CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZOITO
Ela estava com um botão de rosa tatuado na bunda, e não ficou nem um pouco satisfeita com isso. Em pé, nua, Gina ajustou o espelho triplo do banheiro até conseguir dar uma boa olhada.
- Acho que vou mandar prender Trina por causa disso. - murmurou.
- Sob que acusação? Decorar o traseiro de uma policial sem autorização? - sugeriu Harry, ao entrar. - Reprodução criminosa de uma imagem floral?
- Você bem que está curtindo, não é? - Com ar ofendido, Gina pegou o roupão que estava pendurado.
- Querida Gina, pensei ter deixado bem claro na noite passada que estava totalmente do seu lado com relação a esse assunto. Não fiz o melhor que pude para tentar arrancar essa tatuagem com os dentes?
Ela não ia rir, ordenou a si mesma, mordendo a língua com força. Não havia nada de engraçado ali.
- Preciso resolver esse problema de algum modo. - disse ela. - Qualquer coisa que alguém faça para arrancar isso fora.
- Por que tanta pressa? É uma coisa... doce.
- E se eu tiver que entrar na câmara de desinfecção? Precisar tomar um banho ou trocar de roupa no trabalho? Já imaginou o tipo de zoação que uma tatuagem na bunda vai provocar?
- Mas você não vai para o trabalho hoje... - Enlaçou-a com os braços, colocando-os de forma esperta por dentro do roupão.
- Preciso ir até lá. Tenho que verificar no meu computador, para ver se Neville conseguiu alguns dados que pedi a ele para pesquisar.
- Não vai fazer diferença alguma se fizer isso na segunda de manhã. Estamos com o dia de folga.
- Para fazer o quê?
Ele simplesmente sorriu e foi descendo com as mãos, até alcançar o botão de rosa.
- Não acabamos de fazer isso? - perguntou ela.
- Eu agüento repetir, - refletiu ele - mas isso pode esperar mais um pouco. Por que não passamos o dia sem fazer nada, na beira da piscina?
- Bem... talvez. - Ficar sem fazer nada, na beira da piscina, até que tinha um certo apelo.
- Só que vai ser na Martinica. Nem se preocupe em fazer as malas. - disse-lhe ele, plantando um beijo rápido em seus lábios. - Você não precisa vestir nada, só a tatuagem.
Gina passou o dia inteiro na Martinica, vestindo apenas um sorriso e um botão de rosa. Talvez por isso estivesse se arrastando ainda com mais dificuldade do que de hábito quando chegou ao trabalho na segunda-feira.
- Parece cansada, tenente. - Hermione pegou um pacote em seu kit de trabalho e colocou duas rosquinhas recheadas sobre a mesa. Ainda sorria ao lembrar que conseguira passar com os doces escondidos pela sala de registros e queixas sem que os colegas os farejassem. - Está um pouco bronzeada também. - Olhou mais de perto. - Passou maquiagem no rosto?
- Não. É que peguei um pouco de sol, ontem.
- Mas choveu o dia todo!
- Não no lugar onde eu estava. - murmurou Gina, enchendo a boca com a rosquinha. - Tenho que rodar o programa de probabilidades para apresentá-lo ao comandante. Neville trabalhou com alguns números, ainda estamos com pouca base, mas vou pedir um grupo de vigilância para os principais suspeitos, trabalhando dia e noite.
- Acho que você não vai querer saber qual é a probabilidade de conseguir isso, na minha opinião. Uma circular acabou de ser emitida agora de manhã, reclamando do excesso de horas extras.
- Pois que se dane a circular! Não se trata de excesso quando as horas extras são necessárias. Lupin pode explicar isso ao secretário de Segurança, e o secretário pode ir até o prefeito. Temos nas mãos duas mortes de pessoas importantes, que estão provocando um bocado de agitação na mídia. Precisamos de mais mão-de-obra para encerrar esses casos e diminuir o calor dos debates.
- Parece até um ensaio do que vai dizer ao comandante. - comentou Hermione, com um sorriso.
- Talvez seja mesmo. - Expirou com força. - Se os números do programa de probabilidade fossem um pouquinho mais altos, eu não ia precisar forçar tanto a barra. Há gente demais envolvida no caso, esse é que é o problema. - Levantando as mãos, pressionou os olhos com os dedos. - Temos que pesquisar os nomes de cada um dos membros das duas seitas. São mais de duzentas pessoas! Mesmo que eliminemos metade delas a partir dos dados e do perfil de cada uma, ainda vão sobrar umas cem para investigar e verificar álibis.
- São dias e dias de trabalho. - concordou Hermione. - O comandante provavelmente vai oferecer uma dupla de policiais para bater de porta em porta e eliminar os obviamente não envolvidos.
