CAPÍTULO 01



CAPÍTULO 01


 


Ela sonhava com a morte.


A luz vermelha com aparência de suja que vinha do anúncio em néon pulsava de encontro à janela empoeirada como um coração zangado. Seus reflexos transformavam as poças de sangue que brilhavam no chão de claro em escuro, claro em escuro, fazendo o aposento imundo surgir em nítidos contrastes para então mergulhá-lo novamente nas sombras.


Ela se encolheu no canto, uma menina magrinha com cabelos vermelhos muito embaraçados e olhos imensos da cor do uísque que ele bebia quando conseguia algum dinheiro. A dor e o choque haviam feito seus olhos ficarem vidrados e sem vida, enquanto a sua pele adquiriu um tom acinzentado típico dos cadáveres. A menina olhava, hipnotizada pela luz piscante e pela forma com que ela rebatia nas paredes, no chão... sobre o corpo dele.


Ele, esparramado ali no piso arranhado, parecendo nadar no próprio sangue. Pequenos sons primais retumbavam na garganta dela.E em sua mão uma faca estava ensangüentada até o cabo.


Ele estava morto. Ela sabia que ele estava morto. Dava para sentir o cheiro forte e quente, o fedor do sangue que continuava a escorrer e enchia o ar abafado. Ela era uma criança, apenas uma criança, mas a porção animal dentro dela reconhecia o cheiro e, ao mesmo tempo, se regozijava com ele.


Sentia uma dor indescritível no lugar em que ele lhe quebrara o osso do braço. O espaço entre suas pernas ardia e um líquido escorria ali de dentro, devido ao último estupro que sofrerá. Nem todo o sangue espalhado à sua volta era dele. Mas ele estava morto. Tudo acabara. Ela estava salva.


Então ele moveu a cabeça lentamente, como a de uma marionete, e a dor dela se transformou em terror. Os olhos dele se fixaram nos dela, que tentou balbuciar algo e arrastou o corpo mais para trás, encolhendo-se no canto para onde se arrastara, tentando escapar dele. E então a boca morta abriu um sorriso.


- Você jamais vai se livrar de mim, garotinha. Sou uma parte de você. Sempre serei. Estarei dentro de você. Para sempre. E agora papai vai ter que castigá-la mais uma vez.


Ele ergueu o corpo e ficou de quatro no chão. O sangue vinha em gotas grossas que faziam barulho ao pingar do rosto e das costas, formando um filete repulsivo que escorria dos ferimentos e lhe descia pelos braços. Quando conseguiu se colocar em pé e começou a cambalear na direção da menina, deixando um rastro vermelho no chão, ela gritou.


E ao gritar, acordou.


Gina cobriu o rosto com as mãos e em seguida apertou uma delas de encontro à boca para abafar os gritos desesperados que teimavam em lhe sair garganta afora como quentes cacos de vidro. Sua respiração ficou tão pesada que a cada expiração ela franzia o cenho com a dor que lhe atravessava o peito. O medo a envolveu e lançou um bafo gelado que lhe desceu espinha abaixo, mas ela o dominou. Já não era mais uma criança indefesa e sim uma mulher adulta, uma policial que devia proteger e defender, mesmo quando a vítima era ela própria.  Já não estava sozinha em um horrível quarto de hotel, mas em sua própria casa. A casa de Harry... Harry.


Ao se concentrar nele, só de pensar em seu nome, ela começou a se acalmar.


Decidira dormir na poltrona reclinável do escritório de sua casa porque ele estava fora do planeta. Ela jamais conseguia repousar direito na cama de casal, a não ser que ele estivesse ao seu lado. Os pesadelos aconteciam raramente, quase nunca na verdade, quando ele dormia ao seu lado. Mas voltavam com freqüência quando ele não estava. Ela odiava essa área de fraqueza e dependência em sua vida, e esse ódio era quase tão grande quanto o amor que desenvolvera por Harry.


Virando-se na poltrona, buscou conforto pegando o gato cinza e gordo que estava encolhido ao seu lado, olhando para ela naquele instante com olhos estreitos e bicolores. Galahad já se acostumara aos pesadelos e parecia não se importar de ser acordado por eles às quatro da manhã.


- Desculpe. - sussurrou ela, esfregando o rosto em seu pêlo macio. - Sou uma idiota mesmo. Ele morreu e nunca mais vai voltar. Os mortos não voltam. - Suspirou e olhou para o breu. - Eu devia saber disso.


