CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 14
Gina não estava a fim de outra disputa conjugal, mas achou que era melhor encarar logo de vez o problema. Precisava do olho treinado de Harry, de seus contatos e, já que ela ia seguir as instruções do comandante e viajar até a Irlanda, sua experiência em um país estrangeiro.
Como Hermione e Rony haviam começado a se estranhar, implicando um com o outro como pessoas que moravam juntas há anos, ela os separou, enviando-os em missões independentes em locais distantes um do outro. Com o nível de competitividade aumentando entre os dois, esperava retorno de ambos antes de meio-dia.
Parou do lado de fora da sala de Harry, respirou fundo, preparando-se para a batalha, e deu uma batida rápida na porta, fazendo aquilo parecer um ato casual e íntimo.
Quando entrou, ele levantou um dedo, fazendo-lhe sinal para que esperasse enquanto acabava de falar com as imagens holográficas de dois empregados.
-... Até eu ter chance de viajar ao resort pessoalmente para acompanhar as obras, espero que vocês cuidem desses detalhes. Pretendo inaugurar o Olympus dentro do prazo, compreenderam? - perguntou Harry.
Quando viu que não houve respostas verbais, mas apenas respeitosos acenos de cabeça, recostou-se na cadeira e se despediu, dizendo:
- Fim da transmissão.
- Algum problema? - quis saber Gina, quando os hologramas desapareceram.
- Um punhado de pequenas inconveniências.
- Desculpe interromper, mas você tem um minuto?
Deliberadamente, ele olhou de relance para o relógio de pulso e respondeu:
- Talvez até dois... em que posso ajudá-la, tenente?
- Detesto quando você usa esse tom de voz comigo.
- Ah, é?... Que pena! - Tornando a se recostar, uniu as pontas dos dedos. - Quer saber o que eu detesto?
- Bem, tenho certeza de que você vai me contar, mesmo que eu não queira, só que agora estou meio apressada. Mandei Hermione e Ronald saírem em campo, em busca de pistas. Resolvi me trancar dentro de casa porque plantei uma história para a mídia, através de Tonks. Será divulgado que eu ainda estou abalada, muito fraca e me recuperando em casa.
- Você está ficando boa nessa atividade de plantar histórias.
- Tudo bem, vamos resolver logo esse assunto para limpar a barra entre nós. - Enfiou as mãos nos bolsos. - Fiz aquela declaração, ultrapassei os limites oficiais de alguém na minha posição, insultando e desafiando o assassino a vir me pegar. Meu dever é servir e proteger, e eu sabia que ele vinha com tudo em minha direção, mas ganhei tempo para salvar quem quer que ele estivesse planejando atacar em seguida. Funcionou e, como eu calculava, ele ficou tão revoltado que pisou na bola, fato que nos proporcionou pistas que não tínhamos vinte e quatro horas atrás.
Harry deixou que ela terminasse de contar tudo, o que lhe deu tempo para levantar da cadeira e caminhar até a janela. Com um ar distraído, ajustou a tonalidade do revestimento fume dos vidros para deixar entrar mais luz no ambiente.
- Em que momento você chegou à conclusão de que eu era ingênuo, simplesmente burro, ou ficaria satisfeito em saber que você usou a si mesma para me proteger?
Que se danasse a abordagem cautelosa, decidiu Gina reagindo:
- Em se tratando de você, ingênuo e burro são as últimas características nas quais eu iria pensar, e não foi planejando deixá-lo satisfeito ou não que eu desviei a atenção do assassino de você para mim. O que importa é que você fique vivo. Mesmo revoltado, você permanecer vivo já me deixa feliz.
- Você não tinha o direito de fazer isso. Não tinha o direito de se colocar como escudo para me proteger. - Ele se virou de repente, com os olhos mais verdes do que nunca com a raiva que os transformara de frios em flamejantes. - Você não tinha nada que fazer isso... se arriscar em meu lugar!
- Ah, é mesmo? - Foi na direção dele até os seus pés se encostarem. - Muito bem, então me diga uma coisa: olhe bem dentro dos meus olhos e me diga que você não teria feito a mesma coisa se fosse eu que estivesse em risco.
- Essa seria uma situação completamente diferente.
- Por quê? - Seu queixo se elevou e seu dedo indicador começou a cutucar o peito dele. - Porque você possui um pênis?
