CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 09
No momento em que Harry saiu do prédio, viu Hermione segurando o estojo de Gina com uma das mãos e o braço da criança com a outra. Considerou a sua atitude muito acertada, pois sabia que ela não devia largá-lo. Pelo olhar do menino, era pouco provável que ele ficasse pela área agora que conseguira quatro fichas de crédito. Menos provável ainda que ficasse por perto tendo ao lado uma policial fardada.
Forçou-se a tirar da cabeça a imagem que acabara de ver para se concentrar naquela ali.
- Está com as mãos cheias, não é, Hermione?
- É... - Ela soltou o ar com força, fazendo estremecer sua franja reta. - O Serviço de Proteção à Infância não tem pressa nenhuma de chegar. - Olhou para o alto do prédio longamente. Se Gina pedira o seu estojo de trabalho é porque um crime fora cometido e a cena devia ser analisada e preservada para investigação. E ela ali, bancando a babá... - Creio que não seria aconselhável levar esse menor novamente lá para dentro; portanto se você pudesse levar o estojo de trabalho para a tenente eu...
- Pode levar você, se quiser, que eu tomo conta do menino.
Os olhos de Hermione brilharam de gratidão.
- Para mim está ótimo. - Com muita pressa e pouco tato, passou o menino para Harry, avisando: - Não o deixe escapar. - E entrou correndo.
Harry e o menino trocaram olhares desconfiados e frios.
- Sou mais rápido do que você. - disse Harry, lendo os pensamentos do menino. - E mais experiente também. - Agachando-se, Harry fez carinho atrás das orelhas do gato. - Qual é o nome dele?
- Dunga.
- Bem, Dunga não era o mais esperto dos sete anões, mas era o mais puro de coração. - disse, e viu um sorriso surgir nos lábios no menino. - E o seu nome, qual é?
O menino avaliou Harry com todo o cuidado. A maioria dos adultos com quem teve contato pensava que Branca de Neve era apenas o nome do pozinho branco ilegal que provocava sensações de felicidade.
- Meu nome é Kevin. - respondeu, sentindo-se um pouco mais à vontade ao ver que Dunga ronronava satisfeito debaixo dos dedos longos e carinhosos do estranho.
- Prazer em conhecê-lo, Kevin. Meu nome é Harry.
Ao ver a mão do estranho estendida para ele, Kevin soltou uma risadinha, correspondendo ao cumprimento:
- Muito prazer.
O som descontraído e adorável do riso da criança pareceu aliviar-lhe o peso no coração.
- Será que Dunga está com fome, Kevin?
- Talvez.
- Tem uma carrocinha de lanches bem ali adiante. Vamos lá conferir?
- Dunga adora cachorro-quente de soja. - informou Kevin, acompanhando o passo de Harry, muito empolgado com o seu golpe de sorte. A marca roxa fazia um contraste escuro e horrível com os olhos cinza-claros.
- É a melhor escolha para um paladar refinado.
- Você fala bonito.
- Essa é uma forma legal de fazer as pessoas acreditarem que você está dizendo algo mais importante do que na verdade é.
Segurou a mão do menino de leve, mas a soltou logo em seguida, quando sentiu o cheiro da carrocinha encher o ar. Kevin saiu correndo na frente, pulando e se colocando na ponta dos pés ao chegar junto da grelha, onde salsichas de soja e rolinhos de peru desfiado espalhavam em volta o seu aroma agradável.
- Já não lhe disse para cair fora, garoto? - A vendedora tentou enxotar Kevin dali, rangendo os dentes quando o menino começou a pular em volta dela, escapando com esperteza das mãos que tentavam agarrá-lo. - Aqui não tem lanche grátis para moleques melequentos não. - Pegou um garfo comprido, de churrasqueira, e o balançou no ar, ameaçando: - Se continuar me empentelhando, vou retalhar esse gato horroroso e fritar o fígado dele.
- Estou com grana! - informou Kevin, apertando o gato com mais força, mas mantendo a pose. Seu estômago roncava de medo e fome.
- Sei, sei... - duvidou a vendedora -... e eu cago bolotinhas de ouro. Vá mendigar em outro canto, garoto, senão vou deixar o seu olho esquerdo roxo também.
Harry surgiu, colocou a mão sobre o ombro de Kevin e viu que a vendedora se encolheu toda ao receber o seu olhar duro.
- Já decidiu o que vai querer, Kevin?
- Ela me disse que vai fritar o fígado de Dunga.
- Estava só brincando com o garoto. - A mulher sorriu com vontade, mostrando dentes que comprovavam sua aversão à higiene bucal. - Tenho sempre uma piada pronta e algumas batatinhas fritas para os meninos da vizinhança.
