que gostava de coisas bonitas e se preparava para uma noite sossegada em casa.


- Preparou uma sopa exatamente às sete horas, de acordo com os registros do AutoChef. - Gina tamborilava sobre a mesa com as unhas curtas e sem pintura enquanto continuava a observar o corredor do andar. - Sua mãe ligou, e depois ela ligou para o namorado.


Enquanto remontava na cabeça a seqüência dos acontecimentos e o tempo que cada um levara, viu as portas do elevador se abrirem. Suas sobrancelhas se ergueram tanto, que quase sumiram por trás das pontas de franja do cabelo.


- Ora, ora. Ho-ho-ho! O que temos aqui?


- Papai Noel! - Sorrindo, Hermione se inclinou para a frente na direção da tela, por trás de Gina. - E está trazendo um presente.


O homem com roupa vermelha e barba muito branca trazia consigo uma caixa imensa embrulhada em papel prateado e arrematada com um elaborado laço dourado e verde.


- Parar! Pausa! Ampliar do setor dez até o cinqüenta em trinta por cento!


A tela se moveu. A seção que Gina determinara se separou da tela principal e se ampliou em primeiro plano. Espetada bem no centro do laço chamativo estava um prendedor de cabelo comprido com um pássaro emplumado dourado pousado sobre uma árvore prateada.


- Que filho-da-mãe! Veja só que filho-da-mãe, esse enfeite é o troço que estava preso no cabelo dela.


- Mas... ele é o Papai Noel!


- Ei, se liga, Hermione. Continue a passar em câmera lenta. Ele está se encaminhando para a porta dela. - murmurou Gina, acompanhando a sorridente figura que levava o pacote brilhante até ela chegar diante da porta do apartamento de Marianna. Apertou a campainha com o dedo enluvado, esperou um segundo e então jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Quase no mesmo instante, Marianna abriu a porta, com o rosto radiante e os olhos brilhando de alegria.


Ajeitou o cabelo para trás da orelha com uma das mãos e deu um passo para o lado, escancarando a porta por completo em um convite. Papai Noel virou a cabeça rapidamente para o lado e olhou direto para a câmera de segurança. Lançou um generoso sorriso e piscou um olho.


- Congelar a imagem! Que safado. Um canalha metido a esperto. Imprimir essa imagem congelada! - ordenou à máquina enquanto estudava o rosto redondo, as bochechas muito vermelhas e os olhos brilhantes, profundos e azuis. - Ele sabia que assistiríamos à gravação dos discos de segurança e o veríamos. Está curtindo com a nossa cara.


- Mas ele está vestido com a fantasia de Papai Noel. - Hermione se espantou e ficou com o queixo caído diante da imagem. - Isso é horrível. Isso está... muito errado.


- O que está errado? Você acha que tudo seria mais apropriado se ele estivesse vestido com fantasia de Diabo?


- Sim... não. - Hermione encolheu os ombros e girou o pé, sem graça. - É que isso é simplesmente... Puxa é realmente um ato doentio.


- E também um ato muito esperto. - Com os olhos sem expressão, Gina esperou até a imagem acabar de ser impressa. - Quem é que tem coragem de bater a porta na cara de Papai Noel? Continuar gravação!


A porta foi fechada atrás deles e o corredor permaneceu vazio.  


O relógio que corria na base da tela marcava vinte e uma horas e trinta e três minutos.


Então ele não tivera pressa, refletiu Gina. Levou quase duas horas e meia. A corda com que a amarrara e as outras coisas que poderia ter precisado deviam estar dentro do presente grande e enfeitado. Às onze horas, um casal saiu do elevador rindo muito; os dois pareciam meio altos por efeito de bebida e seguiram de braços dados, passando direto pela porta de Marianna sem saber o que ocorria do lado de dentro.


Medo e dor.


Morte.


A porta tornou a se abrir à meia-noite e meia. O homem com a fantasia vermelha saiu, ainda carregando a caixa de presente prateada e exibindo um sorriso largo, quase feroz, por entre as bochechas vermelhas. Novamente olhou direto para a câmera, mas agora um ar de loucura brilhava em seus olhos. Seguiu dançando por toda a extensão do corredor, até alcançar o elevador.


- Fazer cópia do disco do arquivo Hawley. Caso número 25176-H. Quantos dias de Natal você disse mesmo que eram, Hermione? Na canção?


- Doze. - Hermione tentou aliviar sua garganta seca e dolorida com café. - Doze dias.


- Então é melhor descobrirmos se Marianna Hawley era o único verdadeiro amor desse Papai Noel ou se havia outras onze. - disse Gina e se levantou da cadeira. - Vamos conversar com o namorado dela.


 


Jeremy Vandoren trabalhava em uma pequena baia entre inúmeras outras tantas que pareciam uma colméia. Seu cubículo tinha uma estação de trabalho grande o bastante apenas para acomodar o computador, um fone de comunicação e uma cadeira de três pés com rodas. Presos nas pequenas paredes estavam gráficos da Bolsa de Valores, uma programação de teatro, um cartão de Natal que mostrava uma mulher de seios fartos vestindo apenas flocos de neve estrategicamente colocados e uma fotografia de Marianna Hawley.