Ele chegou a abrir a boca para responder, e um monte de palavras cruéis e furiosas lhe chegou à ponta da língua. Foi o brilho frio e absolutamente confiante dos olhos dela que o impediu. Ele se virou e bateu com os dois punhos na mesa, dizendo:
- Não dou a mínima para o fato de você ter ou não razão.
- Nesse caso, deixe-me terminar, para você engolir tudo de uma vez. Eu o amo e preciso de você tanto quanto você precisa de mim. Talvez eu não diga isso tantas vezes quantas seriam aconselháveis, nem demonstre meus sentimentos de forma melosa, mas isso não os torna menos verdadeiros. Se incomoda o seu ego saber que eu sou capaz de protegê-lo, é uma pena...
Harry levantou as mãos e passou os dedos pelos cabelos antes de se virar para ela.
- Que bela maneira de distorcer uma discussão, hein?
- Eu fiz isso?
- Bem, se considerarmos que qualquer argumento que eu tentasse usar nesse instante iria parecer tolo, acho que fez sim.
- Então foi bem pensado. - Gina se arriscou a lançar um sorriso para ele. - Agora, se você já acabou de ficar puto comigo, posso lhe pedir alguns palpites?
- Eu não falei que não estava mais puto com você, disse apenas que estava sem argumentos para continuar a discussão. - Ele se sentou na quina da mesa. - Tudo bem, pode pedir os meus palpites.
Satisfeita, ela lhe entregou um disco.
- Coloque-o para rodar. Há uma imagem que você pode projetar no telão. Aumente a definição para o grau máximo.
Ele fez o que ela lhe pedira e analisou a imagem. Dava para ver os dedos de uma mão enluvada segurando um aparelho com o formato de uma varinha. Não dava para ver o cabo do instrumento, mas o padrão do entalhe, com botões na base, era nítido. Uma luz verde acendeu na ponta do bastão fino.
- É um misturador de sinais. - afirmou ele. - Mais sofisticado e certamente mais compacto do que qualquer coisa que eu tenha visto no mercado... - Chegou mais perto da tela. - O nome do fabricante, se existir, provavelmente está na base, oculto pela mão, de forma que não vai nos servir de nada. Um dos meus departamentos de desenvolvimento e pesquisa de novos produtos está trabalhando em um misturador de sinais menor e mais possante. Vou ter que verificar com eles em que pé está o projeto.
Essa afirmação a pegou desprevenida.
- Harry, você está me dizendo que fabrica esse tipo de coisa?
- As Indústrias Potter lidam com um grande número de solicitações e contratos do governo. - Sorriu um pouco, percebendo o tom na voz dela. -... Aliás, solicitações de vários governos. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos está sempre em busca de novos brinquedos desse tipo e me paga bem por eles.
- Quer dizer então que um aparelho como esse pode muito bem ser obra de um dos seus departamentos? Brennen também atuava na área de comunicações. Uma de suas empresas também poderia estar pesquisando algo desse tipo.
- É fácil descobrirmos isso. Vou verificar se um dos meus conglomerados está com algum aparelho desse tipo em fase de desenvolvimento, e vou pedir a um de meus agentes que verifique isso nas Organizações Brennen também.
- Você tem espiões?
- Pessoas que recolhem dados, querida. Eles não gostam muito de serem chamados por esse nome. Você conseguiu o resto da imagem do nosso homem neste disco?
- Peça para a gravação voltar alguns segundos.
- Computador, apresente as imagens imediatamente anteriores a esta.
Harry franziu o cenho diante da imagem do homem e, usando os carros em volta dele como ponto de referência, especulou:
- Um metro e sessenta e cinco... uns setenta quilos, pelo jeito que o casacão cai ao lado do corpo. Muito pálido, pelo pedacinho de pele que apareceu. Creio que ele não passa muito tempo ao ar livre; sua profissão, portanto, se tiver uma, é provavelmente burocrática ou laboratorial.
Continuando a fazer sua análise, prosseguiu:
- Não há como determinar a sua idade, a não ser que... ele se move de forma ágil, parece ser bem jovem. Dá para ver parte da sua boca. Ele está sorrindo. Canalha convencido! Por fim, o seu gosto para roupas é inferior.