- Acho que não há ninguém nessa história que seja obviamente não envolvido. - Gina se afastou da mesa, empurrando a cadeira para trás. - Foi necessária mais de uma pessoa para transportar o corpo de Lobar e para amarrá-lo no pentagrama de madeira. Também foi preciso um veículo para tudo isso.
- Nenhum dos principais suspeitos possui um veículo grande o bastante para carregar um cadáver e um pentagrama imenso sem chamar a atenção.
- Talvez um dos membros tenha. Precisamos pesquisar os nomes através das placas dos veículos. Se isso não der em nada, podemos começar a verificar em locadoras de carros e veículos roubados na noite do crime. - Gina apertou a cabeça. - Ainda por cima, é bem capaz de a pessoa que o descarregou na minha porta ter usado um veículo daqueles que ficam meses parados em um estacionamento aberto. Se isso aconteceu, ninguém notou a saída do carro.
- E vamos verificar tudo, mesmo assim?
- Sim, vamos verificar mesmo assim. Talvez Neville possa nos emprestar alguém da Divisão de Detecção Eletrônica para fazer o trabalho mais chato. E você vai à luta enquanto eu imploro ao comandante por mais gente. - Atendeu o tele-link, que estava tocando. - Tenente Weasley, da Homicídios.
- Preciso falar com você.
- Louis? - Gina levantou uma sobrancelha. - Se quer falar a respeito das acusações à sua cliente, por ela ter resistido à prisão, procure o promotor.
- Preciso falar com você. - repetiu. Gina notou que ele levou a mão à boca, como se estivesse disfarçando, e reparou em suas unhas muito bem cuidadas. - É uma conversa particular, a sós. Tem que ser o mais rápido possível.
- E sobre que assunto você quer conversar? - Gina abaixou a mão ao lado do corpo, sinalizando na direção de Hermione para que ela permanecesse no fundo da sala e fora do campo de visão, da câmera.
- Não posso falar pelo tele-link. Estou usando meu aparelho de bolso, mas mesmo assim é arriscado. Preciso que você se encontre comigo.
- Venha você até aqui!
- Não, não, eles podem estar me seguindo. Não sei se estão, não posso saber ao certo, mas estou sendo cuidadoso.
Será que ele percebera o policial que Neville designara para segui-lo, perguntou-se Gina, ou estava apenas sendo paranóico?
- Quem poderia estar seguindo você? - perguntou.
- Preciso que você se encontre comigo! - insistiu ele. - Venha ao meu clube, o Luxury, perto do Central Park. Estarei no quinto andar. Vou deixar o seu nome na recepção.
- Ah, mas você tem que me oferecer algum incentivo para ir até aí, Louis... estou atolada de serviço.
- Eu acho... acho que presenciei um assassinato. Venha sozinha, Gina. Não vou conversar com mais ninguém. E cuidado para não ser seguida. Corra!
Gina apertou os lábios diante da tela que apagara.
- Bem, esse é um bom incentivo. Acho que encontramos uma rachadura na muralha, Hermione. Veja se consegue convencer Neville, usando o seu charme, para lhe emprestar alguém da Divisão de Detecção Eletrônica para ajudá-la.
- Você não pode ir se encontrar com ele sozinha! - protestou Hermione ao ver Gina agarrar a bolsa.
- Acho que consigo lidar com um advogado apavorado. - Gina se agachou para se certificar de que estava com a arma extra presa ao tornozelo. - De qualquer modo, temos um homem do lado de fora do clube. E vou deixar meu comunicador ligado. Fique monitorando.
- Sim, senhora. Tenha cuidado.
No quinto andar do Clube Luxury, havia vinte suítes privativas, para uso dos membros. Reuniões de natureza pessoal ou profissional podiam ser realizadas ali. Cada uma das suítes era decorada de acordo com uma era diferente, e continha uma central completa de comunicações e entretenimento.
Festas podiam ser dadas ali, tanto grandes como íntimas. O serviço de bufê era insuperável, mesmo para os padrões elevados de uma cidade tão preocupada com comida e bebida. Acompanhantes autorizadas estavam à disposição dos membros através do atendente e por uma pequena taxa adicional.
Louis sempre reservava a suíte 5-C. Apreciava a opulência da decoração em estilo francês do século dezoito, com sua ênfase no requinte. Os caros tecidos do estofamento das cadeiras de espaldar curvo e os assentos em veludo agradavam o seu interesse pelas formas e texturas. Ele gostava dos cortinados volumosos em cores escuras e do dourado nas molduras dos espelhos bisotados. Já recebera sua esposa ali, bem como uma grande variedade de amantes, com quem compartilhava a cama larga e alta, acima da qual ficava um dossel elegante preso por quatro colunas.
