Capítulo 13



Estava escuro quando eu cheguei em casa, guiando Belle por todo o caminho, cortando caminho pelas plantações vazias de milho e evitando as estradas o máximo possível, quase como se eu estivesse com medo de ser seguida. Eu certamente não quis pegar carona para casa com as pessoas que me ofereceram:


Faith ou os lideres da 4-H. Especialmente os lideres da 4-H, cujas perguntas eu já havia respondido pelo menos umas cinqüenta vezes. Eles simplesmente continuariam perguntando por que nenhum dos hospitais locais pareciam saber nada sobre um garoto que foi ferido por um cavalo. Depois eles iam querer falar com os meus pais, e nesse ponto eles podia entrar na nossa casa para encontrar Harry Potter quase morto - ou já morto - no nosso sofá, com meu pai tentando ressuscitá-lo com ervas e infusões.


Com esse pensamento, eu fiz Belle andar mais rápido.


Será que Harry realmente podia estar morto? Como eu me sentiria se ele estivesse? Eu sofreria por ele? Sentir pesar?A culpa me atingiu. Será que eu ficaria aliviada de alguma forma? E eu estava mais preocupada com Harry ou com o papel dos meus pais nesse desastre?


Todas essas perguntas colaram pela minha cabeça como um guisado grudento feito com ingredientes estragados enquanto Belle e eu nos apressávamos a caminho de casa, eu estava presa na velocidade de um cavalo quando precisava de um avião. Nosso progresso parecia ridiculamente lento. Einstein explicou esse sentimento, não explicou? Relatividade. A percepção que uma pessoa tinha do tempo era relativa ao desejo que ele tinha de vê-lo passar. Correto?


Tempo. Relatividade. Ciência.


Eu tentei focalizar nesses conceitos ao invés de me preocupar desnecessariamente, mas minha mente continuava voltando ao sangue na camisa de Harry. O sangue escapando de sua boca. O sangue muito, muito vermelho.


Quando eu cheguei no final da rua, eu já estava fazendo Belle correr de forma irresponsável, e eu derrubei as rédeas dela, deslizando de suas costas, enquanto via a van dos meus pais estacionada parada na frente da nossa casa. Havia outro carro também. Um sedã desconhecido, mas igualmente velho. A casa estava inteiramente escura, mas algumas luzes fracas brilhavam La dentro.


Abandonando a pobre Belle, sabendo que eu devia acalmá-la e colocá-la nos estábulos, eu subi correndo os degraus e entrei.


"Mamãe!" Eu gritei a plenos pulmões, batendo a porta atrás de mim.


Minha mãe apareceu na sala de jantar, me calando com um dedo nos lábios.


"Jessica, por favor. Mantenha a voz baixa."


"O que aconteceu? Como ele esta?" Eu a empurrei na direção da sala de jantar, mas mamãe segurou meu braço.


"Não, Jessica... agora não."


Eu procurei o rosto da minha mãe. "Mãe?"


"Foi serio, mas temos motivos para acreditar que ele vai sair dessa. Ele esta sendo bem tratado. Foi o melhor tratamento que conseguimos dar para ele, com segurança", ela disse, misteriosamente.


"O que você quer dizer com 'com segurança'?" Tratamentos seguros vinham de hospitais. "E de quem e o carro lá fora?"


"Nos chamamos o Dr. Zsoldos—"


"Não, mamãe!" Não o Dr. Zsoldos. O Húngaro maluco que perdeu a licença medica por usar "remédios" caseiros controversos de países antigos, bem aqui nos Estados Unidos, onde as pessoas tinham o bom senso de acreditar em medicina de verdade. Eu devia ter reconhecido o carro. Muito tempo depois que o resto do pais o exilou, o velho Zsoldos e meus pais continuaram amigos, andando pela cozinha e reclamando a noite inteira das pessoas que não acreditavam em "terapias alternativas." "Ele vai matar o Harry!"


"O Dr. Zsoldos compreende Harry e sua gente", mamãe disse, me agarrando pelos ombros. "Podemos confiar nele."


Quando minha mãe disse 'confiar', eu fiquei com a sensação que ela não estava falando apenas que o curandeiro devia ter uma licença. "Confiar para quê?"


"Discrição."


"Por quê? Por que devíamos ser discretos? Você viu o sangue saindo da boca dele? A perna quebrada?"


