CAPÍTULO 04



CAPÍTULO 04


 


- Preciso que você pense bem, com todo o cuidado, Maureen. Quero que fique calma e com a cabeça fresca.


Encolhida sobre uma poltrona com o estofamento cuidadosamente remendado em seu quarto que ficava sobre o Trifólio Verde, Maureen passou a ponta da língua sobre os lábios para umedecê-los.


- Não vou para a cadeia nem ser deportada?


- Você não está em nenhum tipo de encrenca, eu lhe garanto. - Gina se inclinou para a poltrona. - Se me ajudar, Maureen, e se ajudar Shawn também, posso mexer alguns pauzinhos a fim de conseguir documentos verdadeiros para você. Nunca mais você vai precisar se preocupar com a Imigração.


- Não quero que nada de mal aconteça a Shawn, juro que não. Ele sempre foi muito legal comigo. - Hermione acabara de chegar, e os olhos de Maureen voaram para o lugar em que a ajudante de Gina se mantinha em pé, ao lado da porta. - É que estou um pouco nervosa, entende? Tiras sempre me deixam nervosa.


- Mas Hermione é mansa como um felino de estimação, não é, Hermione?


- Pareço até uma gatinha malhada, tenente.


- Ajude-nos, Maureen. Pense no que aconteceu ontem. Quando foi a última vez em que você viu Shawn?


- Acho que foi na noite passada, depois de encerrar o meu turno lá embaixo. Shawn começa a trabalhar no meio da tarde. Meu horário é de onze da manhã, hora em que abrimos o pub, às oito da noite. Tiro dois intervalos de meia hora. Shawn trabalha até meia-noite, quase sempre. Depois, retorna por volta de uma da manhã e pega o horário depois do expediente até... - Calou a boca de repente, parecendo um molusco assustado que fecha sua concha.


- Maureen. - disse Gina, tentando demonstrar paciência. - Não estou preocupada com o fato de o pub de vocês funcionar depois do horário permitido. Fiscalizar isso não é função minha, não tem nada a ver com o meu trabalho.


- Bem, é que a gente funciona até depois do horário de vez em quando. - Ela começou a torcer as mãos de aflição. - Vou ser posta na rua se o patrão descobrir que contei aos tiras uma coisa como essa.


- Não vai não, porque ninguém vai incomodá-lo por isso. Muito bem, então você viu Shawn na noite passada, antes de terminar o seu turno, às oito.


- Foi... isso mesmo. Depois que terminei o serviço, subi para o meu quarto. Ele estava atrás do balcão e me disse algo como: “Maureen, querida, não deixe aquele rapagão roubar nenhum dos beijos que você está guardando para mim.”


Gina levantou uma das sobrancelhas e Maureen ficou vermelha como um pimentão, completando:


- Ele não quis dizer nada de especial, tenente. Foi uma brincadeira. Shawn tem uns quarenta anos e não rola nada desse tipo entre nós. É que eu conheço um rapaz, isto é... - Continuou torcendo as mãos, olhando nervosamente para Hermione. - Ele já é um homem, e nós temos nos encontrado ultimamente. Estamos começando a nos conhecer melhor, e Shawn sabia que eu ia me encontrar com ele na noite passada, por isso ficou me zoando.


- Muito bem. Então você viu Shawn pela última vez na hora em que saiu, às oito. Depois...


- Ah, espere um instante! - Maureen levantou as mãos como se tivesse se lembrado de algo. - Eu tornei a vê-lo depois disso, tinha até esquecido... bem, na verdade não o “vi”. Ouvi sua voz quando voltei do encontro com Mike... esse é o nome do rapaz com quem tenho saído. Ouvi Shawn conversando com alguém no momento em que voltei para casa. - disse, e abriu um sorriso, feliz como um cachorrinho que acaba de realizar o novo truque ensinado pelo dono.


- Com quem ele estava falando?


- Não sei. Quando a gente entra, é obrigada a passar pela porta do quarto de Shawn para vir aqui para cima. Já devia ser mais de meia-noite e Shawn estava descansando em seu intervalo, antes de começar o horário extra. O prédio é antigo e as paredes são muito finas, dá para ouvir o que as pessoas falam. Foi assim que eu ouvi Shawn conversando com outro homem em seu quarto.


- E deu para ouvir o que eles falavam?