Em sua opinião, aquele período da história, em especial, representava o hedonismo, a auto-indulgência e a devoção aos prazeres materiais.
A realeza governava e fazia apenas o que lhe proporcionava satisfação. E a arte, então, não florescera com tudo isso? Se os camponeses passavam fome do lado de fora dos muros privilegiados, isso era apenas porque a sociedade espelhava em sua estrutura a seleção natural exibida pela natureza. Os poucos escolhidos viviam intensamente.
E ali, no centro de Manhattan, trezentos anos depois, ele podia usufruir dos frutos da indulgência do passado.
Porém, ele não estava apreciando nada daquilo naquele momento. Andava de um lado para outro, bebendo uísque puro em goles longos e nervosos. O terror formava gotículas de suor em sua testa, que teimavam em surgir sem parar. Seu estômago se contorcia e seu coração batia disparado.
Ele presenciara um assassinato. Tinha quase certeza disso. Tudo lhe parecia enevoado e surreal, como um programa de realidade virtual com alguns elementos faltando.
A sala secreta, a fumaça, as vozes — a sua própria voz entre elas — elevadas em um cântico... o gosto de vinho quente e maculado travando-lhe a língua.
Tudo isso lhe era familiar, e já fazia parte de sua vida há três anos. Ele se filiara à seita por acreditar em seus princípios básicos sobre a busca do prazer, e gostava dos rituais: os mantos, as máscaras, as palavras repetidas sem parar, enquanto as velas derretiam, formando poças de cera preta.
E o sexo sempre fora incrível.
Algo, porém, estava acontecendo. Ele se via inquieto, obcecado pela chegada das reuniões e desesperado pelo primeiro gole do vinho cerimonial. E tinha lapsos de memória, verdadeiros buracos em alguns períodos de tempo. Na manhã seguinte às cerimônias, sempre ficava com a cabeça confusa e raciocinava mais devagar.
Recentemente, encontrara sangue seco debaixo das unhas, e não se lembrava de como aquilo aparecera ali.
Mas estava começando a se lembrar. As fotos das cenas dos crimes que Gina lhe mostrara fizeram com que alguma coisa se destravasse em sua mente. E a porta que se abriu mostrava cenas horrorosas e chocantes. Imagens giravam diante de seus olhos. A fumaça subia em redemoinhos, juntando-se às vozes que entoavam cânticos. Peles lisas brilhavam, suadas, fazendo sexo, e havia gemidos e grunhidos provocados por cópulas violentas. Cabelos úmidos e pretos balançavam no ar, enquanto quadris magros se moviam para a frente e para trás.
E então ele via um respingar de sangue que esguichava com força, como o jorro que acompanha o grito primal do sexo saciado.
Selina com seu sorriso de fera, um ar felino e a faca pingando sangue em sua mão. Lobar... Meu Deus, aquele era Lobar, escorregando do altar com a garganta aberta, como quem solta um grito de pavor.
Assassinato... nervoso, abriu uma fresta entre as cortinas pesadas e deixou os olhos assustados pesquisarem a rua lá embaixo. Ele vira um sacrifício de sangue, e não foi o sangue de um bode, mas de um homem.
Será que ele enfiara os dedos naquela garganta aberta? Será que lambera a ferida com a língua, para saborear o sangue fresco? Será que participara de aberrações como essas?
Meu Deus, meu bom Deus, será que havia outras? Outras noites, outras mortes? Será que ele testemunhara tudo e bloqueara as lembranças terríveis em sua mente?
Ele era um homem civilizado, disse a si mesmo, puxando as cortinas e tornando a fechá-las. Ele era um bom marido e pai de família. Era um advogado respeitado, e não um acessório para ser usado em assassinatos. Não podia ser...
Com a respiração cada vez mais curta e ofegante, serviu-se de mais um pouco de scotch e olhou para si mesmo refletido nos espelhos com molduras trabalhadas. Enxergou um homem que não dormia, não comia e não via a família há vários dias.
Tinha medo de pegar no sono. As imagens poderiam surgir com mais nitidez nos sonhos. Tinha medo de comer, pois decerto a comida ia ficar presa em sua garganta, matando-o.
E estava mortalmente preocupado com sua família.
Wineburg estava na cerimônia. Estivera ao lado dele e testemunhara as mesmas coisas que ele.
E agora estava morto.
Wineburg não tinha esposa nem filhos, mas Louis tinha... se ele estava em perigo e resolvesse ir para casa, será que eles não iriam atrás dele? Começava a descobrir, durante as noites longas e insones que passara ali, tendo a bebida como única companheira, que ele tinha vergonha de que seus filhos pudessem descobrir os atos dos quais participara.