- Sim, tenho certeza de que você é a fada madrinha da garotada. Quero seis cachorros-quentes de soja para viagem, três porções de batatas fritas, duas embalagens de suco de frutas, um pacote grande de pretzels e duas garrafas grandes de... o que vai beber, Kevin?
- Um refrigerante de laranja. - respondeu o menino, aturdido com a grandiosidade do banquete.
- Dois, então, e uma porção dessas barrinhas de chocolate para encerrar.
- Sim, senhor, é pra já! - A mulher pôs-se a trabalhar com disposição, enquanto Kevin olhava para Harry com os olhos esbugalhados e o queixo caído.
- Você quer mais alguma coisa? - perguntou Harry, enquanto procurava nos bolsos algumas fichas de crédito.
Kevin simplesmente balançou a cabeça. Jamais vira tanta comida de uma vez só. Dunga, inspirado pelo cheiro, soltou um miado longo.
- Tome! - Harry pegou um dos cachorros-quentes de soja e o entregou a Kevin. - Por que não segura o seu lanche com cuidado, volta para o carro da tenente e espera por mim lá?...
- Certo.
Kevin saiu, deu três passos e então, virando-se para trás, fez uma coisa tão infantil que aqueceu o coração de Harry: olhou nos olhos da vendedora, colocou a língua para fora e saiu correndo.
Harry pegou a embalagem com o resto do lanche, ignorando o papo furado da mulher da carrocinha. Jogou as fichas de crédito sobre o pequeno balcão e olhou para a vendedora através da fumaça, dizendo:
- Estou louco para arrebentar as fuças de alguém, louco de verdade para fazer isso, nem sei como é que você ainda está inteira. Agora ouça bem: se algum dia você colocar as mãos naquele garoto, pode ter certeza de que eu vou ficar sabendo. Nesse dia, não vai ser um fígado de gato que vai parar em cima da grelha não. Entendeu?
- Sim, senhor, entendi. Com certeza! - Seus dedos já estavam recolhendo as fichas, mas os olhos continuavam temerosos, grudados em Harry. - É que eu não sabia que aquele garoto tinha pai. Pensei que fosse apenas mais um moleque de rua. Eles são piores do que ratos, catando comida no lixo, atrapalhando a vida da gente e enchendo o saco das pessoas decentes como eu.
- Olhe, vamos fazer o seguinte. - Harry esticou a mão e apertou o pulso da mulher com toda a força. Precisou de todo o controle que conseguiu reunir para não quebrar-lhe o braço como se fosse um graveto seco - Eu vou levar mais ou menos trinta segundos para chegar até o lugar onde o menino foi me esperar, ali adiante. Quando chegar lá, vou virar e olhar para cá. Não quero vê-la aqui.
- Mas esse é o meu ponto...!
- Então eu a aconselho a procurar outro. - Harry a soltou e pegou a embalagem para viagem. Tinha dado apenas alguns passos quando ouviu o barulho metálico do carrinho se movimentando. Sentiu uma pequena satisfação por isso. Uma alegria bem maior foi ver Kevin sentado no capo da viatura de Gina, com o gato ao lado, cada um dos dois devorando metade de um cachorro-quente de soja.
Harry se juntou ao menino, colocou a embalagem com o lanche entre os dois e autorizou:
- Pode atacar.
A mão de Kevin voou para dentro da caixa, mas, logo em seguida, foi recolhida com ar desconfiado, como se o menino estivesse com medo de algo.
- Posso pegar qualquer coisa?
- Tudo o que conseguir comer. - Harry pegou uma batata frita, deu uma mordida e notou que a carrocinha já desaparecera. - Ela é sempre assim, tão desagradável?
- Hum-hum. - confirmou ele com a cabeça. - Os meninos maiores a chamam de “piranha cagüeteira”, porque ela sempre dedura a gente para os andróides de patrulha. Ainda por cima tem uma arma de atordoar escondida no carrinho. Mas se borrou toda de medo, e olha que você nem tentou roubar nada.
Harry se serviu de outra batata frita, levantando a sobrancelha ao ver Kevin abocanhar o chocolate todo. A vida, pensou, era incerta demais e ninguém devia deixar para aproveitá-la mais tarde.
- Conte-me tudo a respeito do sujeito que lhe pediu para esperar a tenente Weasley.
- Era apenas um cara. - disse Kevin, pegando outro cachorro-quente e dividindo-o ao meio. Menino e gato comeram tudo com a mesma concentração, voracidade e falta de finesse. Então Kevin ficou petrificado ao ver duas radiopatrulhas virando a esquina com as sirenes ligadas. Atrás delas vinha uma van com os peritos da polícia.
- Eles não vão importunar você. - disse Harry baixinho.
- Você também é tira?
