Capitulo 1



   “Se pelo menos alguma coisa acontecesse...”, Gina desejou com rebeldia arrastando os tênis sujos pelo caminho de terra que havia tomado com a intenção de fugir à aula de tênis.



  Através da cerca viva, que rodeava as quadras, podia ouvir o ruído quase soporífero da bola contra a raquete. Um barulho tão regular que nem precisou olhar para saber que era Charlotte Howell quem estava jogando.


 


Charlotte era, de longe, a melhor tenista do convento.


  “E está muito, muito acima de mim”, Gina admitiu para si mesma com ar sonhador, inclinado a cabeça de cabelos longos e avermelhados para seguir o vôo irregular de uma abelha.



  Seus cabelos eram outra amolação. Odiava o fato de serem tão longos e lisos, mas, toda vez que pedia para cortá-los, a Irmã Maria lhe dizia que não era esse o desejo de seu pai. E as irmãs conheciam bem melhor do que ela os desejos de seu pai. Fazia anos que nem mesmo o via. Às vezes chegava a pensar, cheia de pânico, que ele pretendia deixá-la no convento pelo resto da vida. Várias de suas colegas de classe já haviam partido, algumas para terminar sua educação em escolas finas e exclusivas, outras para realizarem casamentos cuidadosamente arranjados por suas famílias.


Gina estremeceu de repente, olhando apreensiva por cima do ombro. Mas ninguém viera perturbar a paz dos jardins do claustro, o lugar para onde fugia, sempre que se sentia deprimida.
 


 Como seria ter um lar e uma família? Quando criança , fantasiava muito a esse respeito, imaginando que seu pai chegaria acompanhado de uma mulher risonha e carinhosa, que lhe diria que seu maior sonho sempre fora ter uma filha. Só que seu pai nunca se casara de novo, e sua própria mãe, que morrera quando ela estava com dois anos de idade, não era mais que uma vaga lembrança. A intensidade do sol espanhol, brilhando no céu de um azul - cobalto, avisou Gina de que sua paz logo chegaria ao fim. A aula de tênis estava para terminar, e ela teria que se juntar às outras para o almoço – uma refeição frugal mas servida com todo o cuidado no refeitório, como era chamada a sala de jantar da escola.


   O convento não era apenas uma escola no sentido comum da palavra. Mesmo Gina, com seus conhecimentos limitados do mundo , sabia disso. A maioria das garotas vinha de famílias ricas e aristocráticas, que mandavam suas filhas para o Santa Cecília sabendo que o regime duro e as atitudes morais extremamente severas das freiras produziam moças do tipo que os franceses chamam bien élevée.
  


Mesmo com toda sua ingenuidade, Gina estava ciente de que um mundo muito diferente existia do outro lado dos muros do convento. Embora não tivesse nenhuma amiga especial na escola, era uma garota popular, se bem que um pouco distante. E pelas conversas com as colegas que passavam as férias em casa ou viajando, deduzira que o mundo lá fora não era bem como diziam as freiras.



   Apenas seis semanas antes, Leonor Rodrigues, uma bela morena sul-americana, voltara das férias de Páscoa com os olhos brilhando, a boca suavizada per uma emoção que provocara um estranho arrepio no corpo de Gina, enquanto a ouvia descrever os sentimentos que nutria pelo rapaz que conhecera enquanto estava em casa.


 


   Mas meus pais acham que Rodrigo não serve para mim – Leonor acrescentar num tom infeliz -, e eu sei que têm razão. Meu casamento com um dos meus primos já está combinando há anos...



   Esse era o destino de Leonor. Mas qual seria o dela, Gina? Fizera dezoito anos há duas semana – um acontecimento totalmente ignorado por seu pai – e não poderia continuar no convento para sempre. Pelo menos, a maioria das garotas sabia o que as suas famílias tinham em mente para elas. Desde o fato de ser a única inglesa na escola, o seu caso já era pouco comum. As outras eram todas espanholas ou latino-americana,com umas poucas italianas e francesas no meio, o que às vezes fazia com que se sentisse uma estranha no convento apesar de estar lá desde os oito anos de idade.