- Essa roupa é de policial da tropa de choque. - comentou Gina, de forma seca. - Apesar disso, não creio que ele tenha ligação com o Departamento de Polícia. Tiras não usam tênis com amortecedor a ar e ninguém da tropa de choque teria acesso ao tipo de equipamento ou conhecimento técnico que esse cara demonstra, senão a Divisão de Detecção Eletrônica já o teria agarrado. Quanto à roupa, qualquer um pode comprar um casacão desses em um monte de lojas aqui mesmo em Nova York. - Esperou um segundo. -... De qualquer modo, vamos tentar identificar de onde essa roupa saiu.
- E a van?
- Também estamos pesquisando. Se não for roubada e estiver cadastrada neste estado, vamos conseguir delimitar a área de busca.
- Você está sendo muito otimista, Gina. Só eu possuo umas vinte dessas vans registradas aqui em Nova York, pertencentes a vários tipos de negócios: vans de entrega, unidades de manutenção e veículos para transporte de funcionários.
- Já é mais do que tínhamos no início.
- Sim. Computador, desligar! - Virou-se para ela. – Hermione e Ronald podem fazer suas buscas sozinhos por um ou dois dias?
- Claro. Neville está voltando em poucos dias e eu vou agarrá-lo para esse caso.
- Eles já acabaram de preparar o corpo de Jennie. Vai ser liberado esta tarde.
- Ah, é?
- Gina, preciso que você vá comigo para a Irlanda. Sei que o momento não é muito conveniente, mas estou pedindo a sua companhia só por dois dias.
- Bem, eu...
- Não posso ir sem você. - A impaciência veio à tona e fez seus olhos brilharem. - Recuso-me a ir sem você. Não posso me arriscar a estar a cinco mil quilômetros se esse canalha tentar atingi-la novamente. Preciso de você junto de mim. Já providenciei tudo e podemos viajar daqui a uma hora.
Gina achou melhor ir até a janela para ele não perceber que ela lutava para disfarçar um sorriso. Era falta de honestidade, pensou, não contar que ela também planejara pedir que ele a acompanhasse a Dublin naquela tarde. Só que a oportunidade de lucrar com a situação era boa demais para Gina perdê-la.
- É realmente muito importante para você que eu vá? - perguntou ela.
- Sim, muito.
Gina se virou e sorriu para ele, com um ar moderado que julgou admirável.
- Então, vou fazer as malas. - anunciou.
- Quero receber todos os dados em tempo real. - Gina andava de um lado para outro dentro da cabine do jato particular de Harry e olhava para o rosto sóbrio de Hermione em seu tele-link de mão. - Envie tudo devidamente codificado para o hotel em Dublin.
- Estou pesquisando a van. Existem mais de duzentas daquela marca e modelo pertencentes a particulares aqui em Nova York.
- Verifique todas. Cada uma delas. - Passou a mão pelos cabelos, determinada a não deixar nenhum detalhe de fora. - Os tênis pareciam novos. O computador deve ter condições de descobrir o número através das imagens. Corra atrás disso também, Hermione.
- Quer que eu pesquise os tênis?!
- Foi o que eu disse. Verifique as vendas de todos os tênis daquela marca, com amortecimento a ar na sola, pelos últimos dois, não... três meses. Talvez tenhamos sorte.
- É bom saber que existe gente que acredita em milagres, tenente.
- Detalhes, Hermione. É melhor acreditar nos detalhes. Cruze os dados com as vendas do uniforme da tropa de choque, e também com as vendas de imagens de mármore. Ronald continua correndo atrás do misturador de sinais?
- Diz ele que sim... - A voz de Hermione ficou mais fria. - Não sei de Ronald há mais de duas horas. Parece que foi se encontrar com alguém indicado por Harry no Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento de Produtos da fábrica dele, a Electronic Future.
- Transmita as mesmas ordens para ele. Quero todos os dados codificados e enviados para mim assim que surgirem.
- Sim, senhora. Luna ligou algumas vezes. Moody acalmou-a, dizendo que você estava repousando confortavelmente e não podia receber visitas por ordens médicas. A dra. Minerva também ligou e lhe enviou flores.
- Enviou?... - Surpresa e desconcertada pela idéia, Gina fez uma pausa. - Talvez fosse gentil responder a ela, agradecendo pelas flores ou algo assim. Droga, em que estado as pessoas acham que eu estou?
- Muito mal, Weasley.
- Odeio isso. O canalha provavelmente está celebrando essa notícia. Vamos cuidar para que ele não festeje por muito tempo. Envie-me os dados, Hermione. Volto em quarenta e oito horas e quero dar umas marteladas nele.
- Já estou com o martelo pronto, senhora.