- Não muito. Eu estava só passando pela porta, mas me lembro que fiquei satisfeita por notar que Shawn parecia feliz. Estava rindo e comentou algo a respeito de “ser uma boa idéia”; depois disse que topava, com certeza.


- Tem certeza de que ele estava conversando com um homem?


- Bem, foi mais uma impressão e não uma certeza. - Maureen franziu as sobrancelhas, pensativa. - Não cheguei a ouvir a voz da outra pessoa, só o murmúrio da conversa. Mas a voz parecia grossa, como a de um homem. Não ouvi mais nada porque subi e me preparei para dormir. Só tenho certeza de que uma das vozes era de Shawn. Era a sua risada. Ele tem uma risada forte e bem característica.


- Certo. Quem serve as mesas depois do seu turno?


- É a Sinead. Ela entra às seis horas da tarde. Trabalhamos duas horas juntas e depois ela cuida das mesas sozinha até a hora de fechar. Sinead Duggin é o seu nome e ela mora a alguns quarteirões daqui, na rua 33, eu acho. O atendente de bar que ajuda Shawn na hora do movimento mais pesado é um andróide. O patrão usa andróides apenas nas horas de muito movimento, porque esses equipamentos têm manutenção muito cara.


- Certo, Maureen. Você notou alguém diferente, que começou a freqüentar o pub nas últimas duas semanas e talvez tenha puxado conversa com Shawn?


- Chegam novos clientes de vez em quando, e alguns deles passam a vir sempre. Uns conversam com a gente, outros não. A maioria puxa assunto com Shawn, porque ele prepara drinques muito bons, entende? Só que não me lembro de ninguém em particular.


- Tudo bem. Pode voltar ao seu trabalho agora. Talvez precisemos tornar a conversar. Se conseguir se lembrar de mais alguma coisa, qualquer coisa, ou de alguém, quero que me procure.


- Certo. Mas eu lhe garanto que Shawn não fez nada de errado, tenente. - acrescentou enquanto se levantava. - Ele não é mau, apenas um pouco tolo.


- Tolo... - refletiu Gina, virando o medalhão na mão enquanto Maureen saía o mais rápido possível -... e com pouca sorte também. Vamos deixar um guarda de tocaia do lado de fora do bar, só para o caso de estarmos enganadas e Shawn ter ido apenas resolver algum assunto ou transar com alguma mulher. Quero visitar Sinead Duggin, para ver se ela é mais observadora do que Maureen.


- O cara das charadas falou que o prazo se esgotava amanhã de manhã.


Gina se levantou, guardou o medalhão e disse:


- Bem, acho que podemos dizer que ele não é um sujeito muito confiável.


 


Sinead Duggin acendeu um cigarro fino e prateado, estreitou os olhos verdes, tragou e soprou a fumaça com cheiro de jasmim na cara de Gina, informando:


- Não gosto de conversar com tiras.


- E eu não gosto de conversar com idiotas, - afirmou Gina, com a voz mansa - mas passo metade da vida fazendo isso. Pode ser aqui ou na central de polícia, Sinead. Depende de você.


Sinead encolheu os ombros magros e afrouxou um pouco o cinto do roupão que usava, para em seguida apertá-lo mais junto do corpo enquanto se virava e caminhava, descalça, de volta para o interior do conjugado onde morava.


O ambiente era entulhado de coisas, mas havia pouca mobília. Uma cama desfeita de onde ela certamente se arrastara a fim de abrir a porta para Gina, duas cadeiras e duas mesas estreitas. Todas as superfícies, porém, inclusive o peitoril da janela, estavam cheios de pequenos objetos variados.


Obviamente, Sinead gostava de coisas. Objetos coloridos. Tigelas, pratos decorativos e bibelôs de cães e gatos. As cúpulas e franjas dos dois abajures de pé estavam cobertas de poeira. Tapetes pequenos estavam espalhados em toda parte, como peças de um quebra-cabeça esparramadas pelo chão. Sinead se sentou sobre a cama com as pernas cruzadas, pegou um imenso cinzeiro de vidro, tão pesado que poderia servir de arma, e bocejou longamente.


- Então, o que quer?


- Estou à procura de Shawn Conroy. Quando o viu pela última vez?


- Ontem, no pub. Eu trabalho à noite... - coçou o peito do pé, completando: -... e durmo de dia.