Precisava proteger a eles e a si mesmo. Ali estava a salvo, assegurou a si mesmo. Ninguém poderia entrar naquela suíte, a não ser que ele abrisse a porta... talvez estivesse reagindo com exagero a tudo aquilo. Tentou enxugar a testa molhada com o lenço já encharcado de suor. Estava estressado, andava trabalhando demais, muitas noites acordado até tarde... Talvez estivesse tendo um colapso nervoso. Devia procurar um médico.
Faria isso. Iria procurar um médico. Pegaria a família toda e viajaria para longe, por alguns dias. Tiraria umas pequenas férias, um tempo para relaxar, para reavaliar as coisas. Abandonaria a seita. Obviamente, aquilo não estava lhe fazendo bem. Só Deus sabia que participar dos rituais estava lhe custando uma pequena fortuna em doações a cada dois meses. De algum modo, ele se envolvera demais com aquilo, esquecendo-se de que entrara para a seita por simples curiosidade... por sede de sexo livre e egoísta.
Ingerira vinho demais e respirara muita fumaça, talvez, e isso estava fazendo com que imaginasse coisas.
Mas vira sangue seco debaixo das unhas.
Louis cobriu o rosto, tentando retomar o ritmo da respiração. Não importava, pensou. Nada daquilo importava. Não devia ter ligado para Gina, não devia ter entrado em pânico. Ela ia considerá-lo louco; ou pior... cúmplice!
Selina era uma cliente. Ele devia aos seus clientes toda a lealdade, além das aptidões profissionais.
Mas conseguia ver a imagem dela com um punhal na mão, enquanto cortava carne humana exposta.
Louis cambaleou em volta da suíte, entrou no banheiro suntuoso e, despencando sobre a pia, vomitou uísque e terror. Quando as cólicas estomacais passaram, tentou se recompor. Debruçou-se sobre a pia e exigiu, em voz alta, água a cinco graus. O líquido escorreu na mesma hora da torneira curva moldada em ouro, e se despejou sobre a cuba muito branca, esfriando sua pele febril.
Ele chorou por um momento, com os ombros tremendo e os soluços ecoando nos azulejos brilhantes. Então levantou a cabeça e se forçou a olhar novamente para o espelho.
Ele realmente testemunhara tudo o que lhe vinha à lembrança. Era hora de encarar isso. Ia relatar tudo a Gina, para tirar aquele peso dos ombros e colocá-lo nas mãos dela.
Sentiu alívio por um momento, tão intenso que chegava a ser doce. Queria ligar para casa, falar com sua mulher, ouvir a voz de seus filhos e ver seus rostos.
Um movimento refletido no espelho o fez girar o corpo, assustado, com o coração quase pulando fora por sua garganta.
- Como conseguiu entrar aqui?
- Serviço de quarto, senhor. - A mulher negra, com seu impecável uniforme preto e branco, segurava uma pilha de toalhas macias, e sorriu.
- Não pedi serviço de quarto. - Passou a mão trêmula sobre o rosto. - Estou esperando uma pessoa que vai chegar a qualquer momento. Simplesmente deixe as toalhas aí e... - Sua mão escorregou lentamente para o lado do corpo. - Eu conheço você. Conheço você!...
Vi seu rosto em meio à fumaça, lembrou ele, em meio à gélida sensação de terror renovado. Esse era um dos rostos que eu vi no meio da fumaça.
- Claro que você me conhece, Louis... - Seu sorriso não perdeu a intensidade nem por um momento enquanto ela deixava as toalhas caírem e revelava o athame que segurava por baixo delas -... nós trepamos na semana passada.
Ele só teve tempo de sugar o ar para soltar um grito, antes de ela enfiar o punhal em sua garganta.
Gina saiu do elevador rangendo os dentes de irritação. O andróide da recepção a deixara esperando por mais de cinco minutos, enquanto conferia a sua identificação. Reclamara que ela estava entrando armada no clube. Gina já estava considerando a idéia de usá-la contra ele para calar-lhe a boca quando o gerente diurno surgiu, desmanchando-se em desculpas.
O fato de ambos saberem que as desculpas eram dirigidas à esposa de Harry Potter e não à policial Gina Weasley só serviu para deixá-la ainda mais furiosa.
Ela ia cuidar dele depois, prometeu a si mesma. Queria ver se o Clube Luxury conseguiria escapar ileso de uma inspeção em larga escala feita pelo Departamento de Vigilância Sanitária, seguida por uma verificação na validade das licenças das acompanhantes autorizadas que trabalhavam no local. Era só ela puxar algumas cordinhas e o gerente ia enfrentar vários dias de puro inferno em sua vida.