Ele mal levantou os olhos ao perceber que Gina entrara em seu espaço; levantou uma das mãos para fazê-la esperar e continuou a trabalhar freneticamente no teclado do computador usando dedos ágeis ao mesmo tempo que falava sem parar a um microfone preso à cabeça.


- A Comstat está a 5.8; a Kenmart caiu três pontos e três quartos. Não, as Indústrias Potter acabam de dar um salto de seis pontos. Os analistas apostam que vão subir mais dois até o final do pregão.


Gina levantou uma sobrancelha e enfiou as duas mãos nos bolsos das calças. Ela estava ali parada, esperando para conversar sobre um assassinato enquanto, naquele mesmo instante, Harry ganhava milhões. Era meio esquisito.


- Fechado! - Vandoren apertou uma tecla e uma série de números e símbolos misteriosos subiu pela tela. Ela o deixou brincando ali por mais uns trinta segundos, e então pegou o distintivo e o colocou diante do rosto dele.


Ele piscou duas vezes e só então se virou e focou os olhos no rosto dela.


- Já entendi. Está definido, então. Com certeza. Obrigado. - despediu-se ele pelo microfone. Com um sorriso intrigado, ligeiramente nervoso nos cantos da boca, Vandoren arrancou o fone da cabeça e o colocou sobre a mesa. - Ahn... o que posso fazer pela senhora, tenente?


- Você é Jeremy Vandoren?


- Sou. - Seus olhos castanhos passaram por ela, seguiram em frente, analisando Hermione, e então voltaram para o rosto de Gina. - Estou em apuros?


- O senhor fez algo ilegal, sr. Vandoren?


- Não que eu me lembre. - Tentou sorrir novamente, formando uma covinha no canto da boca. - Será que aquele chocolate que eu roubei do armazém quando tinha oito anos voltou para assombrar a minha vida?


- O senhor conhece Marianna Hawley?


- Marianna? Claro. Não me diga que foi ela que roubou chocolates de alguma loja. - Então, de forma abrupta, como uma luz que se apaga, o sorriso desapareceu. - O que foi? Aconteceu alguma coisa? Ela está bem?


De repente ele já se levantara da cadeira e lançava os olhos por cima dos outros cubículos em volta, como se esperasse vê-la chegando.


- Sr. Vandoren, eu sinto muito. - Gina jamais conseguira encontrar um jeito suave de dar uma notícia como aquela, por isso falou de forma direta: - A Srta. Hawley está morta.


- Não, não... claro que não. - garantiu ele, tornando a focar os olhos castanhos em Gina. - Não está não! Isso é um absurdo! Conversei com ela ontem à noite. Vamos nos encontrar para jantar hoje, às sete horas. Ela estava ótima. Deve ter havido algum engano.


- Não é engano, senhor. Sinto muito. - repetiu Eve, enquanto ele continuava a olhar para ela fixamente. - Marianna Hawley foi assassinada na noite passada, em seu apartamento.


- Marianna? Assassinada? - Continuou a balançar a cabeça lentamente, com incredulidade, como se aquelas duas palavras tivessem sido ditas em outro idioma. - Isso é definitivamente um engano. Um engano. - Virou-se, transtornado, e tateou entre os papéis da sua mesa em busca do tele-link. - Vou ligar para ela agora mesmo, ela está no trabalho.


- Sr. Vandoren. - Gina colocou a mão com firmeza sobre o ombro dele e o obrigou a se sentar. Como não havia lugar onde ela também pudesse se sentar diante dele, contentou-se em apoiar o quadril na mesa para que seus rostos ficassem quase no mesmo nível. - Escute... Ela já foi identificada pelas digitais e pelo DNA. Eu gostaria que o senhor me acompanhasse agora para fazer o reconhecimento do corpo.


- Reconhecimento do corpo... - Ele se levantou da cadeira, como que impulsionado por uma mola, e seu cotovelo esbarrou de leve no ombro de Gina, provocando-lhe uma fisgada no local ainda dolorido. - Sim, eu vou acompanhar a senhora sim, pode ter certeza que vou! Porque não é ela. Não é Marianna!


O necrotério não era um lugar festivo. O fato de alguém muito otimista ou dotado de um macabro senso de humor ter espalhado um fino festão dourado e cheio de falhas só servia para acrescentar um ar de deboche diante da morte.


Gina ficou do lado de fora da sala, observando a cena através do vidro, como já fizera tantas vezes. E sentiu, como sentira outras vezes, o duro golpe provocado pelo choque que atingiu o rapaz ao seu lado no instante em que ele viu Marianna Hawley deitada sobre uma mesa fria do outro lado do vidro.


O lençol que a cobria até o queixo certamente fora jogado às pressas sobre o seu corpo para esconder dos amigos, da família e dos entes queridos a patética nudez dos mortos, as marcas da incisão em Y da autópsia e a etiqueta pendurada no dedão que dava ao corpo um nome e um número.