Ela convivia com a morte, trabalhava com ela, rodeava seu mundo com ela, dia após dia, noite após noite. Em pleno mês de dezembro do ano 2058, as armas já haviam sido banidas e a ciência aprendera a prolongar a vida muito além dos cem anos. O homem, porém, ainda não deixara de matar seu semelhante. O trabalho dela era ficar ao lado dos mortos.


Em vez de se arriscar a ter outro pesadelo, Gina preferiu se levantar da poltrona e ordenou às luzes que se acendessem. Suas pernas já estavam mais firmes e seu pulso quase voltara ao normal. A dor de cabeça enjoada que sempre surgia depois de pesadelos como aquele ia acabar cedendo, lembrou a si mesma.


Na esperança de um desjejum antecipado, Galahad pulou da poltrona junto com a dona e se entrelaçou por suas pernas enquanto ela seguia em direção à cozinha.


- Primeiro eu, meu chapa. - avisou Gina, programando o AutoChef para que ele preparasse o café automaticamente, enquanto ela colocava uma tigela de comida para gato no chão. O animal atacou o alimento com muita energia, como se aquela fosse a sua última refeição, e a deixou olhando pensativa pela janela.


A vista dali era uma imensa extensão de gramado, em vez da rua, e não havia tráfego aéreo. Era como se ela estivesse sozinha na cidade. Privacidade e quietude eram dádivas que um homem com a fortuna de Harry podia comprar com facilidade. Ela sabia, no entanto, que além dos lindos canteiros, do outro lado do alto muro de pedra, a vida corria. E a morte a seguia de forma implacável.


Aquele era o seu mundo, pensou naquele momento, enquanto sorvia o café forte de boa qualidade e massageava o local de uma contusão recente que sofrerá no ombro e ainda causava certa rigidez. Assassinatos mesquinhos, grandes esquemas, acordos desonestos e gritos de desespero. Ela conhecia mais sobre essas coisas do que sobre o colorido carrossel de dinheiro e poder que girava em torno do seu marido.


Em momentos como aquele, em que se via sozinha e com o astral em baixa, ela se perguntava como foi que eles acabaram ficando juntos, a policial que era um exemplo de retidão, uma devota firme das linhas definidas pela lei e o seu exuberante irlandês que se enrascara nessas mesmas linhas e as ultrapassara durante toda a sua vida. Um assassinato provocara o primeiro contato entre eles. Os dois eram almas perdidas seguindo rotas diferentes para sobreviver; porém, a despeito da lógica e do bom senso, haviam encontrado uma a outra.


- Nossa, eu estou com saudades dele. Isso é ridículo. - Aborrecida consigo mesma, saiu da janela pensando em tomar uma ducha e se vestir. A luz do tele-link começou a piscar, indicando uma chamada que estava sendo feita naquele exato momento, mas o aparelho não emitiu som algum. Sem dúvida a respeito de quem poderia estar chamando àquela hora, Gina atendeu a ligação e desbloqueou a tecla mute.


O rosto de Harry apareceu na tela. E que rosto, pensou ela, observando uma de suas sobrancelhas se erguer. Ele era poeticamente belo, com cabelos negros que lhe emolduravam o rosto, pendendo, pesados e lisos, quase até a altura do ombro. Sua boca era sagaz, perfeitamente esculpida, e as maçãs do rosto fortes sob os olhos muito azuis. Mesmo depois de quase um ano, a simples imagem daquele rosto fazia o seu sangue acelerar.


- Querida Gina... - Sua voz era suave como uísque irlandês. - Por que não está dormindo?


- Porque estou acordada.


Ela sabia o que ele vira em seu rosto ao analisá-lo. Ela não conseguia esconder quase nada de Harry. Ele certamente já notara as olheiras de uma noite maldormida e a palidez do seu rosto. Sentindo-se desconfortável, ela encolheu os ombros e passou a mão pelos cabelos curtos e despenteados.


- Vou para a Central de Polícia mais cedo hoje. - informou ela. - Tenho muita papelada para organizar.


Ele reparara em mais coisas do que ela supunha. Ao olhar para ela notara a sua força, a sua coragem e a sua dor. Vira também na estrutura firme do seu corpo, na boca com lábios carnudos e nos olhos fixos cor de conhaque um tipo de beleza que ela obviamente não reconhecia em si mesma. E como também notou o ar de cansaço que a envolvia, ele mudou de planos.