   Quando o sino tocou para o almoço, Gina levantou-se com um suspiro, examinando o uniforme, atrás de manchas de sujeira. Limpeza era a melhor coisa, na opinião das freiras, depois do temor a Deus. E Gina, com seus cabelos compridos e pernas longas, merecia com freqüência a desaprovação das irmãs, por sua falta de jeito.



    Recentemente, no entanto, seu corpo começara a mudar. Suas pernas continuavam tão longas quanto antes, mas sua magreza já não era tanta. Os seios haviam tomado uma forma bem provocante, e a cintura era tão fina que o uniforme, justo na parte de cima, pendia com um saco sobre o resto do corpo.


 


Bianca Vincella, uma garota italiana que fora expulsa do convento por conduta escandalosa, dissera uma vez que Gina estava ficando com uma aparência incrivelmente sexy. Mas Bianca sempre gostara de brincar, e  além disso, Gina não era tão ingênua a ponto não saber que “incrivelmente sexy” era a última coisa que as freiras desejavam que suas alunas fossem.



   Com uma expressão pensativa nos olhos azul-cinzentos, Gina tomou o caminho do refeitório. Sexo era algo a ser discutido nos dormitórios, à noite, em sussurros abafados e excitados. Ela, vivendo sempre no convento, só conhecia desse assunto o que as freiras ensinavam nas aulas de biologia, e o que deduzia das confidências das outras garotas.



   Pelas suas leituras, aprendera que havia um estado de êxtase que duas pessoas podiam alcançar juntas. Mas não entendia como esse êxtase podia estar relacionado com os fatos desagradáveis da procriação, descritos pelas irmãs, ou com as desajeitadas carícias experimentadas por suas colegas.


 


   Aquele era um “dia francês”, o que significa que só a conversa em francês seria permitida. No entanto, Gina não tinha dificuldades nessa língua. Na verdade, falava, com fluência, alemão, espanhol, italiano e francês, e estava aprendendo russo. No fundo de sua mente alimentava a idéia de arrumar um emprego em que pudesse usar sua capacidade para línguas, quando saísse do convento. Talvez conseguisse fazer um curso de secretariado. Costumava se sair bem em suas lições mas como era norma do convento não submeter as alunas aos exames convencionais, não tinha meios de julgas suas próprias habilidades.



   O almoço foi a refeição moderada de sempre, se bem que com os alimentos cuidadosamente preparados e servidos de modo atraente.



   - Que delícia saber que as férias de verão estão para começar – exclamou a moça ao lado de Gina – Meus pais têm uma villa em Capri e vamos para lá.


Era uma garota de boa índole, que conhecia Gina desde que ambas tinha catorze anos de idade, e que mordeu os lábios, embaraçada, assim que acabou de falar, pois não queria ferir os sentimentos da amiga. Muitas colegas já haviam convidado Gina para passar as férias com elas, mas seu pai sempre lhe negara permissão.



   - Até parece que ele quer manter você trancada dentro desses muros o resto da vida – uma delas tinha comentado com rebeldia ao receber uma dessas recusas.


 


    Gina sorria, mas não pudera evitar a pontinha de medo se instalasse no fundo de seu coração.



   Agora, no entanto, estava com dezoito anos e era dona de sua vida. Ou não? Pois, embora tivesse condições de escolher com facilidade menus para jantares de cinqüenta ou mais convidados, soubesse exatamente que tipo de vinho servir com cada prato e como lidar com uma numerosa criadagem, não tinha a menor idéia de como se cuidar num mundo que poderia lhe parecer assustador, ou até mais hostil, depois da vida protegida do convento.