Ela se virou na direção da suíte 3-C e apertou a campainha, que ficava bem debaixo da tela de segurança. Seu olhar notou a luz verde do sistema de segurança, indicativa de que a porta estava destrancada.
- Hermione? - Gina pegou sua arma.
- Sim, senhora. - A voz de sua auxiliar saiu abafada do aparelho guardado no bolso de dentro do casaco.
- A porta da suíte está destrancada. Vou entrar...
- Deseja reforço, tenente?
- Ainda não. Fique comigo, acompanhando tudo.
Gina entrou sem fazer ruído e fechou a porta às suas costas. Na mesma hora se agachou, em posição defensiva, balançando a arma de um lado para outro, enquanto vasculhava o vestíbulo com os olhos.
Mobília sofisticada, feia e exagerada para o seu gosto, um paletó de terno todo amarfanhado, uma garrafa pela metade, cortinas cerradas e silêncio total.
Deu mais um passo dentro do aposento, ainda agachada, mas se manteve junto à parede, guardando as próprias costas, enquanto circulava pelo saguão. Não havia ninguém escondido junto dos móveis nem atrás das cortinas. A pequena cozinha estava vazia e aparentemente não havia sido usada.
Ao chegar junto da porta do quarto, novamente se agachou e balançou a arma nas duas direções. A cama estava feita, cheia de almofadas decorativas e, aparentemente, ninguém dormira nela. Seu olhar se moveu na direção do closet, com portas duplas entalhadas e fechadas.
Andou de lado na direção dele. Foi quando ouviu sons no banheiro. Sons de respiração ofegante, gemidos de quem está fazendo um grande esforço e uma risada feminina bem nítida. Passou pela sua cabeça que Louis talvez estivesse dando uma rapidinha com uma das acompanhantes autorizadas do clube e rangeu novamente os dentes, enfurecida.
Não relaxou a guarda, porém.
Trocou o peso do corpo para a outra perna, foi mais um pouco para a esquerda e pulou diante da porta.
Percebeu o cheiro de imediato, décimos de segundo antes da imagem.
- Jesus! Meu Deus!
- Tenente? - A voz de Hermione, cheia de preocupação, saiu do fundo do seu bolso.
- Para trás! - Gina apontou a arma para a mulher, segurando-a com as duas mãos. - Largue o punhal, levante daí e dê um passo para trás.
- Estou enviando reforços. Informe a sua situação, tenente.
- Temos um homicídio... acabou de acontecer. Eu mandei você se levantar e dar um passo para trás!
A mulher simplesmente sorriu. Estava sentada sobre o corpo de Louis, ou o que restara dele, com uma perna para cada lado. O sangue cobria todo o piso, as paredes azulejadas estavam cheias de res-pingos vermelhos; as mãos e o rosto da assassina estavam molhados com ele. O fedor de sangue começando a coagular era quase palpável.
Para Louis, Gina notou, não havia mais esperanças. Ele fora morto, suas vísceras estavam espalhadas e a mulher continuava a tirá-las de dentro dele, lentamente.
- Ele já está morto. - disse a mulher, com ar prazeroso.
- Dá para ver. Largue esse punhal! - Gina deu um passo para a frente, balançando a arma. - Largue esse punhal e se afaste dele... Bem devagar! Coloque o rosto no chão e as mãos atrás das costas!
- Isso tinha que ser feito. - Passou uma das pernas por cima do morto e ficou ajoelhada ao lado dele, como uma viúva ao lado de um túmulo. - Você não me reconhece?
- Sim. - Mesmo através da máscara de sangue, Gina sabia de quem era aquele rosto. Lembrava da voz e do seu jeito meigo e doce. - Mirium, não é? Bruxa do primeiro nível de iniciação. Agora, largue a droga do punhal e beije o chão. Mãos atrás das costas!
- Certo. - Obedecendo, Mirium colocou o punhal de lado, nem olhou quando Gina pisou nele com o salto da bota e em seguida o chutou para longe, bem fora de alcance. - Ele mandou que eu fosse rápida. É só entrar e sair, ordenou, mas eu perdi a noção do tempo.
- Ele?... - Gina pegou as algemas no bolso traseiro da calça e prendeu os pulsos de Mirium. - Ele quem?
- Chas. Disse-me que este eu podia executar sozinha, mas tinha que ser rápida. - Soltou um suspiro. - Acho que não fui rápida o bastante.
Apertando os lábios, Gina olhou para Louis Trivane. Não, pensou ela. Quem não foi rápida o bastante fui eu.
- Captou todo o diálogo, Hermione?
- Sim, senhora.