- Volto para casa hoje à noite.


- Pensei que você fosse ficar mais um ou dois dias aí em cima.


- Volto para casa hoje à noite. - repetiu ele, sorrindo para ela. - Estou com saudades, tenente.


- É?... - Embora considerasse uma tolice completa o calorzinho que sentiu ao ouvir isso, ela devolveu-lhe o sorriso. - Talvez eu consiga algum tempo para ficarmos juntos quando você voltar.


- Pois faça isso.


- Foi por esse motivo que você ligou? Para me avisar que ia voltar antes do previsto?


Na verdade ele pretendia deixar uma mensagem para ela avisando-a de que ainda ia demorar mais um ou dois dias, para em seguida tentar convencê-la a se juntar a ele a fim de passarem o fim de semana no Olympus Resort. Mas simplesmente sorriu para ela, completando:


- Só queria informar à minha esposa sobre meus planos de viagem. Volte para a cama, Gina.


- Sim, talvez eu faça isso. - Ambos, porém, sabiam que tal coisa não aconteceria. - Vejo você logo mais à noite. E... Harry?


- Sim?


- Eu também estou com saudades. - Ela ainda precisava respirar fundo antes de dizer coisas como aquela. Desligou e ficou com a imagem do sorriso dele na mente. Sentindo-se mais firme, levou o café com ela enquanto se preparava para mais um dia de trabalho.


 


 


Gina não saiu exatamente de mansinho, mas tentou não fazer ruídos. Ainda não eram nem cinco da manhã, mas ela sabia que Moody estava por ali, em algum lugar. Preferia, sempre que possível, evitar o mordomo sargentão que trabalhava na casa. Talvez não existisse termo melhor para descrever o homem que sabia de tudo o que acontecia na residência, cuidava de tudo e metia o nariz comprido o tempo todo em todas as coisas que Gina considerava assuntos pessoais.


Desde que o último caso que ela resolvera os colocara mais próximos do que qualquer um dos dois gostaria, Gina suspeitava que ele a estava evitando tanto quanto ela a ele, e isso já estava acontecendo havia duas semanas.


Lembrando toda a história, esfregou a mão de forma distraída em um ponto logo abaixo do ombro. O lugar ainda incomodava um pouco de manhã ou depois de um longo dia de trabalho. Receber um golpe com a carga máxima da própria arma era uma experiência que não pretendia repetir nesta nem em qualquer outra vida (Ver Vingança Mortal). Pior do que isso foi a forma com que Moody enfiara remédios por sua goela abaixo, quando ela ainda estava fraca demais para dar um chute no traseiro dele.


Gina fechou a porta atrás de si, respirou fundo, inalando o ar frio de dezembro, e em seguida praguejou com violência. Ela havia deixado seu carro em frente à escadaria de entrada da casa, pois sabia que isso deixava Moody profundamente irritado. Ele, por sua vez, o levara para a garagem porque sabia que isso a deixava revoltada. Resmungando por não ter se lembrado de trazer o controle remoto para abrir a porta da garagem e mandar vir o carro, Gina caminhou em volta da casa, com as botas esmagando a grama congelada. As pontas das suas orelhas lhe provocavam fisgadas de frio e o nariz começou a escorrer.


Gina trincou os dentes com força e digitou o código no painel da porta com os dedos sem luvas, conseguindo então entrar na garagem limpíssima e maravilhosamente aquecida.


Havia dois níveis com veículos reluzentes, bicicletas motorizadas, motos aéreas e até mesmo um helicóptero muito pequeno para dois passageiros. Seu veículo verde-ervilha mais parecia um vira-latas pulguento no meio de galgos bem cuidados. Pelo menos era novo, lembrou a si mesma, enquanto se instalava por trás do volante. Além disso, tudo nele funcionava direito.


O motor deu partida como que por mágica. O som era suave e estável. Ao seu comando de voz, o calor começou a sair com suavidade através das grades frontais. O painel se acendeu, indicando a inspeção eletrônica de rotina, e em seguida uma voz suave comunicou a ela que todos os sistemas estavam operando bem. Ela não contaria a ninguém nem sob tortura, mas a verdade é que sentia falta dos caprichos e ranhetices do seu antigo carro.


Em velocidade baixa, saiu da garagem e seguiu pela alameda em curva, na direção dos portões de ferro. Eles se abriram para ela de par em par, de forma suave e silenciosa.