   Gina podia ser ingênua, mas não era tola. O convento tinha uma ótima biblioteca, da qual ela fizera muito uso, mas seu grande conhecimento do passado não servia de compensação para sua falta de conhecimento do presente. Jornais, a não ser religiosos, não eram permitidos. O convento ao possuía televisão, e as garotas eram proibidas de terem rádios. Até pouco tempo atrás isso nunca a aborrecera, mas ultimamente...



   Gina franziu a testa, tentando encontrar a causa de sua recente insatisfação, da estranha inquietude que vinha preenchendo seus dias.
 


 - Gina? Gina, você está sonhando de novo!



   A voz exasperada da Irmã Catarina tirou-a de seus pensamentos, fazendo-a corar , com ar de culpa. A madre superiora quer ver você – a irmã continuou, observando – a com bondade – Vá logo, minha filha. Não a deixe esperando.



   Deixar a madre superiora esperando? Isso era algo que jamais lhe passaria pela cabeça. Em toda a vida escolar, não estivera na presença daquela senhora mais do que meia dúzia de vezes, e se coração disparou, enquanto tentava adivinhar por que fora chamada agora . Não podia ser porque seu pai lhe recusara permissão para passar as férias com outra amiga, pois esse ano nem se dera ao trabalho de pedir-lhe.



   A madre superiora ocupava um amplo apartamento, separado do edifício principal do convento por um belíssimo jardim, mas Gina estava tão nervosa, imaginando que pecado poderia ter cometido, que nem conseguiu apreciar a maravilha das flores ao seu redor. Diante da porta do escritório da madre, ela bateu de leve na madeira e esperou a ordem de entrar.



  A reverenda madre era uma mulher pequena, quase vinte centímetros mais baixa que ela. Mas possuía tamanha presença, que Gina é que se sentiu intimidada.



  - Sente-se, minha filha – a religiosa mandou com um sorriso. Estava na direção do convento a quase trinta anos e conhecia suas alunas melhor do que elas mesmas se conheciam.



   Gina era a única aluna inglesa. E a princípio a madre superiora se assustara com os desejos do seu pai. A menina deveria ser guardada de um modo que ela não recomendaria nem para uma noviça. A reverenda madre não era uma romântica – acreditava firmemente que todos aqueles que queriam abandonar o mundo exterior deveriam antes prova-lo. No entanto, embora deplorasse o que julgava ser a falta de amor de sir Arthur pela única filha, criara Gina como ele lhe pedira, a não ser por uma ou duas exceções.


  


Nesses tempos esclarecidos, não era sábio nem prático manter as garotas na ignorância no que se referia a assuntos sexuais. A madre superiora pertencia a uma geração em que tal ignorância era a norma, na Espanha. Nos dias atuais, porém, era praticamente impossível manter mentalmente inocentes garotas de famílias tão ricas e poderosas quanto as de suas alunas. Na verdade, ela mesma tivera que enfrentas uma oposição considerável ao introduzir educação sexual no currículo. E o que sabia de sir Arthur fazia com que encarasse, com um certo cinismo, a duplicidade de valores que regiam o mundo.



   Sir Arthur não entrara em contato com ela antes do décimo oitavo aniversário de Gina, como esperava. A maioria das alunas deixava o convento aos dezessete anos, e a madre lamentava o fato de que Gina, uma de suas garotas mais brilhantes, jamais iria para uma universidade. Em sua opinião pessoal, Gina seria bem mais feliz, na vida que o pai planejara para ela, se fosse menos inteligente.



    Com um olhar cheio de simpatia, a reverenda madre examinou a garota à sua frente. Numa escola que abrigava principalmente alunas da raça latina, a beleza de Gina era única. Sua estrutura óssea também era diferente da das outras garotas, denunciando, com sua fragilidade e delicadeza, sua ascendência anglo-saxã.



   - Não precisa ficar tão preocupada, Gina. Tenho boas notícias. Seu pai está na França e resolveu que você deve nos deixar. Um amigo dele, o conde Potter, virá busca-la amanhã.