- Com quem ele conversou ontem? Você o viu com alguém em particular?


- Só o pessoal de sempre. Gente que entra para beber alguma coisa. Shawn e eu damos o que eles querem. É um trabalho honesto.


Gina olhou para uma montanha de roupas que parecia estar há uma semana sobre uma cadeira. Tirou a pilha de lá e se sentou, pedindo:


- Hermione, abra aquelas persianas. Vamos deixar um pouco de luz entrar aqui dentro.


- Ai, que droga! - exclamou Sinead, cobrindo os olhos e estalando a língua de irritação quando as persianas subiram e o sol entrou com toda a força. - Assim você me mata! - Soltou um longo suspiro. - Escute, dona tira... Shawn é um bêbado, mas quando esse é o pior defeito de uma pessoa, até que não é nada mau.


- Shawn foi para o quarto no intervalo da meia-noite. Quem entrou lá junto com ele?


- Não vi ninguém entrar com ele não. Estava trabalhando. Cuido da minha vida. Por que está tão interessada? - Seus olhos foram se abrindo aos poucos enquanto abaixava a mão do rosto. - Por que está interessada? - repetiu. - Algo aconteceu com Shawn?


- É isso que estou tentando descobrir.


- Bem, ele estava numa boa na noite passada, isso eu posso lhe assegurar. Parecia muito satisfeito. Disse alguma coisa a respeito de um lance que pintara. Falou que muita grana ia chover na sua horta.


- Que espécie de lance era esse?


- Festas particulares, um troço com muita classe. Shawn tem uma queda por coisas cheias de classe. - Sinead apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro. - Voltou do intervalo sorrindo como um gato que vê um monte de passarinhos. Disse que podia me colocar no esquema, se eu quisesse.


- Colocá-la no esquema?... Ia falar com quem?


- Não estava prestando muita atenção, porque Shawn é meio fanfarrão. Disse que ia cuidar do bar em um evento, servindo os melhores vinhos na festança de um figurão da alta sociedade.


- Dê-me um nome, Sinead. Ele estava contando vantagens, cheio de histórias mirabolantes, mas qual o nome que citou?


- Ai, que inferno! - Irritada, mas sem ter para onde fugir, Sinead esfregou a testa com os dedos. - Era um velho companheiro, segundo disse. Um cara de Dublin que tinha se dado bem aqui nos Estados Unidos. Potter. - disse, balançando o cigarro aceso. - Viu só? Foi por isso que eu achei que Shawn estava contando um monte de invencionices. O que um sujeito como Potter ia querer de um tipo como Shawn?


Gina precisou usar toda a capacidade de se controlar para não dar um pulo da cadeira.


- Shawn disse que tinha conversado com Harry Potter?


- Ai, dá um tempo, não estou raciocinando direito, estou meio dormindo. - Bocejou mais uma vez quando um ônibus aéreo com escapamento defeituoso passou em frente à sua janela, fazendo barulho. - Deixe ver... Não, acho que ele disse que Potter mandou um cara a fim de combinar tudo com ele. E a grana era alta. Disse que ia sair do Trifólio Verde, entrar na alta roda em pouco tempo e me levava junto, se eu quisesse. Sabe... Shawn e eu ficávamos um com o outro de vez em quando, sempre que pintava um clima. Nada sério.


- A que hora você fechou o pub? - Quando viu que os olhos de Sinead se desviaram dos dela, Gina rangeu os dentes, avisando: - Olhe, estou cagando e andando para o lance de vocês funcionarem fora do horário permitido. Preciso saber a que hora você viu Shawn pela última vez, e para onde ele foi depois disso.


- Já eram quatro da manhã. Ele disse que ia para a cama, pois ia se encontrar com o cara hoje para acertar tudo, e tinha que parecer apresentável.


 


- Ele está brincando comigo! - Gina bateu a porta do carro e deu um soco no volante. - É isso o que o filho-da-mãe está fazendo, brincando comigo, metendo o nome de Harry no meio desse rolo. Droga!


Levantou a mão antes que Hermione tivesse chance de falar, e então ficou simplesmente olhando para o lado de fora da janela. Sabia o que tinha que fazer. Não havia outra escolha. Usando o tele-link do carro, ligou para casa.