A gargalhada de Harry foi tão forte que fez Kevin sorrir, meio desconfiado. Ficou com vontade de segurar a mão de Harry novamente quando viu aquele bando de tiras passando apressados, mas ficou com medo de ser chamado de “fresquinho” pelos amigos. Contentou-se em chegar um pouco mais perto de Harry e percebeu, por um instante, que o cara cheirava bem... um cheiro quase tão bom quanto o da comida.
- Ah, bem que eu precisava disso. - comentou Harry, ainda rindo. Em seguida despenteou o cabelo do menino, com carinho, e soltou um longo suspiro. - Precisava de uma boa gargalhada depois de uma manhã miserável como essa. Sabe o que eu sou, Kevin? Um moleque de rua crescido. Olhe, beba um pouco disso aqui para ajudar a comida a descer, antes que você se engasgue.
- Obrigado. - Pegando a lata, bebeu um pouco do refrigerante cheio de gás. - O cara falava assim, que nem você...
- Assim como?
- Desse jeito... assim meio cantado. Sabe como é, as palavras parecem subir e descer. - Enfiou uma quantidade imensa de batatas fritas na boca.
- É que é difícil tirar a Irlanda de dentro das pessoas. - murmurou Harry. - Como é que ele parecia?
- Sei lá... era meio alto.
- Jovem, velho...?
A resposta do garoto foi um encolher de ombros e um grunhido, seguido por um arroto.
- Só sei que ele devia estar com calor. - garantiu.
- Por que acha isso, Kevin?
- Estava usando um casacão comprido, um chapéu, cachecol e luvas. O perfume dele era muito bom. - Kevin empinou o nariz, girando os olhos, e então, dando uma risada, pegou mais comida.
- Feche os olhos. - pediu Harry, e quase sorriu ao ver a velocidade com que Kevin atendeu. - Que tipo de sapatos estou usando? Não vale olhar!
- São pretos, muito brilhantes e quase não fazem barulho quando você anda.
- Muito bem. Como eram os sapatos que ele usava?
- Pretos também, com uma listra vermelha do lado. Tinham sola alta, daquela que os meninos mais velhos gostam. Estavam muito usados. Os sapatos ficam mais macios depois que a gente usa muito.
- Certo. Qual é a cor dos meus olhos?
- São muito, muito azuis. Como nos anúncios.
- E qual era a cor dos olhos dele?
- Eram... verdes, eu acho. Quer dizer, eram meio verdes, mas não tão verdes quanto os de Dunga. Talvez fossem verdes, mas pareciam maus. Não maus como os seus quando você falou com a piranha cagüete. Os dele eram mais assustadores. Isso é pior, porque eles batem com mais força quando têm olhos daquele jeito.
- Batem mesmo. - murmurou Harry, colocando o braço sobre os ombros de Kevin. - Você saca as coisas muito bem. A tenente Weasley diria que você pode se tornar um bom tira.
- Trabalho de merda! - reagiu Kevin, tornando a arrotar e balançando a cabeça para os lados.
- Muitas vezes é mesmo. - concordou Harry. - Quem deixou seu olho roxo, Kevin?
- Esbarrei na quina de um móvel. - Harry sentiu o menino se retrair ligeiramente.
- Eu também tinha esse problema quando era da sua idade. Sua mãe vai ficar tomando conta de você o resto do dia?
- Que nada. Ela trabalha até tarde, então dorme quase o dia todo. Fica pau da vida quando eu atrapalho o sono dela.
Com carinho, Harry pegou o queixo do garoto com a mão, até seus olhares se encontrarem. Não salvara Jennie, pensou, e ia ter de conviver com aquilo. Mas havia crianças perdidas por toda parte.
- Você quer ficar aqui? Quer ficar com ela?
Para Kevin, o rosto do homem parecia o de um anjo. Ele já vira um em um filme, quando entrara escondido em uma sala de vídeo.
- Não tenho outro lugar para onde ir. - disse o menino.
- Não é isso que eu estou perguntando a você. - disse Harry baixinho. - Você quer ficar aqui em sua casa com ela ou quer ir com o pessoal do Serviço de Proteção à Infância?
- O pessoal do Serviço de Proteção coloca as crianças em uma caixa e depois as vendem. - Kevin engoliu em seco ao dizer isso.
- Não, nada disso! - Para uma criança, talvez essa fosse a primeira impressão, e Harry sabia bem disso. Quando criança, ele também escolhera ser agredido pelos punhos do pai a ser entregue ao sistema. - Você gostaria de ir para um lugar completamente diferente?
- Posso ir com você? Poderia trabalhar para você.