- Cuidado para não acertar o dedão. - aconselhou Gina encerrando a transmissão. Tornou a enfiar o pequeno tele-link no bolso e olhou para Harry. Ele ficara absorto em pensamentos durante todo o vôo, falando muito pouco. Gina perguntou a si mesma se aquela seria uma boa hora para contar a ele que já havia entrado em contato com a polícia de Dublin e marcara encontro com uma tal de inspetora Farrell.
Sentou-se na poltrona em frente a ele, batendo com os dedos no joelho e, por fim, perguntou:
- Então... você vai me levar para dar um passeio pelos locais favoritos de sua juventude desperdiçada?
Embora ela esperasse que ele sorrisse ao ouvir isso, tal não aconteceu. Mesmo assim, ele desviou o olhar da janela e fitou o seu rosto, respondendo:
- Você não ia achá-los nada interessantes.
- Talvez esses lugares não estejam entre os pontos turísticos da cidade, mas seria bom para você reencontrar alguns velhos amigos e companheiros.
- Três dos meus velhos amigos e companheiros estão mortos.
- Harry...
- Não! - Chateado consigo mesmo, levantou a mão para impedi-la de continuar. - Ficar matutando sobre esse assunto não adianta nada. Vou levá-la ao Porquinho Rico.
- Porquinho Rico? - Ela se colocou reta na poltrona na mesma hora. - A esposa de Brennen disse que ele costumava ir lá. É um bar, não é?
- Um pub. - Nesse momento, ele sorriu. - O centro social e cultural de um povo que sai do leite materno e vai direto para a cerveja preta. E você precisa conhecer a rua Grafton. Eu costumava trabalhar como trombadinha lá. E há também os becos estreitos da zona sul de Dublin, onde eu promovia jogos de azar até transferir o meu cassino portátil para os fundos do açougue de Jimmy O’Neal.
- Onde o freguês podia escolher entre lingüiças a metro e dados viciados.
- Entre outras coisas. Havia também o contrabando. Muamba foi o meu primeiro grande empreendimento e a base financeira das Indústrias Potter. - Inclinando-se para a frente, prendeu o cinto de segurança de Gina. - Mesmo com toda essa experiência, acabei tendo o coração roubado por uma tira que resolveu me colocar na linha.
- Só em parte.
- Só em parte. - concordou ele, rindo e olhando para fora da janela, observando a cidade de Dublin que se aproximava. - Lá estão o rio Liffey e suas pontes, brilhando ao sol. Dublin é uma grande cidade para passar a noite.
Ele tinha razão, decidiu Gina quando, menos de uma hora depois, os dois estavam no banco de trás de uma limusine, circulando em meio ao tráfego. Gina achava que a cidade seria parecida com Nova York, cheia de gente, muito barulhenta e impaciente. Certamente o movimento era intenso, mas havia uma alegria febril por trás do ritmo urbano.
Portões coloridos tornavam os edifícios mais atraentes e as pontes em arco acrescentavam charme à paisagem. Embora eles já estivessem em meados de novembro, havia flores em toda parte.
O hotel era uma grande estrutura de pedra com janelas em arco e um jeito de castelo. Gina só conseguiu olhar de relance o saguão com teto abobadado, mobília majestosa e paredes grossas e escuras, antes de eles serem encaminhados à suíte.
Ninguém esperava que homens como Harry perdessem tempo com detalhes incômodos, como registros na recepção dos hotéis. Tudo já estava pronto para a sua chegada. Na suíte, imensos vasos com flores recém-colhidas, tigelas com uma colorida abundância de frutas e uma generosa garrafa de uísque irlandês já os esperavam.
E pelas janelas altas dava para apreciar os últimos raios vermelhos do sol que se punha.
- Pedi estes aposentos porque achei que você preferia ficar de frente para a rua, a fim de apreciar a cidade se movimentando.
- E prefiro mesmo. - Gina já estava diante da janela, com as mãos enfiadas nos bolsos de trás. - É lindo! É como... não sei... parece uma pintura animada. Você reparou nas carrocinhas dos ambulantes? Todas elas brilham e os guarda-sóis parecem novos e limpos. Até as sarjetas parecem ter sido limpas ainda agora.
- Na Irlanda existem prêmios para as cidades mais limpas, ainda hoje.
- Cidades mais limpas? - Ela riu com ar divertido diante da idéia, mas a achou comovente.