As ruas naquele bairro exclusivo eram limpas e sossegadas. As árvores do grande parque estavam cobertas por uma fina camada de gelo brilhante, como uma malha de diamantes. Por trás das sombras, traficantes de drogas químicas e violentos cobradores de dívidas deviam estar encerrando os trabalhos da noite, mas naquela vizinhança havia apenas prédios de pedra, avenidas largas e a quietude que precede o amanhecer.


Ela já estava vários quarteirões longe de casa quando o primeiro anúncio luminoso surgiu, lançando luzes brilhantes e movimentos na noite. Papai Noel, com as bochechas vermelhas e um sorriso largo demais, o que imediatamente a fez imaginar um elfo gigantesco com overdose de Zeus, seguia pelo céu, atrás de suas renas, soltando ho-ho-hos escandalosos, ao mesmo tempo que avisava a população sobre quantos dias faltavam para o Natal.


- Sei, sei, já ouvi, seu gordo sem-vergonha. - disse e franziu o cenho, parada em um sinal vermelho. Jamais, em toda a sua vida, precisara se preocupar com as festas de fim de ano. Até agora. Nos anos anteriores, tudo o que tinha a fazer era encontrar qualquer coisinha ridícula para Luna e algo comestível para Neville.


Não havia mais ninguém em sua vida para quem embrulhar presentes.


Agora, que diabos ela poderia comprar para um homem que não apenas tinha todas as coisas, como também era dono da maioria das fábricas e montadoras que as produziam? Para uma mulher que preferia receber um soco a tirar uma tarde para compras, aquilo era um sério dilema.


O Natal, decidiu ela, enquanto Papai Noel continuava a apregoar a variedade de lojas e opções dos shoppings aéreos da BigApple, era um saco!


Mesmo assim, seu ânimo melhorou um pouco logo que ela alcançou o tráfego previsivelmente lento da Broadway. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, a festa parecia eterna ali. As passarelas rolantes estavam lotadas de pedestres, muitos deles bêbados, drogados ou ambos. Carrocinhas flutuantes que vendiam comida pareciam tremular no ar gelado em meio à fumaça de churrasquinhos diversos. Quando um ambulante conseguia um ponto naquela área, segurava-o com unhas e dentes.


Ela abriu a janela do carro um pouquinho e sentiu o aroma das castanhas cozidas, dos cachorros-quentes de carne de soja, de fumaça e da multidão de pessoas. Alguém repetia uma ladainha a respeito do fim do mundo que se aproximava. Um taxista apertava a buzina com força, colocando-se muitos decibéis acima das leis anti-poluição sonora, enquanto os pedestres se despejavam sobre a pista diante dos faróis do seu carro. Acima do nível da rua, os primeiros ônibus aéreos e alguns dirigíveis de propaganda anunciavam as muitas atrações da cidade.


Gina reparou o momento exato em que uma briga feroz teve início entre duas mulheres. Eram acompanhantes autorizadas, avaliou ela. Este era um eufemismo para o termo prostitutas e elas precisavam defender o seu território com a mesma ferocidade dos vendedores de comidas e bebidas. Gina pensou em dar uma parada e separá-las, mas a lourinha derrubou a ruiva alta com um soco e saiu correndo como um coelho assustado, misturando-se com a multidão.


Muito bem, aprovou Gina, quando viu a ruiva novamente em pé, balançando a cabeça ainda meio atordoada, enquanto despejava criativas obscenidades.


Tudo aquilo, pensou Gina com afeição, era Nova York.


Saiu do fluxo principal e virou, com certa tristeza, na relativa calma da Sétima Avenida, para seguir rumo ao centro. Ela precisava voltar à ação, pensou. As semanas em que ficara parada, recuperando-se, deixaram-na irritada e sentindo-se inútil. Fraca. Ela dispensara a última semana de licença médica e insistira em passar pelo exame que a liberaria para trabalhar.


Passou por pouco nos testes e tinha consciência disso.


O fato, porém, é que passara e estava de volta ao trabalho. Agora só faltava convencer o comandante a tirá-la de trás da mesa e enviá-la novamente para as ruas. Aí, então, seria uma mulher feliz.


Quando uma mensagem de rádio chegou, ela tentou não prestar atenção. Afinal, seu turno só ia começar oficialmente dali a três horas.