- Um dia, quem sabe...? - Harry tornou a despentear o cabelo do menino, com carinho. - Conheço umas pessoas das quais você vai gostar. Se quiser, vou ver se você pode ficar com elas. E se preferir, pode experimentar morar lá apenas por algum tempo, para depois decidir.
- Mas o Dunga vai ter que ir também. - Kevin estava disposto a desistir da mãe, com seus olhos infelizes e mãos rápidas, mas não abria mão do gato.
- Claro que vai.
Kevin mordeu o lábio, pensativo, e tornou a olhar para o prédio, perguntando:
- Não vou mais precisar voltar para lá?
- Não. - garantiu Harry. Pelo menos enquanto o dinheiro puder comprar liberdade e alternativas. - Não vai precisar.
Quando Gina acabou suas tarefas e saiu do prédio ficou surpresa e um pouco chateada ao ver que Harry e o menino ainda estavam ali. Os dois estavam um pouco adiante, na calçada, conversando com uma mulher. Pelo uniforme azul-marinho, a arma de atordoar na cintura e a expressão grave, Gina percebeu que ela era a assistente social que cuidava daquela área da cidade.
Por que diabos ela não está levando o garoto? Perguntou-se Gina, desejando que o menino e Harry já estivessem longe dali quando o corpo saísse do prédio, a fim de ser levado para o necrotério.
- Todas as provas já foram recolhidas e devidamente etiquetadas, Weasley. - anunciou Hermione, colocando-se ao lado de Gina. - Já estão trazendo o corpo da vítima.
- Vá até lá e peça para eles esperarem cinco minutos. - pediu Gina, encaminhando-se em seguida na direção deles. Sentiu alívio ao ver que a assistente social já estava indo embora, levando o garoto. Para sua surpresa, o menino se virou para trás, lançou um sorriso cativante para Harry e acenou. - O Serviço de Proteção à Infância demorou demais, como sempre. - comentou ela ao chegar junto dele.
- Crianças abandonadas existem aos montes e, para algumas pessoas, recolhê-las é apenas rotina. - Virando-se, ele a deixou desconcertada ao beijá-la longa e ardentemente. - Algumas dessas crianças, porém, encontram o próprio caminho sozinhas.
- Estou de serviço. - murmurou ela, lançando um olhar por cima do ombro para ver se estavam sendo observados. - Você devia pegar um táxi e ir para casa. Vou logo em seguida, tenho apenas algumas coisas para...
- Eu espero.
- Vá para casa, Harry.
- Ela já está morta, Gina. Não é Jennie que vai ser trazida em um saco preto, apenas o corpo que a hospedou por algum tempo.
- Tudo bem, seja cabeça-dura se quiser. - Pegou o comunicador e comandou: - Podem trazê-la! - Mesmo assim, fez o melhor possível para distraí-lo. - E então, o que estava tramando com a assistente social?
- Ofereci-lhe algumas sugestões a respeito de um lar provisório que fosse adequado para Kevin.
- Ah, é?
- Acho que Richard DeBlass e Elizabeth Barrister vão se dar muito bem com o menino. - Notou o sinal de estranheza no rosto de Gina, que uniu as sobrancelhas. - Já faz quase um ano que a filha deles foi assassinada, e algum tempo já se passou desde que conseguiram extirpar o câncer que corroia toda a família. Elizabeth comentou comigo que ela e Richard estavam pensando em adotar uma criança.
Fora por meio do caso DeBlass que Gina e Harry haviam se conhecido. Gina lembrou disso naquele momento, nas perdas e nos ganhos, e comentou:
- São os ciclos da vida, eu acho.
- Que escolha o menino tem? - Harry viu a equipe do necrotério passar com o corpo. - Ele precisa de um lar. Sua mãe o espanca... quando aparece em casa. Ele tem sete anos, ou pelo menos acha que tem essa idade. Não sabe nem mesmo o dia do seu aniversário.
- Quanto você vai... doar para o Serviço de Proteção à Infância? - perguntou Gina, acertando em cheio e fazendo-o sorrir.
- O bastante para assegurar que o garoto tenha uma chance. - Tocou o cabelo de Gina. - Já existem crianças demais pelo mundo, largadas em becos com pernas ou braços quebrados, Gina. Nós dois passamos por experiências pessoais que comprovam esse fato.
- Quando a gente se envolve demais, é o coração que acaba quebrado. - Ela suspirou. - Se bem que não adianta falar nada depois que você toma suas decisões. Ele tem um sorriso lindo. - acrescentou.
- Tem sim.
- Vou ter que interrogá-lo. Já que você armou tudo para que o menino seja enviado para a Virgínia, é melhor colocar isso como prioridade.
- Não creio que você vá precisar mais dele. Kevin já me contou tudo o que sabia.