- Vá buscar Charles Forte para interrogatório. Faça isso pessoalmente, e leve mais dois policiais como reforço. Não chegue perto dele sozinha!
- Afirmativo! A situação aí está sob controle, tenente?
- Sim... - Gina deu um passo para trás, deixando um rastro no sangue que continuava escorrendo em direção às suas botas. - Está tudo sob controle.
Gina tomou um banho de chuveiro e trocou de roupa antes de ir para a sala de interrogatório. Os dez minutos que perdeu fazendo isso foram necessários. Ela estava coberta pelo sangue de Louis Trivane no momento em que liberou o corpo para os legistas. Se alguém no vestiário reparou na pequena e elegante flor estampada em sua nádega, não fez comentários.
O bochicho a respeito da terrível cena daquele crime já se espalhara por toda a central.
- Vou falar com Mirium antes. - disse Gina a Neville, enquanto avaliava a atraente mulher que a aguardava do outro lado do vidro espelhado por dentro.
- Você podia descansar um pouco, pelo menos, Gina. Os caras do laboratório estão comentando que a cena do crime foi uma das mais horrendas que eles já viram.
- Você sempre acha que já viu de tudo. - murmurou ela. - Mas sempre existe algo ainda pior. - Expeliu o ar com força. - Quero interrogá-la agora. Quero encerrar este caso!
- Certo. Quer trabalhar sozinha ou em dupla?
- Sozinha. Ela vai falar... está ligada... - Balançou a cabeça. - Talvez seja apenas louca, mas acho que está sob o efeito de alguma droga. Vou levá-la para passar pelo scanner químico, e quero também um exame laboratorial completo. O promotor não gosta de confissões obtidas quando o assassino ainda está drogado.
- Vou providenciar.
- Obrigada, Neville. - Gina passou por ele e entrou na sala. O rosto de Mirium havia sido limpo e já não mostrava vestígios de sangue. Usava um camisolão descartável, bem largo, em tom bege-claro com o logotipo da polícia, mas mesmo assim parecia uma fada jovem e alegre.
Gina colocou o gravador sobre a mesa, ligou-o e só então se sentou.
- Você sabe que foi pega em flagrante, Mirium, então não precisa ficar de enrolação. Você matou Louis Trivane.
- Sim.
- O que está usando?
- Usando?
- Não me parece Zeus em estado puro, você está dócil demais. Concorda em fazer um exame para detecção de drogas em seu organismo?
- Não quero! - Fez um biquinho com os lábios; seus olhos pretos assumiram um ar aborrecido. - Talvez mais tarde eu mude de idéia. - Apertando os lábios, beliscou o fino tecido do camisolão com os dedos, reclamando: - Não posso usar uma das minhas roupas? Isso aqui espeta, além de ofender a vista.
- Sim, nesse momento essa também é a minha preocupação principal. Por que matou Louis Trivane?
- Ele era um demônio. Foi Chas quem disse.
- Esse Chas a quem está se referindo é Charles Forte?
- Sim, mas ninguém o chama de Charles. E apenas Chas...
- Então, Chas lhe disse que Louis Trivane era um demônio. Ele lhe pediu para assassiná-lo?
- Disse apenas que eu podia fazer isso. Das outras vezes, eu fiquei apenas olhando. Dessa vez, porém, consegui fazer tudo sozinha. Havia muito sangue... - Levantou a mão e olhou para ela com todo o cuidado. - Agora, tudo acabou.
- Que outras vezes foram essas, Mirium?
- Ora, as outras vezes. - Encolheu os ombros. - O sangue purifica.
- Você participou dessas outras vezes? Testemunhou outros assassinatos?
- Claro. A morte é apenas uma transição. Tive que fazer esta. Foi um ato muito poderoso. Arranquei o demônio para fora dele. Demônios existem, e nós os combatemos.
- Assassinando as pessoas nas quais eles habitam.
- Sim. Bem que ele me disse que você era uma mulher esperta. - sorriu Mirium, olhando para Gina com os olhos semi-cerrados. - Só que jamais vai conseguir pegá-lo. Ele está muito acima de sua lei.
- Voltemos a Louis. Conte-me tudo.
- Bem, eu tenho um amigo que é funcionário do Luxury. Tudo o que precisei fazer foi trepar com ele, e essa parte até que foi legal. Gosto de trepar. Depois, peguei o cartão mestre dele e o escondi no bolso. Você pode entrar em qualquer lugar do prédio com o cartão mestre. Então, vesti uma das roupas de arrumadeira, para que ninguém me incomodasse, e fui direto até a suíte de Louis. Levei-lhe toalhas. Ele estava no banheiro. Acabara de vomitar, dava para sentir o cheiro. Então eu o esfaqueei. Fui direto na garganta, como devia fazer. Nesse momento, acho que me deixei levar pela empolgação.