- Atenção unidades que estejam nas imediações: um código 1222 foi registrado na Sétima Avenida, número 6.843, apartamento 18-B. Ainda não há confirmação da ocorrência. Procurar o morador do apartamento 2-A. Atenção todas as unidades nas imediações da...


Gina atendeu antes mesmo de a emergência repetir o chamado.


- Emergência, aqui é a tenente Gina Weasley. Estou a dois minutos do local da ocorrência e respondendo ao chamado.


- Positivo, tenente Gina Weasley. Favor reportar-se assim que chegar ao local.


- Afirmativo. Câmbio final.


Ela parou junto ao meio-fio e deu uma olhada no prédio acinzentado, todo revestido de aço. Algumas janelas estavam acesas, mas ela notou que o décimo oitavo andar estava todo às escuras. Código 1222 significava denúncia anônima relatando briga doméstica. Gina saiu do carro e apalpou a lateral da cintura, por instinto, para se certificar de que a arma estava ali. Não se importava de enfrentar problemas logo cedo, mas não havia um policial sequer, vivo ou morto, que não detestasse resolver rixas domésticas.  


Nada agradava mais a um marido, mulher ou companheiro do mesmo sexo do que cair de pau em cima de um policial, um pobre coitado que chegava em sua casa só para tentar impedi-los de se matarem um ao outro por causa do dinheiro do aluguel, por exemplo.


O fato de ela se oferecer como voluntária para resolver uma encrenca como aquela era reflexo da sua insatisfação com o trabalho burocrático que vinha realizando. Gina subiu com agilidade o pequeno lance de escadas e tocou no apartamento 2-A. Exibiu seu distintivo quando um homem a atendeu, falando pela fresta da porta, e quase o esfregou nos olhos miúdos que apareceram quando ele a abriu.


- Algum problema por aqui? - perguntou ela.


- Não sei. A polícia ligou para cá. Sou o síndico, mas não sei de nada.


- Dá para notar. - Ele fedia a roupa suja e, inexplicavelmente, queijo. - O senhor poderia me levar até o apartamento 18-B?


- Para quê? Vocês da polícia têm um cartão mestre para abrir portas, não têm?


- Temos. Tudo bem. - Eve deu uma olhada nele rapidamente: baixinho, magricela, fedorento e apavorado. - Que tal me dar pelo menos algumas dicas a respeito dos ocupantes do apartamento?


- Mora apenas uma pessoa lá. Mulher, solteira. Divorciada ou algo assim. Discreta, está sempre na dela.


- São todas assim. - murmurou Gina. - Sabe o nome da moradora?


- Marianna Hawley. Tem uns trinta, trinta e cinco anos. Muito bonita. Mora aqui há uns seis anos. Nunca deu problemas. Escute, eu não ouvi nada, não vi nada, não sei de nada. São cinco e meia da manhã, droga. Se ela quebrou alguma coisa do apartamento, quero ser informado. Se não quebrou, o que ela fez não é da minha conta.


- Certo... - Gina nem teve tempo de dizer alguma coisa para a porta que se fechou na sua cara. - Volte para a sua toca, seu cara de fuinha. - Gina mexeu os ombros, exercitando-os ligeiramente, e atravessou o corredor na direção do elevador. Assim que entrou, pegou o comunicador. - Aqui é a tenente Gina Weasley. Cheguei ao local da ocorrência na Sétima Avenida. O síndico do prédio é um mané e já tirou o corpo fora. Torno a ligar assim que interrogar Marianna Hawlev, residente do apartamento 18-B.


- Precisa de reforço, tenente?


- No momento não. Weasley desligando.


Enfiando o comunicador no bolso de trás da calça, saiu no décimo oitavo andar. Com uma rápida olhada para o alto, reparou que as câmeras de segurança estavam no lugar e funcionando. O corredor parecia silencioso como uma igreja. Pelo tipo de decoração e pela localização do prédio, deduziu que a maioria dos moradores trabalhava em escritórios e pertencia à classe média. Poucos deles iriam se levantar da cama antes das sete da manhã. Tomariam o seu desjejum às pressas e sairiam correndo para pegar o primeiro ônibus aéreo ou o primeiro vagão de metrô em que conseguissem entrar. Os mais afortunados simplesmente se conectariam com o escritório para trabalhar a partir de casa mesmo.


Algumas mulheres levariam as crianças para a escola. Outras se despediriam do marido com um beijo e ficariam à espera do amante. Vidas comuns em um lugar comum.