- Ah, já?... - A boca de Gina ficou séria, e seus olhos, furiosos e duros. Era o seu aspecto de tira, reconheceu Harry com admiração e uma surpreendente fisgada de tesão. - Você o interrogou? Droga, você interrogou aquele menino sobre um caso em aberto? Um menor interrogado sem a autorização dos pais nem a presença de uma representante do Serviço de Proteção à Infância? Em que estava pensando ao fazer uma coisa dessas?
- Em um menino muito jovem e em uma garota que um dia amei.
Gina soltou o ar com força por entre os dentes e esperou a raiva se dissipar. Depois de dar alguns passos para um lado e para outro da calçada, sentiu-se mais controlada.
- Você sabe muito bem que eu não posso usar nenhuma das informações que você conseguiu com o garoto. Se ele abrir a boca e contar para alguém que conversou a respeito do caso com um civil vai ser uma cagada completa. A investigadora principal é casada com você, o principal suspeito é seu empregado e desfruta de sua amizade e lealdade. Qualquer informação que você tenha conseguido através do menino não poderá ser utilizada.
- Como sabia muito bem que você ia analisar a história por esse ponto de vista técnico, tomei a precaução de gravar toda a conversa. - Pegou um micro-gravador no bolso. - Você pode levar isso como prova, e pode testemunhar pessoalmente que eu não tive tempo nem oportunidade de adulterar a gravação.
- Quer dizer que você gravou a conversa com um menor envolvido em um caso de homicídio em aberto. - Jogou as mãos para cima. - Isso é o máximo mesmo!
- De nada. - reagiu ele. - E embora você tenha escrúpulos em aceitar isso como prova legal, apesar de nós sabermos que dá para contornar a lei e tornar a prova válida, não acredito que seja teimosa o bastante para ignorá-la.
Transbordando de raiva, Gina pegou o gravador das mãos dele e o guardou no bolso, avisando:
- Na primeira oportunidade que aparecer, pode ter certeza de que eu vou até a cidade só para meter o bedelho em uma das suas reuniões de diretoria.
- Para você, querida Gina, minhas portas estarão sempre abertas.
- Vamos ver se você vai dar esse sorriso quando eu estragar uma das suas incorporações empresariais de um bilhão de dólares.
- Só imaginar essa cena já vale o prejuízo. - Mantendo o sorriso nos lábios, pegou algo no bolso e lhe ofereceu. - Tome, eu salvei uma barrinha de chocolate para você, o que, diante das circunstâncias, foi um ato heróico.
- Você acha que pode me subornar com chocolate? - perguntou ela, franzindo a testa.
- Conheço suas fraquezas.
Ela pegou o chocolate, desembrulhou-o e deu uma mordida, avisando:
- Continuo pau da vida com você.
- Estou arrasado com isso.
- Ora, cale a boca. Vou levá-lo para casa. - disse ela depois de mais uma dentada. - E quero que fique longe enquanto converso com Moody.
- Se escutar a gravação com atenção, vai ver que o homem que Kevin descreveu não era Moody.
- Obrigada pela avaliação, mas deixe que eu descubro isso sozinha. A chance de eu conseguir que o comandante aceite como material válido para o processo a declaração gravada de um menino de sete anos que deve ter falado com a boca cheia de chocolate é a mesma de me ver dançando nua em plena Times Square. - Saiu de perto dele a passos largos.
- Se a Times Square deixa você intimidada - começou Harry - talvez seja melhor ensaiar um pouco antes, dançando nua lá em casa.
- Isso!... Pode pegar no meu pé!...
- Adoraria querida, mas você está de serviço.
- Entre na porcaria do carro! - Gina fez um sinal com o polegar, chamando Hermione, que tentava de tudo para parecer surda e cega.
- Por favor, Gina, essas demonstrações públicas de afeto precisam parar. Tenho um nome a zelar.
- Continue bancando o engraçadinho, gostosão, que vou lhe dar uma demonstração pública de afeto que vai deixá-lo mancando por uma semana.
- Agora fiquei excitado. - Sorrindo, Harry abriu a porta do carona e gesticulou de forma cavalheiresca para Hermione.
- Ahn... não é melhor eu ir atrás? - Onde é mais seguro, pensou Hermione.
- Não, não, eu vou atrás, insisto nisso. Ela provavelmente não vai agredi-la. - murmurou Harry no ouvido de Hermione quando ela se abaixou para entrar no veículo.
- Obrigada. Obrigada mesmo.
- E sinta-se muito grato por eu não levantar a grade entre o banco da frente e o de trás. - completou Gina no momento em que Harry se sentou no banco traseiro.
- Eu me sinto grato, querida. O tempo todo.
- Isso foi uma risadinha, Hermione? - quis saber Gina, enquanto saía com o carro.