- Residência do Sr. Potter. - atendeu Moody, com um tom simpático, mas assim que a viu, seu rosto ficou duro como pedra. - Tenente...


- Coloque-o na linha! - ordenou ela.


- Harry está atendendo a uma outra ligação nesse momento.


- Coloque-o na linha, seu magricela filho-da-mãe com cara de sapo. Agora!


A tela encheu-se com a cor azul do modo de espera. Vinte segundos depois, Harry atendeu.


- Gina? - Embora curvasse os lábios, seus olhos não sorriram. - Há algum problema?


- Você conhece um sujeito chamado Shawn Conroy? - Um lampejo rápido surgiu em seus olhos azuis antes que ele respondesse.


- Conheci há muitos anos, em Dublin. Por quê?


- Você fez algum contato recentemente com ele, aqui em Nova York?


- Não. Não o vejo nem falo com ele há mais de oito anos.


- Agora me diga que você não é dono de um pub chamado Trifólio Verde. - pediu Gina, respirando fundo.


- Está bem. Eu não sou dono de um pub chamado Trifólio Verde. - Deu um sorriso. - Por favor, Gina, você achou que eu fosse proprietário de um pub com um nome tão clichê como esse?


- Não, acho que não. - O alívio ajudou a tirar-lhe o peso do estômago. - Já esteve lá?


- Não que eu me lembre.


- Está planejando oferecer alguma festa?


- No momento não. - E virou a cabeça meio de lado. - Gina... Shawn está morto?


- Não sei. Preciso de uma lista dos imóveis que você possui em Nova York.


- Todos? - Ele piscou.


- Merda! - Ela apertou o cenho com dois dedos, lutando para pensar com clareza. - Olhe, comece com as unidades residenciais que estejam desocupadas no momento.


- Ah, isso é mais fácil. Retorno para você em cinco minutos. - prometeu Harry desligando.


- Por que unidades residenciais? - quis saber Hermione.


- Porque ele quer que eu encontre logo. Quer que eu apareça lá. Foi bem rápido dessa vez. Por que se dar ao trabalho de evitar seguranças, câmeras, pessoas? É só pegar um lugar vazio. Você entra, faz o trabalho e torna a sair. - Acionou o tele-link assim que ele tocou de volta.


- Estou com apenas três unidades desocupadas no momento. - disse-lhe Harry. - A primeira fica na avenida Greenpeace Park, número 82. Vou me encontrar com você lá.


- Fique exatamente onde está!


- Encontro você lá. - repetiu ele, e desligou.


Gina nem se deu ao trabalho de praguejar e ligou o carro, saindo na mesma hora. Chegou ao local trinta segundos antes dele, mas não teve tempo de destravar a fechadura com seu cartão mestre.


O casacão preto longo que Harry usava para se proteger do vento drapejava no ar enquanto ele andava, parecendo um chicote. Colocando a mão no ombro de Gina, beijou-a de leve, apesar de sua cara feia.


- Eu tenho o código. - informou, e o digitou.


A casa era alta e estreita para poder caber no terreno apertado. O teto também era muito alto. As janelas haviam sido tratadas para assegurar a privacidade e bloquear os raios ultravioleta. Eram gradeadas, de forma que a luz do sol lançava finas sombras sobre o piso de lajotas brilhantes.


Gina sacou a arma e fez um gesto para Hermione se colocar à sua esquerda, avisando a Harry:


- Não esqueça que você está comigo. - Começou a subir os primeiros degraus da escada em curva. - Mais tarde vamos conversar a respeito disso.


- Claro que vamos. - E ele não ia mencionar, nem agora nem depois, a pistola ilegal, de nove milímetros, que carregava no bolso. Por que afligir a mulher que amava com pequenos detalhes?


Manteve, porém, a mão no bolso, segurando-a com firmeza enquanto observava Gina, que vistoriava cada um dos cômodos com olhos frios que vasculhavam todos os cantos.


- Por que um lugar como esse está vazio? - quis saber depois de se certificar de que estava realmente vazio.


- Não vai mais estar a partir da semana que vem. Estamos alugando a casa assim, toda mobiliada, para empresas que estão sediadas fora do planeta e não gostam de colocar os executivos em quartos de hotel. Vamos fornecer todos os serviços, inclusive os de andróides e empregados humanos.