Passou-lhe pela cabeça que havia grandes possibilidades de Harry ser o dono do prédio inteiro, mas não elaborou a idéia, pois já estava diante do apartamento 18-B. A luz de segurança estava verde. Desativada. Por instinto, saiu da frente da porta e esticou o braço para apertar a campainha. Não ouviu o som abafado que esperava e percebeu que o apartamento devia ser à prova de som. O que acontecia lá dentro ninguém ficava sabendo do lado de fora. Levemente irritada, pegou o seu cartão mestre e digitou um código para destrancar a fechadura eletrônica. Antes de entrar, gritou bem alto para alertar quem estivesse em casa. Nada pior, pensou, do que acordar alguém e vê-lo aparecer diante dela, assustado e com uma faca de cozinha ou uma arma de atordoar caseira.


- Sra. Hawley? Aqui é a polícia! Alguém ligou informando sobre problemas neste local. Acenda as luzes! - ordenou, e as lâmpadas da sala de estar iluminaram todo o aposento.


O ambiente era bonito e discreto. Cores suaves, estilo simples. No telão estava passando um filme antigo. Duas pessoas incrivelmente atraentes rolavam nuas sobre uma cama coberta com pétalas de rosa, gemendo de forma teatral.


Havia uma bonbonnière sobre a mesa, diante do sofá verde-acinzentado. Estava cheia até a boca com jujubas açucaradas. Castiçais prateados com velas vermelhas de várias alturas, todas acesas, estavam ao lado das balas, formando um belo conjunto. A sala toda cheirava a amora e pinho.


Gina notou de onde vinha o cheiro. Um lindo pinheirinho estava tombado de lado, diante da janela. Suas luzinhas piscantes e os rostinhos de anjo que serviam de enfeite estavam esmagados, e alguns galhos haviam sido quebrados. Pelo menos uma dúzia de caixas embrulhadas para presente estavam igualmente amassadas sob a árvore.


Gina pegou a arma e circulou pela sala, devagar.


Não havia outros sinais de violência, pelo menos ali. O casal na tela alcançara o clímax ao mesmo tempo, lançando gemidos guturais animalescos. Gina passou direto pelo telão onde eles estavam e parou para escutar com toda a atenção.


Ouviu música. Calma, alegre, monótona. Não identificou o nome da canção, mas sabia que era uma das insidiosas musiquinhas de Natal que tocavam em toda parte nas últimas semanas de dezembro.


Levantou a arma na direção de um corredor curto. Duas portas apenas, ambas abertas. Em um dos cômodos, viu uma pia, um vaso sanitário e a borda de uma banheira, todos em louça branca muito brilhante. Mantendo as costas grudadas na parede, deslizou devagar rumo à segunda porta, onde a música continuava a tocar sem parar.


Foi quando sentiu o cheiro de morte recente. Um aroma amargo e levemente adocicado. Escancarando a porta, viu de onde vinha. Entrou no quarto balançando o corpo para a direita e para a esquerda, com os olhos abertos e os ouvidos atentos. Sabia, porém, que estava sozinha com o que restara de Marianna Hawley. Mesmo assim, verificou o closet, olhou atrás das cortinas e saiu do quarto para fazer uma busca pelo resto do apartamento antes de baixar a guarda.


Só então se aproximou da cama.


O síndico do 2-A tinha razão, pensou. A mulher era muito atraente. Não deslumbrante, de parar o tráfego, mas tinha belas feições, cabelos castanho-claros e olhos verde-escuros. A morte ainda não tivera tempo de lhe roubar a beleza.


Seus olhos estavam surpresos, esbugalhados, como era comum em mortes violentas. Seu rosto pálido estava cuidadosamente maquiado com cores suaves. Seus cílios estavam pintados e a boca exibia tonalidade vermelho-cereja. Um ornamento estava preso ao seu cabelo, logo acima da orelha direita, uma arvorezinha brilhante com um pássaro emplumado dourado, pousado em um dos seus galhos.


Estava nua, a não ser pelo broche e pelo festão prateado artisticamente enrolado ao redor do seu corpo. Gina perguntou a si mesma, ao analisar a marca roxa em volta do pescoço, se o festão fora usado para estrangulá-la.


Havia outras marcas roxas nos pulsos e nos tornozelos, indicando que a vítima provavelmente fora amarrada e tivera algum tempo para se debater antes da morte. Na caixa de som instalada ao lado da cama, um cantor continuava a entoar a musiquinha, desejando a todos um feliz Natal.