"Harry e especial", minha mãe disse, sacudindo meus ombros um pouco, como se eu devesse ter percebido isso ha um milhão de anos atrás. "Aceite isso, Jessica. Ele não estaria a salvo num hospital."


"E ele esta a salvo aqui? Na nossa sala de jantar?"


Minha mãe largou meus ombros e esfregou os olhos. Eu me dei conta do quanto ela devia estar cansada. "Sim, Jessica. Mais seguro."


"Mas ele esta sangrando por dentro. Até eu sei isso. Ele provavelmente precisa de sangue."


Minha mãe me deu uma olhada estranha, como se talvez eu finalmente compreendesse uma verdade muito importante. "Sim, Jess. Ele precisa de sangue."


"Então o leve a um hospital, por favor!"


Minha mãe me encarou por um longo momento. "Jessica, existem coisas sobre Harry que a maioria dos médicos não poderia entender. Nós podemos falar sobre isso mais tarde, mas agora, eu preciso voltar para ele. Por favor, vá lá pra cima e tente ser paciente. Eu vou te dizer assim que tiver noticias sobre o progresso dele."


Dando as costas para mim, mamãe abriu a porta da sala de jantar, e eu ouvi vozes baixas vindo de dentro do cômodo escuro. A voz do meu pai. A do Dr. Zsoldos.


Minha mãe entrou para se juntar a conspiração deles, e a porta se fechou.


Furiosa, assustada e frustrada, eu corri para cima, esquecendo completamente da pobre Belle. Eu tenho vergonha de admitir que ela passou toda a noite no frio de Novembro, andando em volta do celeiro e da baia, com a sela ainda nas costas.


Eu estava descontrolada demais para pensar no cavalo que me carregou a caminho de uma pequena gloria pessoal, apenas algumas horas antes. Ao invés disso, eu subi na cama e olhei pela janela, tentando descobrir o que fazer.


Enquanto eu debatia se devia ligar para um medico de verdade, eu tive uma visão do meu pai saindo pela porta e correndo pelo quintal indo em direção a garagem.


A luz se acendeu no apartamento de Harry, mas apenas por uns momentos.


Ela se apagou de novo, e segundos depois papai estava de volta, correndo pela grama. Eu pude ver, a luz da lua, que ele carregava alguma coisa nas mãos.


Alguma coisa do tamanho de uma caixa de sapatos, mas com os cantos arredondados. Como um pacote embrulhado com papel.


Eu esperei ate que os passos de papai passassem pela casa e a porta da sala de jantar se fechasse, antes de descer as escadas, evitando qualquer ruído que pudesse delatar minha presença. Eu praticamente me arrastei ate a porta sala de jantar girei a maçaneta, abrindo a porta só um pouquinho. Só o suficiente para ver o interior.


O fogo na lareira estava quase apagado, e a luz no candelabro de aço estava com a luminosidade baixa, mas eu era capaz de ver a cena.


Harry estava deitado na longa mesa de jantar, aquela que só usávamos em grandes ocasiões. Ele estava com o peito nu, suas roupas manchadas de sangue haviam desaparecido - foram cortadas, eu supus - e a metade de baixo do seu corpo estava coberta com um lençol branco. Seu rosto estava completamente pálido. Olhos fechados, boca composta.


Ele parecia estar morto. Como um cadáver. Eu nunca estive num funeral antes, mas se alguém podia parecer mais morto que Harry naquele momento... Bem, eu simplesmente não sabia como isso era possível.


Ele está morto?


Eu olhei para o peito dele, desejando que ele levantasse, mas se os pulmões dele se mexeram, foi levemente demais para que eu visse na sala escura. Por favor, Harry. Respire.


Quando o peito de Harry ainda não se moveu, alguma coisa se partiu dentro de mim, e meu corpo inteiro parecia uma vasta caverna com um vento gélido surgindo em todos os espaços vazios. Não... Ele não pode estar morto. Eu não posso deixá-lo ir. Eu lutei para ficar mais calma. Se Harry estivesse morto, eles


não estariam o cercando, cuidando dele. Eles teriam parado de tratá-lo. Teriam coberto seu rosto.


Minha mãe vagava perto da lareira, com uma mão na boca, observando enquanto meu pai e o Dr. Zsoldos conversavam em voz baixa por cima do pacote que papai havia trazido da garagem.