- Não, senhora. É, ahn... alergia. Sou alérgica a brigas de casais.
- Isso não é uma briga de casal. Você vai perceber a diferença quando assistir a uma briga de casal entre nós. Tome. - Ofereceu o restinho da barra de chocolate para Hermione. - Coma isso e veja se não engorda.
- Tomara...
Ainda fumegando, os olhos de Gina se encontraram com os de Harry pelo espelho retrovisor e ela avisou:
- É melhor você começar a torcer para que Moody tenha um álibi para hoje de manhã.
Ele não tinha, e tudo o que Gina conseguiu fazer foi puxar os cabelos.
- Como assim você “deu uma saída”...?
- Como sempre, levantei-me às cinco da manhã e fui fazer a minha caminhada matinal. Como era dia de mercado, voltei, peguei um dos veículos e fui até a feirinha dos adeptos da Família Livre, em busca de produtos frescos.
Gina se sentou no braço de uma poltrona da sala de estar e reclamou:
- Eu não lhe disse para não sair de casa nem ir a lugar algum desacompanhado?
- Não tenho o hábito de cumprir ordens quando o assunto diz respeito à minha rotina pessoal, tenente.
- A sua rotina pessoal vai ser enriquecida com duchas coletivas, onde até mesmo uma bunda magra como a sua vai atrair a atenção, a não ser que resolva me escutar.
- Não aprecio a sua rispidez. - reagiu Moody, apertando os maxilares.
- E eu não aprecio a sua ranhetice, então empatamos. Hoje de manhã, mais ou menos às nove horas, Jennie O’Leary foi encontrada enforcada em um quarto de hotel na rua 43, no West Side.
O vermelho de fúria que se espalhara por suas bochechas desapareceu de repente, deixando-o pálido. Esticou a mão, tateando em volta, tentando achar um lugar para se apoiar ao sentir que os joelhos se dobravam. Através do zumbido que se instalou em sua cabeça, pensou ter ouvido um xingamento, e então se sentiu sendo encaminhado para uma cadeira; um copo foi pressionado contra seus lábios.
- Beba isso. - ordenou Gina, sentindo-se abalada também. - Beba tudo e se recomponha, porque se você desmaiar eu vou deixá-lo caído no chão.
Essas palavras tiveram o efeito de trazê-lo de volta à realidade.
- Estou perfeitamente bem. - disse. - Fiquei apenas chocado por um momento.
- Você a conhecia...
- Claro que conhecia. Ela e Harry tiveram um relacionamento, por algum tempo.
- E agora ela está morta. - A voz de Gina estava sem expressão, mas seu coração se acalmou ao observar o rosto de Moody e notar que ele já se recuperara. - É melhor você conseguir me descrever tudo passo a passo. Onde esteve, o que fez, quem viu, com quem falou e quantas drogas de maçãs comprou. Nesse momento sou a melhor amiga que você tem no mundo.
- Se chegamos a esse ponto, tenente, acho que gostaria de ligar para o meu advogado.
- Ótimo, excelente, faça isso. Por que não foder com tudo logo de uma vez? - Girou o corpo para caminhar pela sala a passos largos. - Agora me escute com atenção: estou no maior sufoco aqui, porque você é importante para Harry. As provas contra você são apenas circunstanciais, mas estão aumentando cada vez mais. Vai haver pressão da mídia, o que significa pressão sobre o departamento. O promotor vai querer espetar a bunda de alguém, e as evidências contra você já formam uma pilha grande o bastante para ele mandar detê-lo para outro interrogatório. Ele ainda não tem o bastante para indiciá-lo, mas falta pouco. Se o promotor entrar em cena, há grandes chances de eu ser retirada do caso. - continuou ela, fazendo uma pausa em seguida, enquanto fixava o olhar em um ponto indeterminado a meia distância. - De qualquer modo, calculo que tenhamos mais uma semana, no máximo, para resolver o caso. Depois disso, provavelmente você vai estar lidando com outro tira.
- É melhor aturar demônios que a gente já conhece. - considerou Moody, acenando com a cabeça.
Concordando com ele, Gina pegou o gravador, colocou-o sobre a mesa e se sentou, dizendo:
- Vamos começar logo, então.
- A propósito, comprei dois quilos de maçãs. - Chegou muito perto de sorrir, o que fez Gina piscar, surpresa. - Teremos torta de maçã hoje.
- Humm, que delícia. - reagiu Gina, com água na boca.
Uma hora e meia depois, Gina já estava levando os discos para o escritório, acompanhada por uma baita dor de cabeça. Só faltou gemer ao avistar Rony instalado em sua mesa, muito à vontade, com os pés para cima e as pernas cruzadas na altura dos tornozelos, exibindo ridículas meias floridas.