Dando um suspiro, Gina pegou o comunicador.


- Emergência, aqui fala a tenente Gina Weasley. Temos um caso de homicídio.


 


 


- Que jeito terrível de começar o dia! - A policial Granger disfarçou um bocejo e analisou a vítima com olhos atentos e muita perícia. Apesar de ainda ser terrivelmente cedo, o uniforme de Hermione estava impecável, muito bem passado, e seus cabelos castanhos cortados bem curtos e retos estavam todos espantosamente no lugar.


A única coisa que indicava que ela fora rudemente arrancada da cama era o vinco do travesseiro na bochecha esquerda.


- Que jeito terrível de acabar o dia. - murmurou Gina. - O exame preliminar determinou que a morte ocorrera exatamente à meia-noite. - Moveu-se para o lado, a fim de deixar a equipe de legistas verificar os dados. - Tudo indica que a causa da morte foi estrangulamento. A ausência de outros ferimentos nos leva a crer que a vítima não começou a lutar para se defender até estar bem amarrada.


Com cuidado, Gina levantou o tornozelo esquerdo da morta e examinou a pele lacerada.


- Lesões vaginais e anais indicam que ela foi violentada sexualmente antes de ser morta. O apartamento é à prova de som. Ela deve ter se esgoelado.


- Mas eu não vi nenhum sinal de entrada forçada nem de luta na sala de estar, exceto pela árvore de Natal tombada. Ela parece ter deixado o assassino entrar deliberadamente.


Gina concordou, lançando um olhar de aprovação para Hermione.


- Bom olho o seu. Vá procurar o homem do apartamento 2-A, Hermione, e recolha os discos com as gravações do sistema de segurança deste andar. Vamos ver quem veio visitá-la.


- Agora mesmo!


- Coloque dois guardas para interrogar os vizinhos. - acrescentou Gina enquanto se encaminhava para o tele-link ao lado da cama. - E alguém, por favor, quer desligar essa droga de musiquinha?


- Parece-me que o seu espírito de Natal já está desligado, senhora! - Hermione apertou o botão do som com força, usando um dedo protegido por spray selante.


- Acho o Natal um pé no saco! Vocês já acabaram aqui? - quis saber ela, dirigindo-se à equipe de legistas. - Vamos virar o corpo antes de ensacá-lo.


O sangue descera para a parte de trás do corpo e se acomodara nas nádegas, conferindo-lhes um tom doentio de vermelho. A bexiga e os intestinos haviam se esvaziado com os estertores. Através da camada selante que cobria suas mãos, Gina sentiu a textura típica de boneco de cera que se instalara na pele.


- Isso aqui parece bem recente. - murmurou. - Hermione, grave esta imagem antes de descer. - Gina analisou a brilhante tatuagem na omoplata direita da vítima, enquanto Hermione chegava a câmera bem perto para gravá-la com detalhes.


- Meu Verdadeiro Amor. - Hermione apertou os lábios ao ler a mensagem com tinta vermelha tatuada em letras que pareciam ter sido feitas à mão sobre a pele muito branca.


- Acho que é uma tatuagem temporária. - Gina se inclinou mais, até o nariz quase encostar no ombro e cheirou o local. - Foi aplicada há bem pouco tempo. Vamos verificar que salão ela freqüentava.


- Uma perdiz numa pereira.


- O quê? - Gina se empertigou e levantou uma sobrancelha ao olhar para sua auxiliar.


- No cabelo da vítima, o prendedor colocado ali. No primeiro dia de Natal... - cantarolou Hermione, ao perceber que Gina continuava sem expressão alguma no rosto, informou: - É uma velha canção de Natal, tenente. O nome é “Os Doze Dias do Natal”. O autor envia ao seu verdadeiro amor um presente para cada dia, começando com uma perdiz numa pereira.


- Mas para que diabos alguém vai se interessar por um presente desses? O que se faz com uma perdiz numa pereira? Que presente idiota! - Uma terrível suspeita, porém, já se instalara em seu estômago. - Vamos torcer para que esta aqui seja o único amor verdadeiro do assassino. Entregue-me essas gravações e depois pode ensacá-la. - ordenou e então foi novamente até o tele-link ao lado da cama.


Enquanto o corpo era removido, Gina ordenou que aparecessem na tela todas as transmissões feitas e recebidas pelo aparelho nas últimas vinte e quatro horas.