Eles devem ter tomado alguma decisão, porque Dr. Zsoldos pegou uma faca – um bisturi? - dentro de uma bolsa preta. Ele vai operar Harry? Na nossa mesa?


Eu quase dei as costas, enojada demais para assistir, mas não, o curandeiro Húngaro não cortou Harry. Ele simplesmente cortou os barbantes que amarravam o pacote e abriu o papel. Ele ergueu o que havia lá, segurando aquilo quase como se fosse um bebe recém nascido - um bebe molengo e escorregadio que quase escapou das suas mãos. Mas o que é isso?


Eu me inclinei mais para perto, pressionando o rosto na abertura da porta e lutando para controlar a respiração para não ser descoberta. Ninguém estava prestando atenção na porta, apesar de mamãe, papai e o Dr. Zsoldos estarem olhando para aquela... Coisa que o Dr. Zsoldos tinha nas mãos. Parecia com... O que? Uma espécie de trouxa? Feita de um material que eu não conseguia identificar. Mas era alguma coisa flexível, porque o pacote se mexia nas mãos do Dr. Zsoldos, como gelatina num saco de plástico.


"Devíamos ter nos dado conta que ele tinha isso, escondido", Dr. Zsoldos sussurrou, mexendo a cabeça ate que sua barba branca balançou. "E claro que ele teria."


"Sim", mamãe concordou, indo para a frente agora, em direção a Harry. "E claro. Nos devíamos saber." Com um gesto de papai, os dois escorregaram os antebraços embaixo dos ombros de Harry e o ergueram gentilmente, ate que ele estava quase sentado. Então Harry fez um som, meio gemido de dor, meio rosnado de leão raivoso e machucado. Meus dedos suados escorregaram da maçaneta com esse som. Não era exatamente humano, e não necessariamente animal. Mas era algo assustador, que reverberava nas paredes.


Eu limpei as mãos nas calcas de montaria, me concentrando mais na cena a minha frente.


Dr. Zsoldos chegou perto do paciente, segurando a trouxinha como uma oferenda na frente do rosto de Harry. A luz do fogo refletiu nas lentes em formato de meia lua do doutor, e ele sorriu um pouco enquanto pressionava, suavemente. "Beba, Harry. Beba."


O paciente não respondeu. A cabeça de Harry caiu para um lado, e papai mudou de posição para segura-lo, mantendo-o imóvel.


Dr. Zsoldos hesitou, depois pegou o bisturi de novo, usando-o para espetar a trouxa, bem embaixo do nariz de Harry. Os olhos que eu temia estarem extintos se abriram, e nesse momento eu dei um gritinho.


Os olhos de Harry, sempre escuros, agora estava completamente pretos. Um preto muito, muito profundo, como se as pupilas tivessem engolido as Iris e as partes brancas também. Eu nunca tinha visto olhos assim antes. Você não podia deixar de olhar para eles.


Ele abriu a boca, e os dentes dele... Haviam mudado também.


Meus pais deviam ter ouvido meu som, mas era tarde demais. O que estava acontecendo estava acontecendo, e eles também ficaram transfixados enquanto Harry abaixava a cabeça, mergulhando as presas naquela trouxa, bebendo cuidadosamente, mas com uma fome obvia. Um pouco do liquido derramou pelo queixo dele e correu pelo seu peito. Um liquido escuro. Um liquido grosso. Eu já tinha visto um liquido como aquele antes, não muitas horas atrás, manchando aquele mesmo peito.


NÃO.


Eu fechei os olhos, sem acreditar. Balançando a cabeça, eu tentei pensar com clareza. Banir a imagem do que eu achava que tinha visto. O que eu tinha quase certeza que tinha visto.


E havia um cheiro também. Um odor pungente que eu nunca havia sentido antes.


Bem, antes tinha um cheiro fraco, mas agora... Agora era tão forte. E estava ficando mais forte. Eu abri os olhos e me forcei a observar de novo. Aquele aroma - não era como se eu estivesse sentindo com o meu nariz. Eu o sentia de alguma forma, no fundo do meu estomago, ou nos cantos mais profundos daquela parte primitiva do cérebro sobre a qual falamos na aula de biologia.


Harry fez o corpo se erguer mais, se segurando com um cotovelo, ainda bebendo com vontade, como se não pudesse beber o suficiente. Mas, finalmente, não sobrou mais nada. O pacote estava vazio. Harry caiu pra trás com um gemido que conseguiu, de alguma forma, misturar agonia crua e pura satisfação, e papai segurou seus ombros nus no momento certo, fazendo ele deitar de costas de novo.