- Quanta classe!


- Tentamos fazer o melhor possível. - Sorriu para Hermione enquanto desciam as escadas, de volta. - Tudo limpo, policial?


- Nada aqui, a não ser duas aranhas sortudas.


- Aranhas? - Levantando uma sobrancelha, Harry pegou sua pequena agenda eletrônica e digitou uma mensagem para lembrá-lo de entrar em contato com a firma de dedetização.


- Onde fica o próximo local? - perguntou Gina.


- A dois quarteirões daqui. Vou levá-la até lá.


- Você podia simplesmente me dizer qual é o código de entrada e depois ir para casa...


- Não, não podia. - Passou a mão com carinho pelos cabelos dela ao saírem novamente para a rua.


A segunda casa era um pouco afastada da rua e ficava na parte dos fundos de um terreno, atrás de árvores que exibiam galhos onde não se via uma folha sequer. Embora houvesse residências dos dois lados, os donos das moradias preferiram sacrificar os jardins em favor da privacidade, plantando uma cerca viva entre as casas.


Gina sentiu o sangue correr mais depressa. Ali, pensou, naquele espaço caríssimo, em uma casa revestida com material à prova de som e protegida de olhares curiosos, um assassinato poderia ser cometido de forma bem discreta.


- Ele gostaria dessa casa aqui. - murmurou por entre os dentes. - Ela tem tudo para servir aos seus propósitos. Digite a sua senha. - disse a Harry, fazendo um gesto para Hermione e mandando que ela se movesse pela direita.


Gina se colocou na frente de Harry e empurrou a porta destrancada. Foi o suficiente.


Na mesma hora sentiu cheiro de morte recente.


A sorte de Shawn Conroy acabara em uma sala de estar maravilhosamente decorada que ficava adiante de um saguão pequeno e elegante. Seu sangue manchou as rosas silvestres que enfeitavam o tapete antigo. Os braços estavam abertos, em atitude de súplica. As palmas de suas mãos haviam sido pregadas no piso de madeira.


- Não toque em nada! - exclamou Gina, agarrando Harry pelo braço antes mesmo de ele conseguir passar pelo portal. - Você não pode entrar, senão vai comprometer a cena do crime. Dê-me a sua palavra de que não vai tentar entrar, senão eu tranco você do lado de fora. Hermione e eu temos que verificar o resto da casa.


- Não vou entrar. - Virou a cabeça, exibindo um olhar cheio de emoções não identificáveis. - O assassino já foi embora.


- Eu sei, mas temos que vasculhar a casa mesmo assim. Hermione, verifique os fundos. Vou olhar no andar de cima.


Não havia nada nem ninguém, conforme Gina já esperava. Como queria um instante a sós com Harry, pediu que Hermione fosse até a viatura para pegar seu estojo de trabalho.


- Ele quer que isso me atinja de forma pessoal. - começou ela.


- E é pessoal mesmo. Eu cresci com Shawn, conhecia sua família. Seu irmão mais novo e eu éramos da mesma idade. Paqueramos as mesmas garotas nas ruas de Dublin e as fizemos suspirar nos becos escuros. Ele era um amigo. Aconteceu em outra vida, mas ele era um bom amigo.


- Sinto muito. Eu cheguei tarde.


Harry simplesmente balançou a cabeça e olhou fixamente para o homem que certa vez fora um menino como ele. Apenas um menino perdido entre tantos outros, pensou. Gina se virou e pegou o comunicador, informando:


- Quero reportar um homicídio.


 


Quando suas mãos e botas estavam devidamente protegidas pelo spray selante, ela se ajoelhou na poça de sangue. Dava para ver que a morte chegara lentamente e de forma obscena para Shawn Conroy. Seus pulsos e a garganta haviam sido cortados, mas não de um modo que fizesse o sangue espirrar em jato, o que o mataria muito rapidamente. Ele sangrara lentamente, durante horas, talvez.


Seu tórax fora aberto com cuidado, quase de forma cirúrgica, do osso esterno até a genitália, também com o intuito de provocar-lhe uma dor insuportável e lenta. Seu olho direito desaparecera, bem como a língua.


Pela sua experiência, Gina avaliou que ele estava morto há menos de duas horas.


Sem dúvida morrera lutando para gritar de dor.