- Isso é uma questão de orgulho. Qualidade de vida é uma coisa da qual a maioria das pessoas por aqui reluta em abrir mão. Nas cidades do interior, o visitante ainda encontra muros baixos de pedra e campinas em tanta quantidade que chega a espantar. Há casas simples e chalés com telhados cobertos de sapê, lareiras que usam turfa como combustível e flores no jardim. Os irlandeses mantêm as tradições com determinação.
- Por que você foi embora daqui?
- Porque as minhas tradições eram bem menos atraentes e mais fáceis de abandonar. - Arrancando uma linda margarida amarela de um dos arranjos, ele a entregou a Gina. - Vou tomar uma ducha e então mostro tudo a você.
Ela tornou a olhar pela janela, rodando a haste da margarida entre os dedos, com ar distraído. Perguntou-se então quanto mais ela ia descobrir a respeito do homem com quem se casara, antes que aquela noite terminasse.
Havia algumas áreas de Dublin que não eram tão alegres. Ali, os becos espalhavam o odor típico de lixo em decomposição e gatos magros se moviam furtivamente por entre as sombras. Gina reconheceu o lado obscuro que existe em qualquer cidade. Homens caminhando apressados com ombros curvados e olhos agitados que giravam para a direita e para a esquerda. Ouviu uma gargalhada áspera que encobria um ar de desespero e o choro agudo de um bebê faminto.
Viu um grupo de meninos, o mais velho com não mais de dez anos. Caminhavam com ar despreocupado, mas Gina percebeu o brilho calculista em seus olhos. Se estivesse armada, sua mão já estaria sobre o coldre, por instinto.
As ruas eram o território daqueles jovens, e eles sabiam disso.
Um deles esbarrou de leve em Harry ao passar.
- Desculpe. - disse ele, e então começou a praguejar de forma violenta ao sentir que Harry o agarrara pela nuca.
- Cuidado com a mãozinha aí, garoto. Dentro do meu bolso não quero sentir dedos que não sejam os meus.
- Ei, me solta! - O menino se balançou, tentando dar um soco em Harry e acertando o ar, pois estava a quase um braço de distância do alvo. - Seu filho-da-mãe, eu não enfiei a mão no bolso de ninguém!
- Não conseguiu enfiar porque tem os dedos pesados. Nossa, eu era muito melhor do que você quando tinha seis anos. - Deu uma sacudida forte, provocada mais pela irritação com a falta de jeito do jovem do que pelo ato em si. - Até um turista bêbado vindo do interior ia conseguir sentir seus dedinhos. Foi uma tremenda bandeira! - Olhou para o rosto furioso do menino e balançou a cabeça, ensinando: - Você se daria melhor como o cara que foge com o flagrante do que como o beliscador, garoto.
- Ah, essa é ótima, Harry Potter! - reagiu Gina. - Por que não lhe dá logo uma aula completa de como ser dedos-leves, aproveitando que estamos aqui?
Ao ouvir as palavras de Gina, os olhos do menino piscaram e se estreitaram. Parou de tentar escapar na mesma hora.
- O pessoal conta histórias de um cara chamado Harry Potter que costumava trabalhar nesta área. Dizem que ele morava na favela, mas conseguiu ficar rico graças aos seus dedos ágeis e à sua cara-de-pau.
- Você tem cara-de-pau, mas não tem dedos ágeis.
- Funciona bem na maioria dos bolsos. - Sentindo-se mais relaxado, o menino lançou um sorriso curto e charmoso para Harry. - E quando eles não funcionam, eu consigo correr mais rápido do que qualquer tira.
Harry se abaixou e sussurrou no ouvido do menino:
- Essa é a minha esposa, seu bundão, e ela é tira.
- Ca-ce-te! - exclamou ele.
- E-xa-to! - Colocando a mão no bolso, Harry pescou um punhado de moedas. - Eu ficaria pianinho a respeito disso, se fosse você. Seus amigos saíram correndo feito ratos. Não lhe deram cobertura e não merecem a partilha dessa grana.
- Eu também não estou a fim de dividir nada com eles. - As moedas desapareceram no seu bolso. - Foi um prazer conhecê-lo. - Desviando o olhar para Gina, o menino a cumprimentou com a cabeça, exibindo um ar de surpreendente dignidade. - Dona... - murmurou ele, antes de sair correndo como um coelho e se misturar com as sombras.
- Quanto você deu para ele?