- Fique à vontade, detetive. - convidou ela, e acentuou a ironia empurrando com força os pés dele.
- Desculpe, tenente. Estava só descansando um pouquinho.
- Estou contra a parede, Rony, e isso significa que a sua bunda está na reta junto com a minha. Não temos tempo para descansar nem um pouquinho. Cadê Hermione?
- Está usando um dos outros aposentos deste castelo para pesquisar dados da sua mais recente vítima e para desempenhar outros atos oficiais, imagino. Conte para mim, tenente... ela é mesmo toda daquele jeito, cheia de normas, ou algumas delas somem quando ela tira a farda?
- Você por acaso está acalentando a idéia de despir a policial Granger de seu uniforme, Ronald? - perguntou Gina, indo até o AutoChef e ordenando café, bem quente e bem forte.
- Não, não... - Ele pulou da cadeira tão depressa que os quatro pingentes de prata que usava na orelha bateram uns nos outros, emitindo um som musical. – Não. - disse uma terceira vez. - Estou perguntando só por curiosidade. Ela não é meu tipo.
- Então por que não dispensamos o papo inadequado e tratamos de trabalhar?
Ele virou os olhos para cima quando Gina lhe deu as costas. Pelo que via, as duas policiais com quem estava trabalhando eram cheias de normas.
- O equipamento que Harry mandou entregar é muito mais que demais! - elogiou ele. - Levou algum tempo para conseguirmos instalar e configurar tudo, mas já o coloquei para fazer uma pesquisa e rastrear a ligação desta manhã. Ah, já ia me esquecendo: duas pessoas ligaram também enquanto a senhora esteve fora, tenente. - Solícito, apertou um botão para arquivar as chamadas, informando: - Uma delas foi Nymphadora Tonks. Ela quer vê-la o mais rápido possível. A outra pessoa chama-se Luna, mas não disse o sobrenome. Avisou que vai passar aqui logo mais, à noite.
- Ora, obrigada por demonstrar tanto interesse por minhas ligações pessoais.
- De nada... - rebateu ele, sem entender o sarcasmo. - Quer dizer que essa tal de Luna é amiga sua, é?...
- É, e mora com um cara que conseguiria quebrar você em mil pedaços bem pequenos com uma mão só.
- Bem, então deixa pra lá... Escute, quem sabe eu não poderia comer alguma coisa enquanto espero o programa encontrar... - Parou de falar ao ouvir a unidade de rastreamento emitir bipes agudos. - Beleza!... - Pulou atrás da mesa, fazendo o rabo-de-cavalo cair por sobre os ombros, assobiando uma melodia alegre enquanto uma fita comprida era cuspida da máquina. - Mas que filho-da-mãe esperto! Muito esperto mesmo! Jogou o registro das ondas até o inferno e depois voltou com elas. Zurique, Moscou, Des Moines, pelo amor de Deus! Satélite Regis Seis, estação espacial Utopia, Birmingham. Estou adorando isso!
Gina já vira um olhar de empolgação semelhante àquele nos olhos de Neville e compreendeu que isso devia ser efeito colateral do trabalho na Divisão de Detecção Eletrônica.
- Não quero saber para onde ele está jogando os registros, Rony, o importante é saber de onde ele faz isso.
- Está pintando... está pintando!... Até mesmo a tecnologia avançada precisa de um pouco de paciência... Nova York. A origem de tudo é Nova York. A senhora mandou bem, tenente.
- Refine a pesquisa. Consiga-me um endereço.
- Estou correndo atrás. - Agitou as mãos para trás quando Gina chegou perto da sua nuca. - Ei, tenente, me dê um pouco de espaço para trabalhar, embora eu deva mencionar que o seu perfume é fantástico. Origem da transmissão rastreada, cidade de Nova York. Encontre a área! - ordenou ele.
Processando... Tempo estimado para completar a operação: oito minutos e quinze segundos.
- Pode começar! - ordenou ele à máquina. - Eu bem que gostaria de um hambúrguer. Temos algum por aqui?
- E como deseja que ele seja preparado, senhor? - quis saber Gina, lutando para manter a paciência.
- Humm... Malpassado, com uma fatia de provolone, muita mostarda, em um pão com gergelim e uma salada de macarrão para acompanhar. Ah... e um copo daquele café de arrasar.
- Ué?! - Gina respirou fundo e expirou devagar. - Mas como?... - disse com a voz doce. - Sem sobremesa?
- Bem, já que mencionou, que tal...
- Tenente! - chamou Hermione, e entrou correndo no escritório. - Estou com todos os dados da última vítima.
- Vamos para a cozinha, Hermione. Vou preparar o almoço para o detetive.