Gina deu um passo para trás enquanto a equipe que chegou tirava fotos e filmava o corpo. Virando-se, pegou as calças que haviam sido atiradas longe. Elas haviam sido arrancadas dele, mas sua carteira continuava no bolso traseiro.


- A vítima foi identificada como Shawn Conroy, cidadão irlandês, de quarenta e um anos, residente na rua 79, West Side, número 783. Na carteira da vítima foram encontrados o seu green-card, o cartão da Previdência Social, doze dólares em fichas de crédito e três fotos.


Verificando dentro do outro bolso, Gina achou cartões magnéticos para fechaduras codificadas, fichas de crédito soltas no valor de três dólares e vinte e cinco cents, além de um pedaço de papel dobrado com o endereço da casa onde ele morrera e, por fim, um medalhão esmaltado com um trifólio verde de um lado e um esboço representando as linhas de um peixe do outro.


- Tenente, - o chefe da equipe médica se aproximou dela - a senhora já liberou o corpo?


- Sim, pode ensacá-lo. Diga ao dr. Morris que eu quero uma atenção especial para esta vítima. - Enfiando a carteira e o conteúdo dos bolsos em uma embalagem própria para preservar provas, olhou para Harry. Ele não dissera nada e seu rosto não revelava emoção alguma, nem mesmo para ela.


Com um gesto automático, pegou o solvente para remover o sangue e o selante que lhe cobria as mãos enquanto caminhava na direção dele.


- Você já viu, em algum lugar, um medalhão desse tipo?


Ele olhou para a embalagem transparente lacrada onde estavam os pertences de Shawn e respondeu:


- Nunca.


Gina deu uma última olhada na cena do crime. Viu a imagem obscena que contrastava com a grandiosidade do ambiente. Franzindo as sobrancelhas, virou a cabeça levemente para o lado e fixou o olhar, com ar pensativo, na pequena e elegante estatueta que estava sobre um pedestal, junto de um vaso de flores artesanais em tons pastéis.


Uma mulher, refletiu, esculpida em pedra branca, coberta por um véu e vestida com um manto pregueado. Não era um vestido de noiva, mas parecia. Como sentiu que a imagem parecia deslocada ali e a achou vagamente familiar, apontou para ela e perguntou:


- O que representa aquela... pequena estátua ali?


- O quê? - Distraído, Harry olhou por trás do ombro. Intrigado, caminhou em torno do cordão de isolamento colocado em volta do corpo e quase tocou na imagem, tendo sido impedido no último instante por Gina, que agarrou-lhe a mão. - A Virgem... estranho...


- A o quê?


- Desculpe. - A risada que soltou foi curta e sem humor. - Linguagem católica. Essa é a abençoada Virgem Maria.


- Você é católico? - Surpresa, Gina franziu a testa para ele, sentindo o quanto a pergunta era inadequada. Afinal, sendo sua mulher, ela já devia conhecer essa informação.


- Fui, em outra vida, - disse ele de forma mecânica e ausente - mas jamais fui promovido a coroinha. Essa imagem não pertence a este lugar. - acrescentou. - A firma que faz a decoração das minhas casas para locação não costuma usar imagens religiosas.


Analisando a face linda e serena, maravilhosamente esculpida em mármore branco, continuou:


- Foi o assassino que a colocou aqui, só pode ter sido. - Notou pelo olhar gélido de Gina que ela também já chegara à mesma conclusão.


- É a platéia dele. - concordou ela. - O que ele está fazendo? Está se exibindo para ela?


Harry podia não se ver como católico ou algo desse tipo há muitos anos, mas a idéia o deixou enjoado.


- Diria que ele buscava uma espécie de bênção para o seu trabalho, o que quer dizer mais ou menos a mesma coisa.


- Acho que vi outra imagem dessas no apartamento de Brennen. - Gina já pegava um novo saco plástico para guardar a estátua. - Estava sobre a cômoda da mulher dele, voltada na direção da cama. Pareceu algo natural em um ambiente como aquele, por isso eu não dei muita atenção. Havia um daqueles colares de contas que as pessoas usam para rezar, holografias das crianças, uma imagem dessas, uma escova larga para cabelos com a parte posterior em prata trabalhada, um pente e um frasco azul de perfume.


- E você disse que nem prestou atenção, hein?... - murmurou Harry, refletindo que alguns policiais não deixavam de perceber nada.