- Não. - Sentindo-se impotente, Vandoren pressionou o vidro com as duas mãos espalmadas. - Não, não, não pode ser. Marianna!


Com carinho e cuidado, Gina pousou a mão em seu ombro. Ele tremia violentamente por dentro; as mãos sobre o vidro haviam se fechado com força e davam uma série de pancadinhas na superfície gelada.


- Simplesmente acene com a cabeça para a frente, caso tenha certeza de que se trata de Marianna Hawley. - pediu Gina.


Ele acenou e, então, começou a chorar.


- Hermione, procure uma sala vazia para nós e pegue um pouco d'água para ele. - Enquanto falava, Gina se viu abraçada pelo rapaz, seus braços colocando-se em torno dela e seu rosto largando-se sobre o seu ombro. O corpo dele estava curvado para a frente, totalmente apoiado no dela e pressionando-o com o peso da sua dor.


Ela o deixou se apoiar nela, fazendo um sinal para que o técnico por trás do vidro acionasse a tela de privacidade que faria desaparecerem as imagens do outro lado.


- Vamos, Jerry, venha comigo agora. - Gina manteve um braço em torno dele, dando-lhe apoio e imaginando que preferia enfrentar uma arma de atordoar em força máxima a lidar com o sentimento de luto. Não havia consolo par os que eram deixados para trás.


Nenhuma mágica nem cura. Mesmo assim ela murmurava alguma coisa para ele, enquanto o carregava ao longo do corredor de paredes azulejadas até o local onde Hermione aguardava.


- Podemos usar esta sala aqui. - avisou Hermione baixinho. - Vou pegar a água.


- Vamos nos sentar um pouco, Sr. Vandoren. - Depois de ajudá-lo a se sentar em uma cadeira, Gina pegou um lenço no bolso da jaqueta e o colocou entre as mãos dele. - Meus pêsames. - disse ela, como sempre fazia. E sentiu a inadequação das palavras, como sempre sentia.


- Marianna. Por que alguém iria atacar Marianna? Por quê?!


- O meu trabalho é descobrir isso. E vou fazê-lo.


Algo no tom das palavras de Gina o fez levantar a cabeça na direção dela. Os olhos dele estavam muito vermelhos e desolados. Com evidente esforço, obrigou-se a respirar fundo, antes de afirmar:


- Eu... Ela era tão especial. - Enfiou a mão no fundo do bolso e tirou lá de dentro uma caixinha de veludo. - Eu ia oferecer isto a ela hoje à noite. Havia planejado esperar até a véspera de Natal, porque Marianna adorava essa data, mas não consegui esperar. Não dava mais para esperar.


Suas mãos tremiam muito no momento em que abriu a caixinha para mostrar a Gina o lindo diamante brilhante e muito bem lapidado sobre um anel de noivado.


- Eu ia propor casamento a ela hoje à noite, e ela aceitaria. Nós nos amávamos. O que aconteceu foi... - Com todo o cuidado, tornou a fechar a caixa com a jóia e a recolocou no bolso. - Foi um caso de roubo?


- Acreditamos que não. Há quanto tempo a conhecia?


- Seis meses, quase sete. - Olhou para Hermione assim que ela entrou, estendendo-lhe um copo d'água. - Obrigado... - Ele pegou o copo, mas não bebeu. - Foram os seis meses mais felizes da minha vida.


- Como vocês se conheceram?


- Através da Íntimo e Pessoal. Trata-se de uma agência de encontros.


- O senhor utiliza os serviços de uma agência de encontros? - perguntou Hermione, sem conseguir disfarçar a surpresa.


- Foi um impulso. - confirmou ele, encolhendo os ombros e soltando um suspiro. - Passo a maior parte do tempo no trabalho e não tenho muita chance de sair. Divorciei-me há dois anos e acho que me tornei mais nervoso com as mulheres a partir daí. A verdade é que nenhuma das mulheres que conheci desde o divórcio... nenhuma delas me provocou aquele “clique”. Certa noite eu vi o anúncio da agência de encontros e pensei: O que custa tentar? Mal não vai fazer.


Nesse momento, ele bebeu um pouco d’água, apenas um gole que fez a sua garganta se aliviar.


- Marianna foi a terceira das primeiras cinco escolhas que o sistema apresentou. Eu saí com as duas primeiras. Tomamos alguns drinques, mas ficou apenas nisso. Não encontrei nada nelas. Quando conheci Marianna, porém, encontrei tudo.


Ele fechou os olhos e lutou para manter o controle.


- Ela é tão... maravilhosa. - continuou. - Tem tanta energia e entusiasmo. Adorava o trabalho, o seu apartamento, e se empolgava muito com o grupo de teatro que freqüentava. Ela faz teatro amador, às vezes.


Gina reparou no jeito com que ele alternava o verbo no tempo passado e no tempo presente, indo e voltando. Sua mente estava tentando se acostumar com a realidade, mas ainda não estava pronta de todo para isso.