  


A madre superiora baixou os olhos para os papéis que ocupavam sua escrivaninha, ciente do caos emocionam que tomara conta de sua aluna. Ela gostaria que Gina fosse menos vulnerável, mas capaz de enfrentar o mundo lá fora, mas não era seu papel questionar os desejos das famílias de suas alunas. Sir Arthur deixara claro que não queria que Gina se “contaminasse” com o mundo exterior. Um estranho desejo para um homem que...


 


 Severamente, a madre afastou o pensamento pouco caridoso da cabeça, voltando à atenção para a garota à sua frente.


   - Eu sei que isso é uma surpresa para você, Gina. Na verdade, eu teria preferido que seu pai nos desse um aviso, mas você já está com dezoito anos e é hora de assumir seu lugar no mundo. Lembre-se, no entanto, de que sempre estaremos aqui, se um dia precisar de nós. – Era algo que sempre dizia às meninas quando elas partiam, mas um forte instinto lhe dava a convicção de que Gina tinha mais chance de precisar da proteção oferecida pelo convento que qualquer outra de suas alunas.



   Como num transe, Gina voltou para o quarto. As companheiras de Gina tinham saído do convento no Natal e, desde então, ela ficara sozinha. Não que se importasse. Solidão era algo que aprendera a apreciar, vivendo numa comunidade como aquela. Mas acontecera, afinal. Seu pai mandara busca-la!
 


  No quarto, Gina deixou-se cair na cama estreita. Estranho... Desejara tanto que aquilo acontecesse e agora se sentia vazia, quase apavorada. E, embora não fosse religiosa, viu-se rezando em silêncio, com medo do mundo que encontraria fora do convento.



  Depois do jantar, Irmã Teresa mandou-a subir para arrumar as malas. Seu pai tivera o cuidado de lhe mandar um jogo caro de malas, sem dúvida prevendo que as que trouxeram com ela, dez anos atrás, deviam ter se estragado. Era uma pena que ele não tivesse pensando também em lhe mandar roupas. Além de uniforme, não tinha nada.


 


  Durante o período livre que as garotas tinham, antes de ir para a cama, Gina se viu relutando em anunciar sua partida. Era inteligente o bastante para saber que muitas colegas sentiam pena dela, e não queriam que descobrisse que não era seu pai quem viria busca-la, e sim um amigo dele.



  “Papai deve estar muito ocupado”, raciocinou com lealdade.



   Sir Arthur tinha muitos negócios, sendo o mais importante uma pequena participação no banco internacional dos Montrachet, cujo centro de operações ficava em Paris. Várias vezes ele lhe escrevera, falando do poder e do orgulho dos Montrachet, e de novo ela estremeceu, assustada com a idéia de enfrentar o mundo exterior. Que espírito de contradição o seu!


Naquela mesma manhã estava louca para escapar do convento, e agora...


Agora hesitava, cheia de nervosismo, confusa e alarmada com suas próprias reações.

  Só depois do café da manhã a madre superiora mandou chamar Gina. Ela mal conseguira tocar em seu café, fugindo em seguida para os jardins do convento, onde se pusera a caminhar de uma ponta para outra, tentando dominar o nervosismo. Certamente o conde, que devia estar hospedado em Sevilha, a cidade mais próxima, tomaria um café demorado, sem desconfiar ou se importar com sua tensão crescente.



  Mesmo sem tê-lo visto, Gina já não gostava do conde, o que na certa era ridículo, pois o que estava fazendo era transferir o ressentimento que sentia pelo pai, por ele não ter ido busca-la.



  Gina atravessava o jardim pela terceira vez quando a Irmã Teresa veio apressada em sua direção, muito excitada.



  - Gina, ma petite... A madre superiora que ver você.


 


Irmã Teresa era a mais jovem e amigável das freias. Ensinava francês e muitas vezes resvalava para essa língua, mas automaticamente Gina respondeu-lhe em francês. Enquanto a seguia em direção ao escritório da madre superiora, estava ciente de que a cor em suas faces não tinha nada a ver com o calor do sol.