"Descanse Harry", papai pediu. Minha mãe se aproximou com um pano para limpar o peito dele, onde o sangue o sujou...


Sangue. Ele estava bebendo sangue.


Eu fechei os olhos de novo, com mais forca dessa vez. Nesse momento, alguma coisa estranha aconteceu, porque eu obviamente estava abaixada no chão solido, de madeira, e ele não podia se mexer, mas mesmo assim ele começou a se mexer e rodar sob meus pés. A casa inteira estava revirando ao meu redor, e mesmo quando eu abri os olhos, tentando me concentrar, foi só para sentir meus olhos se movendo sozinhos em direção ao teto, que se apagou como a tela de um filme depois que ele acaba.


Eu acordei mais tarde, naquela mesma noite, vestida com meus pijamas de flanela, mas confusa e desorientada, como se de repente eu me encontrasse num pais estrangeiro, e não na minha própria cama. Ainda estava escuro. Eu fiquei o mais imóvel possível, com os olhos abertos, só no caso do quarto começar a se mexer e o teto começasse a apagar de novo.


Mas a casa não se moveu, mesmo quando eu dei replay, com detalhes vividos, em tudo que eu havia visto. Tudo que eu senti.


E tinha visto Harry beber sangue. Ou não? Eu fiquei tonta. Confusa. E aquele cheiro... Talvez Dr. Zsoldos tivesse dado a Harry algum tipo de licor ou poção Romena, ou algo assim. Talvez, com o medo e o pânico, eu tivesse entendido errado.


Mas a única coisa que eu não podia explicar era a forma como eu me senti quando realmente pensei que Harry estivesse morto.


Pesar. O pesar mais profundo que eu podia imaginar. Como um buraco aberto na minha alma.


Essa... Essa era a parte que realmente me deixava louca. Tão louca, de fato, que eu desci as escadas de novo, no meio da noite, me enfiando na sala de jantar. O fogo foi acendido novamente, e Harry ainda estava de costas na mesa, mas agora havia um travesseiro embaixo da cabeça dele. E também, um cobertor mais quente foi colocado por cima do lençol, cobrindo ele dos ombros ate os pés. Meu pai ainda estava na sala, cochilando na cadeira de balanço, roncando um pouco, mas minha mãe não estava lá, e Dr. Zsoldos tinha ido embora, e a bolsa dele, e a trouxa com a qual eu provavelmente havia sonhado...


Eu me aproximei do rosto de Harry. Não havia traços de vermelhidão nos lábios dele, não havia manchas no queixo dele, e não havia sinais de mudança na boca dele. Só um rosto pálido, machucado, e agora familiar. Enquanto eu o observava, ele deve ter sentido uma presença, ou talvez ele tenha sonhado, porque ele se moveu um pouco, e a mão dele escapuliu da mesa. A posição parecia desconfortável, então depois de esperar um momento para ver se ele se mexia de novo, eu gentilmente segurei o pulso dele e o coloquei de volta na mesa. Apesar do cobertor e da lareira que queimava a pouca distancia dali, a pele dele era tão fria ao toque... Gelada, na verdade. Ele era sempre tão gelado. Meus dedos deslizaram para baixo, se entrelaçando com a de Harry só por um momento, para lhe oferecer um pouco de conforto ou calor.


Ele estava vivo.


Nesse momento eu comecei a chorar, tão silenciosamente quanto era possível, desesperada para não acordar meu pai. Eu só deixei as lagrimas escorrerem pelo meu rosto, caindo nas nossas mãos unidas. Harry me deixava louca. Ele era louco. Mas isso não importava. Eu não queria sentir aquela sensação profunda de perda de novo. Nunca mais.


Eu solucei, incapaz de segurar. Com o som, meu pai gemeu, o bufo enorme de alguém que estava tentando dormir numa cadeira dura, e eu fiquei com medo que ele pudesse acordar, então eu larguei a mão de Harry, enxuguei meu rosto com a manga, e voltei para o quarto de novo. De qualquer forma, agora o dia já estava quase amanhecendo.

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N/A: Mil perdões pela demora, mas agora tudo voltou ao normal de novo e eu pretendo postar todo dia pra compensar vocês ;D

BYE sz

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