- E então vocês começaram a sair juntos. - acrescentou Gina, incentivando-o a falar.


- Sim. Combinamos de nos encontrar para alguns drinques, apenas drinques, para nos conhecermos melhor. Acabamos indo jantar, continuamos juntos e depois emendamos com um café, já quase de manhã. Falamos muito, durante muitas horas. Nenhum de nós reparou em mais ninguém durante toda a noite. Tudo se resumia a nós dois, apenas nós dois.  


- E ela se sentia do mesmo modo que você?


- Sim. Mas resolvemos ir devagar. Mais alguns jantares, idas ao teatro. Nós adorávamos teatro. Começamos a passar as tardes de sábado juntos. Íamos a uma matinê, a um museu ou simplesmente dávamos uma caminhada. Fomos até a cidadezinha em que ela nasceu para eu conhecer a sua família. No feriado de Quatro de Julho ela conheceu a minha, pois a levei até lá. Minha mãe nos preparou um jantar.


Seus olhos saíram de foco e se fixaram em algum ponto distante e indeterminado que só ele conseguia ver.


- Ela não estava saindo com mais ninguém durante esse período?


- Não. Havíamos feito um trato a respeito disso.


- Sabe dizer se alguém a estava importunando, um ex-namorado, um antigo amante? O ex-marido?


- Não, tenho certeza de que ela teria me contado se isso estivesse acontecendo. Conversávamos a respeito de tudo, o tempo todo. Não tínhamos segredos um com o outro. - Seus olhos pareceram clarear um pouco e o tom castanho deles se tornou duro como cristal. - Por que a senhora perguntou isso? Ela? Marianna... o assassino a... Deus do céu! - Largada sobre o joelho, sua mão formou uma bola, com os punhos bem fechados. - Ele a estuprou antes, não foi? O canalha filho-da-puta a estuprou. Eu devia estar com ela naquele momento. - Atirou o copo descartável longe com fúria, fazendo com que a água se espalhasse pelo chão, e então se levantou subitamente. - Eu deveria estar com ela naquele momento. Nada disso jamais teria acontecido se eu estivesse com ela.


- E onde você estava, Jerry?


- O quê?!


- Onde estava ontem, entre nove e meia e meia-noite?


- Acho que eu... - Parou de falar, levantando a mão em um gesto impotente e fechando os olhos em seguida. Por três vezes inalou e exalou, de forma compassada. Então tornou a abrir os olhos, que continuavam límpidos. - Está certo. A senhora precisa se certificar de que não fui eu, para poder então descobrir quem foi. Tudo bem. É por ela.


- Exato. - Observando-o com atenção, Gina sentiu uma nova onda de pena dele. - Como você diz, é por ela.


- Eu estava em casa, no meu apartamento. Trabalhei um pouco, fiz algumas ligações pelo tele-link, e então fiz algumas compras de Natal on-line. Tornei a confirmar as reservas para o jantar de hoje à noite porque estava nervoso. Queria... - pigarreou para limpar a garganta. - Eu queria que fosse uma noite perfeita. Depois liguei para a minha mãe. - Levantando as mãos, esfregou-as com força sobre o rosto. - Precisava contar as novidades para alguém. Minha mãe adorou a notícia e ficou feliz, muito empolgada. Ela era louca por Marianna. Creio que já devia passar de dez e meia a essa altura. A senhora pode verificar os registros do meu tele-link, mexer no meu computador, qualquer coisa que precise investigar.


- Certo, Jerry.


- Tenente, a senhora já... A família dela, eles já sabem?


- Sim, eu falei com os pais dela.


- Preciso ligar para eles. Provavelmente vão querer que ela vá para casa. - Seus olhos tornaram a ficar rasos d'água e transbordaram, mas ele continuou a olhar fixamente para Gina enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto. - Vou levá-la para casa.


- Vou providenciar para que ela seja liberada o mais depressa possível. Quer que entremos em contato com mais alguém?


- Não. Tenho que dar a notícia aos meus pais. Preciso ir. - Ele se virou em direção à porta e pediu, sem olhar para trás: - Encontre quem fez isso, tenente. Descubra quem a atacou dessa forma.


- Farei isso. Ahn, Jerry, uma última pergunta.


- Diga. - Acabou de enxugar o rosto com as mãos e se virou na direção de Eve.


- Marianna tinha uma tatuagem?


- Marianna? - Ele deu uma risada curta que mais pareceu um soluço lhe arranhando a garganta. - Não. Ela era do tipo conservadora. Não usava nem mesmo tatuagens temporárias.


- Tem certeza disso?


- Éramos amantes, tenente. Estávamos apaixonados. Eu conhecia bem o corpo dela. Conhecia também a sua mente e o seu coração.


- OK. Obrigada. - Esperou até que ele saísse, e não disse nada enquanto não ouviu a fechadura se fechar com um clique suave atrás dele. - Quais são as suas impressões, Hermione?


- O pobrezinho está com o coração em frangalhos.