- O bastante para deixá-lo satisfeito sem arranhar o seu orgulho. - Enlaçando a cintura dela com o braço, voltaram a caminhar.
- Ele o fez se lembrar de alguém?
- Na verdade, não. - respondeu Harry em um tom alegre que ela não esperava. - Eu jamais fui pego assim, com tanta facilidade.
- Não vejo o que há de tão bom nisso para você ficar se gabando... além do mais, seus dedos já não são assim tão leves hoje em dia.
- Você deve estar certa. Um homem perde o toque com a idade. - Sorrindo, balançou na frente dela o distintivo que pegara em seu bolso. - Acho que isto aqui é seu, tenente.
Ela o agarrou de volta com um gesto rápido e tentou não parecer divertida nem impressionada.
- Seu exibido! - disse apenas.
- Não podia permitir que você acabasse com a minha reputação. Veja, chegamos! - Parou, apreciando a fachada do pub. - O Porquinho Rico. Não mudou muito. Parece-me um pouco mais limpo, apenas.
- Talvez o estejam preparando para o prêmio de limpeza.
Por fora, o lugar era discreto. A janela gradeada exibia um cartaz com um porco branco de olhar manhoso. Não havia flores ali, mas os vidros brilhavam e não havia lixo nas calçadas.
No instante em que Harry abriu a porta, sentiu uma golfada de calor, o barulho agitado de vozes e música, a névoa de cigarro e o cheiro de cerveja.
O local era estreito e comprido. Homens estavam enfileirados ao longo do bar de madeira. Outros, incluindo mulheres e crianças, sentavam-se em cadeiras, acotovelados junto de mesas baixas onde copos ocupavam todo o espaço. Nos fundos, sobre um tablado acanhado, dois homens estavam sentados. Um tocava violino e o outro manejava uma caixa que emitia uma melodia saltitante.
Na parede, instalada bem alto, havia uma mini-tela com o som no mínimo. Exibia imagens de um sujeito que tentava andar de bicicleta sobre uma pista esburacada, mas levava tombos engraçados. Ninguém parecia estar assistindo ao programa.
Atrás do bar havia dois homens servindo cervejas e outras bebidas alcoólicas. Várias pessoas olharam para Gina e Harry no momento em que entraram, mas as conversas não cessaram.
Harry foi até o fundo do bar. Reconheceu o mais velho dos atendentes, um homem que parecia ter a mesma idade que ele e que, um dia, fora magro como um palito e dono de um senso de humor cruel.
Enquanto esperava ser atendido, colocou a mão sobre o ombro de Gina e acariciou-o de forma descontraída. Sentia-se grato por tê-la ao seu lado naquela curta viagem ao passado.
- Guinness, por favor, uma garrafa e uma caneca.
- É pra já...
- O que vou beber? - quis saber Gina.
- O néctar dos deuses. - murmurou Harry, e observou seu velho amigo servir as bebidas com admirável habilidade. - Isso é um gosto que se adquire com o tempo. Se você não gostar, posso lhe pedir uma Harp.
Gina estreitou os olhos em meio à densa fumaça e perguntou:
- Eles não sabem que é proibido fumar em locais públicos?
- Não, aqui na Irlanda não é proibido. Não nos pubs.
O barman chegou com as bebidas. Gina levou o copo aos lábios enquanto Harry pegava mais moedas no bolso. Suas sobrancelhas se uniram ao tomar o primeiro gole e ela balançou a cabeça ao tomar o segundo, dizendo:
- Quase dá para mastigar.
Harry caiu na risada e o barman sorriu, perguntando:
- Você deve ser uma ianque. É a sua primeira Guinness?
- É. - Gina franziu o cenho ao olhar para o copo, girando-o devagar diante dos olhos para examinar o líquido castanho-escuro com colarinho largo.
- Vai ser a sua última também? - quis saber o barman.
Gina tornou a experimentar a bebida, mantendo a cerveja na boca por um segundo e então engolindo.
- Não. - disse ela. - Acho que gostei.
- Que bom, então. - O barman deu um sorriso largo e empurrou as moedas sobre o balcão de volta para Harry. - A primeira é por minha conta.
- É muita gentileza sua, Brian. - Harry viu que o homem, que admirava Gina, desviou o olhar e o encarou.
- Eu o conheço? Você me parece familiar, mas não consigo saber de onde.