Moveu os ombros e lançou um sorriso travesso para Gina, continuando:
- Acho que é como enfiar a faca em um travesseiro, entende? E faz um barulho engraçado... então, tirei o demônio de dentro dele, e foi quando você chegou. Acho que eu já havia acabado mesmo...
- Sim, acho que sim. Há quanto tempo conhece Chas?
- Humm... tem uns dois anos. Gostamos de trepar no parque, em plena luz do dia, porque nunca sabemos se alguém vai passar e nos pegar no flagra.
- E o que Isis pensa a respeito disso?
- Ah, ela não sabe... - Mirium girou os olhos. - Não ia gostar nem um pouco...
- E o que ela pensa a respeito dos assassinatos?
As sobrancelhas de Mirium se uniram e seus olhos pareceram perder o foco por um momento.
- Os assassinatos? - perguntou ela. - Isis também não sabe deles. Ou sabe?... Não, nós não contaríamos nada disso a ela.
- Então as coisas são apenas entre você e Chs?
- Entre mim e ele... - Pestanejou, pensativa, deixando em seguida os olhos sem expressão. - Acho que sim... são.
- Contou sobre isso a mais alguém que estava na convenção das bruxas?
- Na convenção? - Bateu com os dedos sobre os lábios. - Não, não, esse é o nosso segredo. Nosso pequeno segredo...
- E quanto a Wineburg?
- Quem?
- No edifício-garagem. O banqueiro. Lembra dele?
- Não, esse não fui eu, não... - Mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça. - Esse quem fez foi ele. Era para ele me trazer o coração, mas não trouxe. Disse que não houve tempo...
- E Lobar?
- Lobar, Lobar... - Seus dedos continuavam batendo nos lábios. - Não, esse foi diferente. Não foi? Não consigo me lembrar direito... estou ficando com dor de cabeça. - Sua voz se tornou petulante: - Não quero mais conversar, agora. Estou cansada! - Cruzou os braços, abaixou a cabeça sobre eles e fechou os olhos.
Gina a observou por um momento. Não havia por que forçar a barra agora, decidiu. Já tinha o suficiente, e fez sinal para o policial.
Mirium reclamou baixinho quando Gina recolocou as algemas e ordenou:
- Leve-a para o Setor de Psiquiatria. Peça à dra. Minerva para fazer-lhe uma avaliação, se possível. Solicite também um exame toxicológico.
- Sim, senhora.
Gina foi atrás deles até chegar à porta e apertou um botão de comunicação, ordenando:
- Tragam o Sr. Forte para a sala de interrogatório C.
Nesse momento, lhe ocorreu que ela bem que gostaria de abaixar a cabeça em cima dos braços também. Em vez disso, virou-se para a área de observação, no corredor. Hermione estava ao lado de Neville.
- Quero você comigo agora, Hermione. O que achou dela, Neville?
- Está doidona! - Pegou o saquinho de amêndoas açucaradas. - Se cometeu o crime porque é maluca ou porque estava sob o efeito de drogas, isso eu não sei... acho que é um pouco dos dois.
- Também acho... como é que ela pôde parecer tão normalzinha na outra noite? - Passou as mãos pelos cabelos, caindo na risada. - Não acredito que tenha dito isso! Ela estava em pé, nua, no meio do mato, e deixou Forte beijá-la entre as pernas... em público! - Abaixou as mãos, pressionando os olhos com elas por um instante e deixando-as cair, em seguida, ao lado do corpo. - O pai dele nunca usou parceiros... jamais desconfiaram de que ele tivesse usado. Sempre trabalhou sozinho.
- Então, ele tem um estilo diferente. - disse Neville. - Drogada ou não, a garota complicou a vida de Forte.
- Há algo errado nessa história... - murmurou Hermione, e Gina se virou para ela com um olhar vagamente interessado.
- O que há de errado, policial?
Mesmo detectando o leve traço de sarcasmo no tom de Gina, Hermione levantou o queixo e afirmou:
- Wiccanos não matam.
- Pessoas matam - lembrou-lhe Gina - e nem todo mundo leva seus valores religiosos a sério. Tem comido carne vermelha ultimamente, Hermione?
O rubor cobriu o rosto de Hermione, parecendo subir do seu colarinho impecável. Os partidários da Família Livre eram estritamente vegetarianos, e jamais consumiam produtos de origem animal.
- Isso é diferente. - argumentou Hermione.
- Entrei em um aposento onde um assassinato acabara de ser cometido. - disse Gina, de forma seca. - A mulher com o punhal na mão identificou Charles Forte como seu cúmplice. Isso é um fato. Não quero levar nada além de fatos concretos para a sala de interrogatório. Compreendeu?