- Concordo. Só que tem gente que mata a pessoa que ama. Mesmo com os registros do tele-link, o álibi dele não é dos melhores.


- Ele não se parece nem um pouco com Papai Noel.


Gina sorriu de leve.


- Pois eu garanto, Hermione, que a pessoa que a matou também não vai se parecer com o bom velhinho. Se fosse esse o caso, garanto que ele não ficaria tão feliz em posar para a câmera. Enchimentos na barriga, lentes de contato, maquiagem, barba e peruca. Coloque tudo isso e qualquer um vai se parecer com Papai Noel. - Não foi ele, avaliou Gina. No momento, porém, ela só podia contar com a intuição. - Vamos verificar o lugar onde ela trabalhava para encontrar os seus amigos e possíveis inimigos.


 


 


Amigos, pensou Gina mais tarde, eram o que Marianna parecia possuir em grande quantidade. Inimigos, pelo visto, nenhum.


A imagem que começou a aparecer era a de uma mulher feliz, extrovertida, que gostava do trabalho e era muito chegada à família, embora curtisse o ritmo e a agitação da cidade grande. Tinha um grupo fechado de amigas, um fraco por compras e um profundo amor pelo teatro. De acordo com todas as fontes pesquisadas, tinha um relacionamento estável, exclusivo e feliz com Jeremy Vandoren.


Estava dançando no ar de tanta felicidade.


Todos que a conheciam a adoravam.


Tinha um coração aberto e confiante.


Enquanto dirigia de volta para casa, Gina deixou que as declarações dos amigos e colegas ecoassem em sua cabeça. Ninguém via defeito algum em Marianna. Nenhuma das pessoas fizera um comentário irônico ou insinuara alegria pela perda, como algumas vezes acontecia com os vivos em relação aos mortos. No entanto, alguém não concordava com nada daquilo, alguém que a matara de forma fria e calculada, muito cuidado e, se o brilho nos olhos do assassino servia de indicação, uma espécie de alegria também.


Meu Verdadeiro Amor.


Sim... pelo visto, alguém a amara tanto que a matara. Gina sabia que aquele tipo de amor existia, crescia e se inflamava, até supurar. Ela mesma já recebera aquele tipo de sentimento de alguém, essa emoção quente e distorcida. E sobrevivera àquilo, lembrou a si mesma, ligando o tele-link.


- Já terminou o relatório do exame toxicológico de Marianna Hawley, Quim?


O rosto com ar sofrido do chefe do laboratório, tão familiar a Gina, encheu a tela.


- Você sabe como as coisas ficam congestionadas por aqui na época das festas de fim de ano, Gina. Todo mundo se atropelando de um lado para outro, inclusive os técnicos, que ficam perambulando por aí com essa história de Natal e Chanuká, em vez de trabalhar.


- Sei, estou morrendo de pena de você, Quim. Agora eu quero o relatório.


- E eu quero férias! - Resmungando, ele se virou de lado e digitou algo no computador. - Ela tomou um tranqüilizante. Remédio meio fraco, desses que são vendidos sem receita. Considerando o seu peso, a dose não fez mais do que deixá-la meio grogue por dez ou quinze minutos.


- Tempo suficiente. - Murmurou Gina.


- Tudo indica que a droga foi injetada por uma seringa de pressão, na parte superior do braço direito. Provavelmente ela sentiu como se tivesse tomado meia dúzia de comprimidos de Zombie. O resultado foi tonteira, desorientação, possível perda temporária da consciência e fraqueza muscular.


- Certo. Algum vestígio de sêmen?


- Não, nem um soldadinho sequer. Ou ele usou camisinha, ou o espermicida dela matou todos. Precisamos de outros exames para determinar com certeza. O corpo foi coberto por um spray desinfetante. Há traços da substância em sua vagina também, o que ajudaria a matar alguns dos soldadinhos. Não havia nada do lado de fora. Ah, e tem mais um detalhe... A maquiagem dela não foi feita com os produtos encontrados em sua casa. Ainda não estamos com o resultado final, mas o laudo preliminar indica que são produtos feitos unicamente com ingredientes naturais, o que significa que custam uma nota preta. É bem provável que o assassino tenha levado a maquiagem com ele ao entrar no apartamento.


- Consiga as marcas desses produtos para mim o mais depressa que puder. Essa é uma boa pista. Bom trabalho, Quim.


- Sim, sim. Boas festas para você...


- O mesmo para você, Cabeção. - murmurou ela depois de desligar. Mexendo os ombros para aliviar a tensão que se instalara neles, seguiu em frente e entrou pelos portões de ferro de sua casa.


Dava para ver as luzes das janelas brilhando através da escura noite de inverno, janelas altas, em arco, ladeadas por torres grandes e pequenas, e também a escadaria em curva do primeiro andar.


Lar, pensou ela. Aquele lugar se tornara o seu lar por causa do homem que era dono de tudo aquilo. O homem que a amava. O homem que colocara uma aliança no seu dedo, como Jeremy pretendia fazer com Marianna. Girando a aliança com o polegar, ela estacionou o carro diante da porta principal.