- Já faz quinze anos mais ou menos, portanto a sua memória deve estar falhando, mesmo depois de tudo pelo que passamos. Eu o reconheci de imediato, Brian Kelly, embora você tenha engordado um ou dois quilos... talvez três. - Harry abriu um sorriso generoso e foi o sorriso que o entregou.
- Ora, mas pelos diabos... Tranquem suas mulheres em casa! É Harry Potter em pessoa que está de volta! - Os lábios de Brian se abriram de satisfação e ele deu um soco na cara de Harry.
- Caramba! - Foi tudo o que Harry conseguiu dizer ao sentir a cabeça ser lançada para trás com o golpe. Recuperando o equilíbrio, balançou a cabeça para os lados.
- Soquinho fraaaco... - comentou Gina com ar de desdém, tomando outro gole da cerveja escura. - Que amigos simpáticos você tem, Harry...
- Você mereceu, meu caro. - justificou Brian, balançando um dedo. - Nunca mais voltou com as cem libras que eram a minha parte daquela muamba.
Com ar pensativo, Harry passou as costas da mão sobre o corte do lábio, para fazer o sangue estancar. Depois de uma pausa quase imperceptível, a música e o barulho de vozes continuou, como se nada tivesse acontecido.
- Voltar teria me custado muito mais do que cem libras, se considerarmos que a polícia estava atrás de mim. - Harry pegou sua caneca e tomou um gole para ajudar a aliviar a dor no lábio. - Eu achei que tivesse mandado o dinheiro para você.
- Aqui que mandou... mas o que são cem libras diante de uma amizade? - Soltando uma gargalhada trovejante, Brian agarrou Harry pelos ombros, puxou-o por cima do bar e tascou-lhe um beijo na boca que sangrava. - Bem-vindo de volta, seu grandissíssimo filho-da-mãe! Ei, vocês! - berrou para os músicos. - Toquem “O Bandido Selvagem” para o meu velho amigo aqui, pois foi isso o que ele sempre foi. Ouvi dizer que ele está cheio do ouro, o bastante para pagar uma rodada para todos.
Os clientes aplaudiram e a música ficou mais animada.
- Eu pago uma rodada, Brian, mas só se você der alguns minutos do seu tempo para mim e para minha esposa, lá na sala dos fundos.
- Ora... esposa, é?... - Tornou a urrar de alegria e puxou Gina para junto dele, tascando-lhe um beijo igualmente caloroso. - Que a Virgem Maria nos salve a todos! Posso lhe dar até mais do que alguns minutos, pois agora eu sou dono do lugar. Michael O’Toole, venha aqui para trás do balcão para dar uma ajudinha a Johnny. Tenho alguns assuntos para colocar em dia. - Apertou um botão na parte de baixo do balcão e uma porta estreita se abriu na outra ponta.
A sala dos fundos, conforme Gina descobriu, era um aposento privativo bem pequeno, onde havia apenas uma mesa e algumas cadeiras. A luz era fraca, mas o piso brilhava como espelho. Através da porta fechada, dava para ouvir a música do salão.
- Você se casou com este delinqüente? - perguntou Brian, suspirando ao se jogar sobre uma das cadeiras, que rangeu sob o seu peso.
- Foi... na verdade, ele implorou para que eu fizesse isso.
- Você conseguiu uma mulher muito bonita, garotão. Comprida e com os olhos da cor do melhor uísque irlandês.
- Um dia desses ela ainda vai se apaixonar por mim. - Harry pegou cigarros e ofereceu um a Brian.
- Cigarro americano? - Brian fechou os olhos de prazer enquanto Harry o acendia. - Até hoje é difícil conseguir isso por aqui.
- Pois eu lhe mando um pacote fechado, para compensar as cem libras.
- Um pacote fechado? Se eu colocar à venda esse monte de maços de cigarros americanos vou conseguir dez vezes o valor que você me deve. - Sorriu. - Aceito o presente! Mas o que traz você ao Porquinho Rico? Ouvi dizer que você vem a Dublin de vez em quando para resolver seus negócios milionários, mas não costuma passar por aqui.
- Não, não costumo. - Harry o olhou fixamente. - Fantasmas.
- Ahh... - concordou Brian, compreendendo perfeitamente. - Há um monte deles pelas ruas e becos. Mas você resolveu vir hoje, com sua linda esposa.
- Resolvi. Você deve ter ouvido a respeito de Tommy Brennen e os outros.