O olhar arrasador que Hermione lançou para Rony foi retribuído na forma de um sorriso insolente.
- Quanto tempo falta para Neville voltar, hein? - quis saber Hermione.
- Cento e duas horas e vinte e três minutos, mas quem está contando? - Gina programou o AutoChef com as especificações do lanche solicitado por Rony. - O que conseguiu?
- A vítima saiu do Aeroporto Shannon, em Dublin, ontem à tarde, às quatro horas. Desembarcou no anexo Europa do Aeroporto Kennedy, aqui em Nova York, à uma da tarde, hora local. Hospedou-se no Palace, onde chegou às duas horas, instalando-se em uma suíte pré-paga. As acomodações foram reservadas e pagas pelas Indústrias Potter.
- Merda!
- As quatro horas, a vítima saiu do hotel. Ainda não consegui descobrir a empresa do táxi que a pegou. Anotei o nome do porteiro que estava de serviço, mas ele não está... volta em uma hora. A vítima deixou a chave do quarto na recepção e não apareceu mais.
- Ordene que eles isolem o quarto dela. Ninguém entra. Mande um guarda ficar na porta até chegarmos lá.
- Já fiz isso.
- Coma alguma coisa, porque vamos ter um dia cheio. - aconselhou Rony, enquanto pegava o almoço de Rony.
- Talvez Rony tenha bom gosto para alguma coisa, afinal. - elogiou Hermione, cheirando o hambúrguer. - Vou querer um desses. Você vai comer também?
- Mais tarde. - Gina foi até o escritório e colocou o prato sobre a mesa. - E aí, progredimos?
- Já identifiquei a área, só falta o quarteirão. Estamos quase lá. - Pegando o hambúrguer com uma das mãos, mordeu-o com vontade. - Deus existe! - conseguiu exclamar com a boca cheia. - Isso é carne de vaca de verdade! Melhor que leite materno. Quer um pedaço?
- Dispenso. Rony, esses brinquinhos todos pendurados na sua orelha não pesam não?... É bom colocar alguns na outra orelha para equilibrar, senão você vai começar a andar com a cabeça torta.
- É o preço de estar sempre na moda. Pronto! Área cinco, sim, sim... quarteirões A e B. - Com a mão cheia de anéis, empurrou o prato do lanche para o lado, fazendo surgir o mapa quadriculado que desdobrara sobre a mesa. - Isso nos coloca... - foi descendo com os dedos sobre o mapa e parou de repente -... aqui. Bem aqui! - repetiu, levantando os olhos e fitando Gina. - Exatamente no lugar em que estou agora, comendo este hambúrguer bovino realmente admirável.
- Essa informação está errada.
- Posso repassar, mas garanto que vamos confirmar que a transmissão se originou aqui nesta casa, ou pelo menos no terreno onde ela foi construída. Este lugar ocupa o quarteirão todo.
- Repita a busca. - ordenou ela, virando-se para sair.
- Sim, senhora.
- Rony, qual a probabilidade de erro em rastreamentos feitos com esse aparelho?
- Humm... - pensou, brincando com a fita vermelha que usava à guisa de gravata. - Menos de um por cento.
- Quero saber se dá para segurar um pouco essa informação. - perguntou Gina, apertando um pouco os lábios e tornando a se virar para ele. - Não quero que envie nenhum relatório sobre esses dados para a central até que eu consiga... até que eu consiga achar outro rumo para essa investigação. Dá para você fazer isso para mim?
- Você é a investigadora principal, Weasley. - observou ele, recostando-se na cadeira. - Você é quem manda. Esses dados são difíceis de pegar mesmo; perdem-se à toa e leva um tempo para conseguirmos pescá-los novamente.
- Obrigada.
- Eu é que agradeço pelo hambúrguer. Vou refazer tudo passo a passo e ver o que pinta. Neville me disse que você é a melhor, e ele sabe das coisas. Se você acha que tem alguma coisa errada, talvez tenha mesmo. E se for o caso, sou bom o bastante para descobrir.
- Conto com isso. Hermione...?
- Sim, senhora, estou chegando. - Segurando um prato cheio, Hermione apareceu.
- Coloque esse lanche em um saco para viagem, se estiver realmente com fome, e vamos picar a mula. Estamos em cima da hora.
- Espere só um... - Vendo que estava falando para as costas de Gina, Hermione largou o prato na frente de Rony, perguntando: - Quer essa coisa gostosa pra você?
- Claro que quero... a gente se vê depois, coisa gostosa! - Levantou as sobrancelhas para cima e para baixo quando ela se virou com olhar assassino. Depois, soltou um suspiro longo ao vê-la sair. - Gostosa mesmo... - murmurou, arregaçando as mangas e voltando ao trabalho.
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