Ela era tudo para ele, foi o que Jerry dissera. Menos de um ano atrás, ela não teria compreendido essa expressão. Agora compreendia.


Continuou sentada no carro por um instante, e então passou as duas mãos pelo cabelo já muito embaraçado. A dor do rapaz a comovera. Aquilo era um erro: não ajudaria em nada, e talvez até atrapalhasse as investigações. Gina precisava deixar a emoção de lado, bloquear da sua lembrança a devastação emocional que sentira por Jerry quando ele desmoronou em seus braços.


O amor nem sempre vencia, lembrou a si mesma. A justiça, porém, poderia vencer, se ela fosse boa o bastante. Saltou do carro, deixou-o no mesmo lugar em que estacionara e começou a subir os degraus da escadaria da frente. No minuto em que entrou, tirou o casaco de couro e o pendurou de forma displicente no elegante pilar do primeiro degrau da escada em curva. Moody surgiu das sombras e ficou parado, muito alto e magro, com os olhos escuros e um ar de desaprovação no rosto pálido.


- Tenente... - cumprimentou ele.


- Deixe meu carro exatamente onde eu o estacionei. - avisou Gina e subiu as escadas.


Ele fungou bem alto, fazendo com que uma grande quantidade de ar fosse sugada por suas narinas, antes de dizer:


- A senhora recebeu várias mensagens.


- Isso pode esperar. - Continuou subindo os degraus e arquitetou uma fantasia onde entravam uma chuveirada bem quente, um cálice de vinho e um cochilo de dez minutos.


O mordomo tornou a chamar por ela, em voz alta, mas Gina se recusou a responder.


- Não enche. - disse baixinho, com ar distraído, e então abriu a porta do quarto.


Tudo o que parecia murcho dentro de Gina floresceu de repente.


Harry estava em pé no closet, sem camisa, com os maravilhosos músculos das costas largas flexionando-se com sutileza enquanto procurava por uma camisa limpa. Ele se virou, e a imagem do seu rosto másculo atingiu-a em cheio. A boca curva de poeta sorriu e os olhos verdes em tom muito forte se iluminaram quando ele lançou para trás a juba gloriosa de cabelos muito pretos.


- Olá, tenente.


- Eu achava que você só iria chegar em casa daqui a umas duas horas.


Ele largou de lado a camisa que pegara. Ela não andava dormindo bem, reparou. Dava para ver pela fadiga e pelas sombras sob os olhos.


- A viagem foi bem rápida, sem incidentes.


- Foi mesmo. - Nesse instante ela já estava indo na direção dele, movendo-se depressa, tão rápido que não deu para perceber a súbita reação de surpresa e a imensa expressão de satisfação em seus olhos. Os braços dele já estavam abertos para recebê-la quando ela chegou diante dele.


Gina mergulhou fundo em seu perfume, percorreu-lhe as costas com as mãos firmes e então enterrou o rosto entre os cabelos dele, soltando um longo e solitário suspiro.


- Você estava realmente com saudades. - murmurou ele.


- Fique parado aqui só por um minuto, está bem?


- O tempo que você quiser.


O corpo dela encaixava no dele; de algum modo eles se completavam, como duas peças de um quebra-cabeça que se moldam e ajustam uma à outra, formando uma imagem única. Naquele instante lembrou como Jeremy Vandoren mostrara a ela o anel que comprara e a cintilante promessa que havia nele.


- Eu amo você. - Foi um choque sentir as lágrimas presas na garganta, e ela teve de fazer um grande esforço para engoli-las de volta. - Sinto muito não lhe dizer isso mais vezes.


Ele percebeu que ela prendia o choro. Sua mão subiu lentamente pelas costas dela até a nuca e massagearam levemente o ponto de tensão que sentiu ali.


- O que aconteceu, Gina?


- Depois eu conto. - Sentindo-se mais forte, ela se afastou e emoldurou o rosto dele com as mãos. - Estou tão contente por ver você. E tão contente por você estar em casa. - Os lábios dela se curvaram em um sorriso e, ao mesmo tempo, inclinou a cabeça e beijou-o.


Gina sentiu um calor, uma sensação de boas-vindas e o constante clima de paixão entre eles, que jamais parecia ser saciado. Por tudo isso, sentindo-se protegida por tais sentimentos, ela conseguiu afastar da mente todo o resto por algum tempo.


- Você estava trocando de roupa? - perguntou ela, sussurrando junto aos lábios dele.


- Estava, mas... Hummm. Faça mais um pouquinho disso. - pediu ele e mordeu de leve o lábio inferior dela, até senti-la estremecer.


- Pois eu acho que mudar de roupa é uma perda de tempo. - Para provar seu ponto de vista, deixou a mão escorregar entre os dois e começou a abrir as calças dele.


- Você está com toda a razão. - Abrindo a fivela do coldre que ela usava na lateral do tórax, jogou-o longe. - Adoro desarmar você, tenente.