- Sim, senhora, - Hermione enrijeceu os ombros - perfeitamente. - Mas permaneceu no lugar por um instante a mais, depois que Gina passou.
- Ela teve uma manhã muito pesada. - disse Neville, consolando Hermione. - Dei uma rápida olhada nas primeiras fotos da cena do crime. A coisa não podia ser pior.
- Eu sei. - Ela balançou a cabeça ao ver, através do vidro, Charles Forte sendo levado para a sala de interrogatório. - Mas há algo de errado nessa história. - Caminhou até a porta, entrando na sala de interrogatório no momento em que Gina recitava para Charles Forte os seus direitos.
- Eu não compreendo. - dizia ele.
- Não compreende os seus direitos e obrigações legais?
- Não, não, isso eu entendo. O que não entendo é o motivo de eu estar aqui. - Havia um ar de perplexidade e uma vaga sensação de desapontamento quando desviou o olhar na direção de Hermione. - Se a senhora precisava conversar comigo, era só marcar. Teria ido me encontrar com a senhora ou vindo até aqui de forma voluntária. Não era necessário enviar três policiais fardados até a minha casa.
- Pois eu julguei necessário. - afirmou Gina, sem outros comentários. - Deseja aconselhamento jurídico a partir desse ponto, Sr. Forte?
- Não. - Ele se remexeu na cadeira, um pouco agitado, tentando ignorar o fato de que estava dentro de um recinto policial. Como seu pai... - Simplesmente me diga o que deseja saber. Vou tentar ajudá-la.
- Fale-me de Louis Trivane.
- Sinto muito... - Balançou a cabeça. - Não conheço ninguém com esse nome.
- E normalmente manda as suas empregadas assassinarem pessoas estranhas?
- Como?!... - Seu rosto ficou branco e ele se colocou em pé. - Do que está falando?
- Sente-se! – ordenou Gina com rispidez. - Louis Trivane foi assassinado, duas horas atrás, por Mirium Hopkins.
- Mirium? Isso é ridículo. É impossível!
- Pois saiba que é bem possível sim. Entrei no local do crime no momento exato em que ela estava esquartejando o fígado da vítima.
- Deve haver algum engano. - Chas cambaleou e se jogou sobre a cadeira. - Não pode ser!
- Acho que o engano foi seu. - Gina se levantou, circulou pela sala e então se inclinou por trás dos ombros dele. - O senhor deveria escolher suas armas com mais cuidado. Quando elas têm algum defeito, podem se virar contra quem as usa.
- Não sei o que quer dizer. Posso tomar um pouco d’água? Não estou compreendendo nada...
- Mirium me contou tudo, Chas! - Fez um sinal com o polegar para Hermione, pedindo um pouco d’água. - Ela me contou que vocês eram amantes, que você não levou o coração de Wineburg para ela, como prometera, e que permitiu que ela executasse Trivane sozinha, porque o sangue purifica.
- Não! - Ele segurou o copo com água usando as duas mãos, mas mesmo assim deixou entornar um pouco pelas bordas. - Não!
- Seu pai também gostava de fatiar as pessoas. Ele lhe ensinou como fazia isso? Quantas outras armas defeituosas você usou em sua carreira? Também as dispensou depois de tê-las usado? Mantinha algum suvenir dos mortos?
Gina continuava a atacá-lo com palavras e ele continuava sentado, apenas sentado, balançando a cabeça lentamente de um lado para outro.
- Essa é a sua versão de guerra religiosa, Chas? Eliminar o inimigo? Remover os demônios das pessoas? Seu pai era um satanista com estilo próprio e fez da sua vida um inferno. Você não conseguiu matá-lo naquela época, e agora não tem condições de chegar até onde ele está. Mas há outros por aí... eles são substitutos? Quando você os mata, está matando a ele, cortando-os em pedaços porque foi o que seu pai fez com você?
- Deus, meu Deus. - Apertando os olhos com força, começou a balançar o corpo para a frente e para trás. - Ó Senhor!...
- Você pode ajudar a si mesmo agora. Conte-me por quê. Conte-me como. Explique-me tudo, Chas. Talvez eu consiga aliviar um pouco a sua barra. Fale-me de Alice. Fale-me de Lobar.
- Não... não! - Ao levantar a cabeça, seus olhos estavam cheios de lágrimas. - Eu não sou o meu pai!
Gina nem piscou e não desviou o olhar do apelo desesperado que viu em seus olhos. Simplesmente deu um passo para trás, deixou-o soluçar e perguntou:
- Tem certeza de que não é?...
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