- Percebi apenas que o objeto estava lá, não que não deveria estar. Ela é pesada. - comentou ao colocar a estátua dentro do saco transparente. - Parece cara. - E franziu a testa ao olhar a inscrição na base. - É importada?


- Humm... fabricada na Itália. - leu Harry.


- Talvez consigamos descobrir a origem dela.


Harry balançou a cabeça para os lados, afirmando:


- Vai descobrir que milhares de imagens como essa foram vendidas só no ano passado. As lojas de artefatos religiosos próximas do Vaticano têm um lucro gigantesco vendendo produtos como esse. Eu mesmo possuo algumas lojas especializadas nisso em Roma.


- Vamos pesquisar mesmo assim. - Tomando-o pelo braço, ela o guiou para fora da casa. Não ia ajudar em nada deixá-lo ali, vendo o corpo ser ensacado e preparado para transporte. - Não há mais nada para você fazer aqui. Tenho que voltar para a central, a fim de fazer meu relatório e pesquisar algumas coisas. Vou para casa em poucas horas.


- Quero falar com os familiares dele.


- Não posso permitir isso, Harry. Ainda não... Ainda não! - repetiu ela, com ênfase, quando viu seus olhos se apertarem, frios. - Quero que me dê algumas horas. Escute... - Sentindo-se impotente, caiu no lugar-comum, dizendo: - Meus pêsames...


Ele a surpreendeu puxando-a mais para junto dele, apertando o rosto de encontro ao seu cabelo e deixando-se ficar ali. De forma desajeitada, ela o acariciou, passando a mão por suas costas e dando tapinhas em seu ombro rígido.


- Pela primeira vez desde que a conheci, - murmurou ele, tão baixo que ela mal conseguiu ouvir - gostaria que você não fosse uma policial. - Afastou-se dela, caminhando sem olhar para trás.


Ela permaneceu em pé ali, no vento que soprava de leve, sentindo o perfume do inverno que estava para chegar e sentindo o peso imenso da culpa e da incapacidade.


 


Harry estava em seu escritório quando Gina chegou em casa. Apenas o gato foi recebê-la na entrada. Galahad empinou o rabo de forma afetuosa e passou por entre as pernas de sua dona, que já despia o casaco e jogava a bolsa sobre o ombro.


Era até melhor ela ficar sozinha, decidiu, pois ainda tinha trabalho pela frente. Já que era uma figura patética quando se tratava de oferecer consolo ao marido, ia ser uma policial. Nessa área, pelo menos, ela sabia como agir.


Galahad foi caminhando ao lado de Gina e subiu os degraus com agilidade, apesar de estar mais gordo, acompanhando-a até a suíte onde ela muitas vezes trabalhava e às vezes dormia quando Harry estava fora.


Ao pegar um pouco de café no AutoChef, notou que Galahad parecia tão faminto quanto ela e ordenou um sanduíche de atum. Dividiu a iguaria com o gato, que devorou sua metade como se não comesse há um mês. Em seguida, carregou a outra parte com ela para a mesa de trabalho.


Olhou para a porta que conectava a sua sala com a de Harry. Sabia que bastava bater para encontrá-lo, mas em vez disso se sentou diante do computador.


Ela não conseguira salvar seu amigo. Não fora rápida o bastante nem esperta o suficiente para impedir a sua morte. Nem ia conseguir manter Harry fora da investigação. Havia perguntas que ela teria que fazer e depoimentos que teria que pegar.


Além do mais, a mídia já saberia de tudo na manhã seguinte. Não havia como deixá-los de fora. Gina já decidira ligar para Tonks, seu contato no Canal 75. Com relação a Tonks, ela sabia que podia obter uma cobertura justa dos fatos. Embora a repórter fosse persistente e irritante, era, sem dúvida, objetiva e precisa.


Gina olhou para o tele-link. Pedira a Ronu que programasse a unidade de comunicações de sua sala na central de polícia e transferisse todas as ligações efetuadas durante a noite para o seu aparelho de casa. Queria que o canalha ligasse.


Por quanto tempo ele ainda ia esperar? E para quando estaria planejando o próximo ataque?


Bebeu café e se forçou a pensar com mais clareza. Volte ao início, disse a si mesma. Repasse todas as coisas relacionadas com o primeiro crime.