Em um movimento ágil, que fez a sobrancelha dele se erguer de surpresa, ela girou o corpo e o pressionou de encontro à porta do closet, afirmando:


- Não preciso de uma arma para subjugar você, meu chapa.


- Então prove o que diz.


Ele já estava totalmente excitado quando a mão dela envolveu-lhe o membro. O verde dos seus olhos adquiriu um tom mais profundo, e luzes perigosas começaram a dançar dentro deles.


- Você não anda usando as suas luvas.


Ela sorriu e começou a deslizar os dedos gelados para a frente e para trás por todo o comprimento dele.


- Isso é uma reclamação?


- Não, de jeito nenhum. - A respiração dele estava entrecortada. De todas as mulheres que conhecera, ela era a única que o deixara sem fôlego com tão pouco esforço. Deslizou as mãos ao longo do corpo dela, até cobrir-lhe os seios, e em seguida passou a ponta dos polegares de leve sobre os mamilos para só então lhe abrir os botões da blusa.


Ele a queria por baixo dele.


- Venha para a cama. - convidou-a.


- Tem algo errado em ficarmos aqui? - Ela abaixou a cabeça e mordeu-lhe o ombro. - Tem algo errado em fazermos agora?


- Por mim, não há nada errado. - Dessa vez ele se moveu mais depressa, colocando o pé atrás do dela e fazendo com que Gina perdesse o equilíbrio; então os dois tombaram no chão. - Só que sou eu que vou subjugar você e não o contrário.


Sua boca sugou-lhe um dos seios com sofreguidão. As palavras dela ficaram presas em sua garganta, imagens explodiram em seu cérebro e seus quadris se arquearam, buscando-o.


Como percebia com freqüência, ele a conhecia melhor do que ela mesma. Naquele instante ela precisava se aquecer, carecia de um fluxo potente de calor onde pudesse afogar o que estava perturbando-a por dentro. Calor era algo que ele podia lhe fornecer, e ofereceria esse prazer em grandes ondas, para ambos usufruírem.


Gina era magra. O peso que perdeu durante o período de recuperação do ataque que sofrerá fazia falta à sua silhueta e ela precisava recuperar cada grama. Porém, ele sabia que ela não desejava gestos suaves naquele momento. Então, excitou-a de forma implacável e incessante, até deixá-la sem ar, com o coração martelando contra a boca errante e as mãos ávidas.


Ela se contorcia por baixo dele, as mãos agarrando-o pelos cabelos, o imenso diamante em forma de gota que ele lhe dera mergulhado no profundo vale entre os montes que ele explorava com os lábios.


Harry começou a lambê-la devagar e foi descendo pelo tórax, sobre as costelas, sobre a barriga firme e reta, cravando os dentes nos quadris, fazendo-a corcovear. Arriou-lhe ainda mais as calças, expondo os suaves pêlos encaracolados entre as coxas.


Quando tornou a alcançá-la, agora com a língua, acariciando-a e penetrando-a, o orgasmo dela veio como a força de um raio. Seu sangue circulava rápido, provocando um leve suor na pele, como que orvalho. Ela estava com metade do corpo dentro do closet, impregnada pelo perfume dele e presa em sua glória.


Sentiu os dedos dele apertando-lhe os quadris com força, elevando o seu corpo e parecendo invadi-lo. Seus gemidos fracos ecoaram no quarto quando ele começou a excitá-la novamente. Sentiu como se estivesse em pleno vôo e nada mais lhe restava senão a necessidade urgente de se mesclar em um só corpo com ele.


Ela se lançou para a frente, buscando-o, sussurrando o seu nome, ofegante, enquanto as suas mãos ágeis deslizavam dos seus ombros e apertavam-lhe as costas, ao mesmo tempo que as pernas se elevavam para enganchá-lo pela cintura.


Harry deslizou lentamente para dentro dela, em um golpear suave. O corpo dele estremeceu uma vez, quando ela apertou com força seu membro, aprisionando-o ao mesmo tempo que se sentia igualmente prisioneira. Harry abocanhou os lábios de Gina com sofreguidão, alimentando-se, enquanto ela movimentava os quadris para cima e para baixo, estimulando-o.


Continuaram naquele ritmo rápido e feroz, com os olhos fixos um no outro. Para a frente, para trás e novamente para a frente, um respirando o ar do outro. Cada vez mais colados, sentindo o ritmo molhado de carne se esfregando em carne.


Gina notou o instante em que os olhos dele pareceram ficar opacos, pouco antes de ele golpeá-la por dentro uma última vez, com a força de um aríete, fazendo-a entrar em erupção e se desfazer por baixo dele. Quando ele abaixou a cabeça e apertou o rosto de encontro à sua garganta, ela mergulhou de cabeça entre os seus cabelos, inspirando mais uma vez o seu cheiro viril.


- É bom estar em casa. - murmurou ele.


 


 


Ela tomou a sua ducha, o cálice de vinho, e então lançou-se ao que considerava a última fase da decadência total: jantar na cama em companhia do marido.