A primeira fora feita daquele aparelho mesmo, logo depois das seis da tarde do dia anterior, um papo alegre entre a vítima e a sua mãe. Ao ouvir a conversa e analisar o rosto sorridente da mãe, Gina pensou como aquela mulher iria reagir ao receber a notícia de que a filha estava morta.


A única outra transmissão viera de fora. Um sujeito boa-pinta, avaliou Gina, olhando para o rosto que surgira na tela. Trinta e poucos anos, sorriso fácil, olhos castanhos sensíveis e profundos. Jerry foi como a vítima o chamou. Ou simplesmente Jer. Muitas insinuações e trocadilhos de cunho sexual entre eles. Um amante talvez. Quem sabe o seu verdadeiro amor?


Gina removeu o disco, lacrou-o e o guardou na bolsa. Localizou a agenda eletrônica de Marianna, seu tele-link portátil e um caderninho de endereços guardado na escrivaninha que ficava embaixo da janela. Uma olhada entre os nomes anotados levou-a a um certo Jeremy Vandoren... o tal Jerry.


Sozinha no local do crime, Gina tornou a olhar para a cama. Os lençóis sujos e manchados de sangue estavam embolados ao pé do móvel. As roupas que haviam sido retiradas da vítima com tanto cuidado estavam largadas no chão para serem recolhidas pelo pessoal da perícia. O apartamento estava em silêncio total. Ela deixou o assassino entrar, avaliou Gina. Abriu a porta para ele. Será que ela fora para o quarto com ele por livre e espontânea vontade ou ele a subjugara a fim de conseguir isso? O relatório do exame toxicológico iria revelar se havia alguma substância ilegal em sua corrente sangüínea.


Depois que já estavam no quarto, ele a amarrou. Os pés e as mãos, provavelmente prendendo as cordas nos quatro pilares não muito altos da cama, deixando-a com os braços e as pernas abertos, como se fosse um banquete. Só então ele retalhara as suas roupas. Com todo o cuidado, sem pressa. O ritual não ocorrera sob a ação de fúria, nem fora um impulso de carência desesperada. Foi calculado, planejado e executado de forma ordenada. Então ele a estuprou e sodomizou, porque podia fazê-lo. Tinha todo o poder nas mãos.


Ela provavelmente lutara contra aquilo, gritara e implorara. Ele curtiu tudo, porque se alimentava com esse tipo de coisa. Estupradores geralmente eram assim, pensou, inspirando várias vezes com força para evitar que a mente vagasse em direção ao próprio pai.


Quando acabou de atacá-la, ele a estrangulara, observando com toda a atenção os seus olhos saltarem das órbitas. Então ele penteara os seus cabelos, pintara o seu rosto e a enfeitara com o alegre festão natalino prateado. Será que ele trouxera o prendedor de cabelo com ele ou a peça pertencia a ela? Será que a tatuagem fora feita anteriormente a mando dela, por diversão, ou o assassino lhe enfeitara o corpo pessoalmente?


Caminhou até o banheiro junto ao quarto. Os azulejos brancos brilhavam como gelo e dava para sentir no ar um leve cheiro de desinfetante. Ele se limpara ali depois que acabou, decidiu Gina. Provavelmente tomara até um banho, talvez até mesmo se enfeitara, para em seguida limpar o chão todo e deixar o lugar sem vestígio algum. De qualquer modo, ela mandaria os peritos examinarem tudo. Um único pêlo pubiano já serviria para incriminá-lo. A vítima tinha uma mãe que a amava, refletiu Gina. Uma mãe que ria com ela, fazia planos para as férias e falava de biscoitos caseiros.


- Senhora? Tenente?


Gina olhou para trás, por sobre o ombro, e viu Hermione parada no meio do corredor.


- O que foi?


- Já peguei os discos da segurança. Dois policiais já começaram a interrogar os vizinhos.


- Muito bem. - Gina passou as mãos sobre o rosto. - Vamos acabar de lacrar o local e levar tudo para a central. Preciso informar à mãe da vítima. - Colocou a bolsa no ombro e pegou o kit de serviço, completando: - Você tem razão, Hermione. Que jeito terrível de começar o dia!


 


 


 


 


Agradecimentos especiais:


 


guilmara: Esse natal reserva muitas surpresas, espere para ver. Abraços.


 


Ana Eulina: Mais uma sim. Abraços.


 

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