Colocou no computador a gravação do primeiro contato e ouviu-a com atenção duas vezes. Já aprendera a reconhecer o ritmo da voz, o tom e o estado de espírito do assassino. Ele era arrogante, vaidoso e esperto... sim, esperto e habilidoso. Desempenhava uma missão sagrada, mas tinha excesso de presunção e esse era o seu ponto fraco. Presunção, refletiu, e um sentido distorcido de fé.


Eram os pontos que Gina precisava explorar melhor.


Vingança, foi o que dissera. Olho por olho. Vingança era sempre pessoal. Os dois homens que foram assassinados tinham ligação com Harry. Portanto, pela lógica, o assassino também. Uma antiga vendetta, talvez.


Sim, ela e Harry tinham muito o que discutir. Talvez ele fosse um alvo também. Só de pensar nisso o seu sangue gelou, o cérebro parou e o coração disparou.


Resolveu deixar a emoção de lado. Não podia se dar ao luxo de pensar como esposa, nem como amante. Mais do que nunca, precisava ser unicamente policial.


Entregou para Galahad a outra metade do sanduíche praticamente inteira quando viu o gato chegar junto dela com ar de súplica. Em seguida, pegou as gravações dos discos de segurança das Torres do Luxo.


Siga passo a passo, ordenou a si mesma. Assista a cada disco, cada área gravada, não importa o tempo que leve. Quando amanhecesse, iria pedir a Harry que desse uma olhada neles também. Talvez ele reconhecesse alguém.


Entornou a xícara de café sobre a mesa, de susto, quando ela mesma reconheceu uma pessoa.


- Parar! - ordenou. - Torne a passar este arquivo a partir do ponto zero-zero-cinco-seis. Meu santo Cristo!... Congelar imagem! Ampliar das seções 15 a 21 em trinta por cento e entrar em modo de câmera lenta.


E olhou a figura chegar com um terno preto impecável e um sobretudo dois números maior que flutuava quando ele andava. Ele entrou com toda a calma no suntuoso saguão do prédio de apartamentos. Conferiu a hora em seu caro relógio de pulso e alisou o cabelo.


Em seguida Gina observou, com atenção, o instante em que Moody entrou no elevador e subiu.


- Congelar a imagem! - exigiu do aparelho.


O horário no canto inferior da tela mostrou que era meio-dia em ponto na tarde do assassinato de Thomas X. Brennen.


Acelerou as imagens, vasculhando hora após hora... e não viu Moody tornar a sair do prédio.


 


 


Agradecimentos especiais:


 


Ana Eulina: infelizmente a Gina chegou atrasada na cena do crime e adianto que ela chegará atrasada no próximo também. Prender o Harry? Acho que a Gina jamais faria uma coisa dessas com o homem que ama, ela preferiria perder o distintivo ao invés de prender o marido, mas é claro que ela não vai aceitar tão facilmente tudo o que o Harry fez, principalmente quando os detalhes começarem a surgir. Acho que Moody e Gina jamais serão completamente amigos, mas poderão alcançar um nível de tolerância razoável. O Harry vai trabalhar no caso sim, mas entre Rony e Hermione não vai rolar nada, pelo menos não agora e somente mais para frente. Quantos o Harry matou? Duvido muito que ele admita todas as mortes que tenha cometido, apenas as dos seis que mataram Marlena. Beijos.


 


Nanny Black: O Rony fará par com a Hermione, mas mais para frente, por enquanto não vai rolar nada entre eles, apenas muita discussão. Com certeza ele está atrás do Harry, mas os outros não estão morrendo de graça não, nos próximos capítulos as coisas ficarão mais claras, mas posso adiantar que cada uma dessas pessoas passou informações importantes para o Harry poder encontrar os assassinos de Marlena. Realmente o Harry matou os seis caras, mas quem sabe se ele não matou outras pessoas depois disso?


 


gilmara


: Tudo está ligado a filha de Moody e aos homens que o Harry matou. Adianto que sua hipótese sobre o assassino está bem correta, o assassino é o filho de um dos caras que o Harry matou.... ah, não esquenta com os capítulos adaptados, pois eu já havia previsto o estresse de final de semestre e adaptei alguns capítulos antecipadamente e por isso poderei posta-los normalmente. Beijos.


 


 

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