- Conte-me tudo. - pediu ele depois de esperar que ela acabasse de comer e relaxasse um pouco. Servindo-lhe mais um cálice de vinho, ele percebeu o instante em que as sombras voltaram aos seus olhos.


- Não quero trazer o meu trabalho para dentro de casa.


- Por que não? - Ele sorriu e completou o próprio cálice. - Eu faço isso.


- Com você é diferente.


- Querida Gina. - Ele passou o dedo indicador pela covinha que havia em seu queixo. - Nós dois nos definimos pelo trabalho que realizamos. Você não quer nem pode deixar a sua vida do lado de fora, como eu também não posso, porque o nosso trabalho está dentro de nós.


Ela se recostou nos travesseiros, olhou para cima, pela clarabóia de vidro por onde se via o escuro céu de inverno... E contou tudo a ele.


- Foi cruel. - disse ela quando terminou o relato. - A questão, porém, não é essa. Já vi coisas ainda mais cruéis. Ela era uma jovem inocente... Tive essa impressão ao ver a decoração de sua casa, o seu jeito de caminhar, o seu rosto. Não sei explicar, mas havia um ar de inocência nela. Sei que o problema também não é esse. A inocência muitas vezes é destruída. Sei bem como é isso... não ser mais inocente; eu nem me lembro de ter sido inocente algum dia. Mas sei o que significa ser destruída.


Praguejando baixinho, ela colocou o vinho de lado.


- Gina. - Ele a tomou pela mão e esperou até que ela virasse os olhos para ele. - Um estupro seguido de assassinato talvez não seja a melhor maneira de você retomar o seu trabalho.


- Eu sei que poderia ter passado o caso para alguém. - Sentia vergonha por admitir isso, tanto que tornou a desviar o olhar. - Se eu soubesse, acho que nem mesmo teria respondido ao chamado.


- De qualquer modo, você ainda pode entregar o caso para outro investigador da sua divisão. Ninguém a culparia por isso.


- Eu me culparia. Agora eu já a vi. Agora eu a conheci. - Gina fechou os olhos, mas só por um instante. - Ela agora é uma das minhas mortas. Não posso virar-lhe as costas.


Gina pressionou as têmporas por entre os cabelos e se ordenou disciplina e foco, antes de continuar:


- Ela pareceu tão surpresa e feliz ao abrir a porta. Como uma criança numa situação dessas. Puxa vida, que legal, um presente! Entende o que eu quero dizer?


- Sim.


- E o jeito com que o canalha olhou para a câmera antes de entrar no apartamento. O sorriso largo, a piscadela de cumplicidade. E depois na saída, executando uma pequena dança da vitória rumo ao elevador.


Seus olhos soltaram fagulhas quando ela descreveu a cena e o corpo se empinou, colocando-se reto e alerta sobre a cama. Já não eram apenas os olhos de uma policial agora, pensou Harry, mas os de um anjo vingador.


- Não havia compaixão, só prazer em estado puro. - acrescentou. Tornou a fechar os olhos, trazendo a imagem de volta de forma clara e, quando tornou a abri-los, o fogo aumentara e se mantivera estável, ardendo sem parar. - Fiquei enojada com aquilo.


Aborrecida consigo mesma, tornou a pegar o cálice de vinho e tomou mais um gole.


- Tive que dar a notícia aos pais dela. Tive que olhar para os despedaçar, tentando entender o porquê de o seu mundo ter desabado à sua volta. Ela era uma mulher simpática, uma pessoa boa e simples que estava feliz com a sua vida, prestes a ficar noiva, e abriu a porta para alguém que é o símbolo da inocência. E agora está morta.


Como Harry a conhecia bem, tomou-lhe a mão e abriu o punho que ela cerrara, dizendo:


- Você não é uma policial de menos valor pelo fato de se comover com isso.


- Muitas das vítimas nos comovem demais, e a distância que devemos manter acaba desaparecendo. Às vezes eu sinto como se estivesse chegando a um limite, sem ser mais capaz de ver outra pessoa morta na minha frente.


- E já passou pela sua cabeça tirar uma licença do trabalho? - Quando as sobrancelhas dela se uniram em uma expressão de estranheza, ele simplesmente sorriu. - Não, é claro que não. Você vai elucidar esse caso e também o próximo, porque esse é o seu trabalho. Essa é quem você é.


- Talvez eu enfrente outra vítima mais cedo do que gostaria. - Enlaçando os dedos entre os dele, perguntou: - Será que ela era a única, Harry? O amor verdadeiro dele? Ou existem mais onze pela frente?


 


 


 


N/A: Pessoal, estou sem tempo nenhum para responder aos comentários, agora que a faculdade recomeçou e eu estou em um novo emprego a correria é geral, saio de casa as sete horas e somente chego onze e meia, então me desculpem, mas dessa vez não vou responder aos comentários. ABRAÇOS.


Agradecimentos especiais:


 


ANA EULINA


BIANCA


CASSIEBITCH


 

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