- Foram assassinados. - Brian serviu um pouco do uísque que levara com ele, do bar. - Tommy costumava vir aqui, de vez em quando, durante todos esses anos. Não com freqüência, mas aparecia às vezes, e sempre conseguíamos que ele cantasse alguma coisa conosco. Eu o vi uma vez com a mulher e os filhos, andando pela rua Grafton. Sei que ele me viu, mas acho que não era o momento certo para parar e conversar com tipos como eu. Sabe como é... Tommy preferia manter seu passado longe da família.
Levantando o copo mais em sinal de resignação do que em brinde, continuou:
- Shawn... Esse eu lhe garanto, era uma figura rara!... Mandava notícias de Nova York, sempre garantindo que estava fazendo fortuna, e que quando acabasse de contar todo o seu dinheiro ia voltar para cá. Grande mentiroso, o Shawn! - Ele bebeu em sua homenagem.
- Trouxe o corpo de Jennie comigo.
- Trouxe? - Com o rosto largo e vermelho subitamente sério, Brian concordou com a cabeça. - Era a coisa certa a fazer. Ela gostaria disso. Tinha um coração de ouro, a Jennie. Espero que a polícia ponha as mãos no canalha que fez aquilo com ela.
- Essa é uma das razões pela qual viemos até aqui. Temos esperança de que você possa nos ajudar.
- Mas como poderia fazer isso, estando a um oceano de distância de onde o crime aconteceu?
- Porque tudo começou aqui, com Marlena. - Harry pegou a mão de Gina. - Acho que eu não lhe apresentei a minha esposa de forma apropriada, Brian, esta é Gina. Tenente Gina Weasley, do Departamento de Polícia da cidade de Nova York.
Brian engasgou com o uísque e bateu no peito para colocar ar dentro dos pulmões. Seus olhos se encheram d’água com o susto.
- Uma tira? Você se casou com uma mulher que é tira?
- Eu me casei com um cara que é criminoso, - murmurou Gina - mas ninguém nunca vê as coisas por esse lado.
- Eu vejo, querida. - Com ar divertido, Harry beijou-lhe a mão. - Constantemente.
Brian soltou outra daquelas gargalhadas escandalosas e serviu mais uma dose.
- Vamos brindar a vocês dois - propôs ele - e ao Dia de São Nunca, que finalmente chegou.
Ele ia ter que adiar o crime seguinte.
Rezou pedindo paciência. Afinal, já esperara tanto... Aquele, porém, era um sinal de Deus e ele compreendia isto. Ele se desviara do caminho, agira por conta própria ao plantar a bomba no carro dela.
Pecara e precisava rezar para pedir perdão também, além de paciência. Deveria ouvir apenas a força que o guiava. Sabia disso e estava arrependido. Lágrimas embaçaram-lhe a visão quando se ajoelhou, aceitando a penitência e a punição pela sua presunção e arrogância.
Como Moisés, falhara em sua missão e colocara Deus em teste.
O terço balançava em sua mão enquanto ele movia os dedos, de conta em conta, de dezena em dezena, com a mão experiente e uma profunda devoção.
Ave-maria, cheia de graça...
Ele não usava almofada alguma para os joelhos, pois aprendera que para receber perdão era necessário sofrer. Sem isso, ele se sentiria ainda impuro. Chamas de velas votivas, brancas para simbolizar a pureza, bruxuleavam e exalavam o cheiro de cera derretida.
Entre as velas a imagem da Virgem olhava para ele em silêncio, com ar de compaixão.
O rosto dele parecia envolto em sombras à luz das velas, mas de vez em quando parecia brilhar com visões da própria salvação.
... bendita sois vós entre as mulheres...
A prece para a Virgem Mãe era a sua oração favorita, e não era sacrifício algum recitá-la. Era reconfortante. Completando a quinta das nove dezenas que recebera como penitência, passou para os Mistérios Dolorosos. Limpou sua mente de assuntos mundanos e pensamentos carnais.
Como Maria, ele também era virgem. Aprendera que a sua inocência e a sua pureza eram o caminho para a glória. Sempre que a luxúria tentava penetrar em seu coração, fazendo seu sangue ferver e deixando-lhe a pele gosmenta, ele lutava com todas as forças contra o demônio que sussurrava em sua cabeça. Tanto seu corpo, bem treinado, quanto sua mente, bem afiada, eram dedicados à sua fé.
E as sementes de sua fé foram plantadas no sangue, criaram raízes na vingança e floresceram através da morte.
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