   Como antes, parou e bateu à porta, ouvindo o murmúrio suave da voz da religiosa e o tom mais grave e másculo da pessoa que estava com ela.


Quando entrou, fitou-a com um sorriso tranqüilizador.



   - Gina, minha filha, quero que conheça monsieur lê conte, que veio busca-la em nome de seu pai.



  Teimosamente, Gina evitou olhar na direção do conde até o último momento, e arregalou os olhos, surpresa, quando afinal o fitou. Aquele homem era completamente diferente da imagem que fizera de um amigo de seu pai. Em primeiro lugar, era muito mais jovem. Devia ter trinta e cinco anos, no máximo. Bem mais velho do que ela, mas muito, muito mais jovem que seu pai. Além disso...



   Sentindo-se como uma pessoa subitamente privada de ar, Gina obrigou-se a olhar de novo para o homem que a observava. Seria por estar acostumada apenas com feições femininas que a virilidade do rosto de malares salientes e queixo duro lhe causara tanto impacto?


 


  Com uma expressão quase atordoada, continuou a fitá-lo. Olhos verde-escuros, perigosos, olhos de predador, estudaram-na com frieza por vários segundos, prendendo seu olhar com uma força que lhe causou a impressão de estar se afogando num mar cor de esmeralda.



  Apelando para todo o seu auto controle, Gina tentou estuda-lo com a mesma objetividade que ele usara, embora ainda estivesse corada pela percepção do que aquele homem, deliberado e cinicamente, despira-a de todas as roupas enquanto a examinava. E na presença da madre superiora!


Jamais poderia mostrar tanto savoir-faire mas, mesmo assim, fez uma valente tentativa de analisar o rosto de estrutura óssea ta bem definida, surpreendendo-se ao ver que ele lhe parecia vagamente familiar. A boca masculina curvou-se sardonicamente, como se ele tivesse ciência de estar sendo mentalmente rejeitado por ela, e os cabelos escuros e espessos roçaram-lhe o colarinho da camisa, quando dobrou o braço para consultar, com ar indolente, o relógio de ouro que trazia no pulso.



   - Lembre-se de nós, minha filha, se algum dia precisar de ajuda.



   Ela usou o italiano e Gina respondeu da mesma forma, sobressaltando quando o homem alto e moreno, a seu lado, comentou cinicamente na mesma língua:



    - Vamos torcer para que a vida a trate com tanta bondade que ela nunca precise de um refúgio, reverenda madre. – Abriu a porta, pousando uma das mãos de dedos longos e morenos no ombro de Gina e empurrando-a gentilmente para fora, o que não a impediu de ter a sensação de que sua pele queimava sob o toque inesperado.


 


   No pátio externo, um carro de linhas esportivas e aerodinâmicas brilhava a luz do sol. “Um meio de transporte digno deste homem moreno, quase ameaçador”, Gina pensou, estremecendo por reconhecer, por instinto, o poder e o perigo presente em ambos.



    Sua mala foi colocada no porta-malas e a porta de passageiros aberta para que entrasse. Sobrancelhas escuras ergueram-se num gesto irônico, enquanto ele perguntava com voz arrastada:


    - Não tinha outra coisa para vestir? Ou a reverenda madre queria me fazer lembrar do que você é?


   Sem entender direito o motivo da última frase, Gina respondeu-lhe friamente que não tinha outras roupas.



  - Nenhuma? Seu pai não é um homem pobre.


  - Meu pai... Meu pai não gosta de desperdícios – Tentando não reparar no modo como as calças escuras desenhavam-lhe as coxas enquanto ele se sentava no banco do motorista, Gina cruzou as mãos no colo. Sentia-se tensa e pouco à vontade.



   - E você acha um desperdício gastar dinheiro com roupas? Você não pode passar o resto da vida com um uniforme que só serve para realçar o fato de que já passou da hora de trocá-lo por algo mais... Feminino – Ele lançou um olhar significativo para o tecido retesado sobre os seios bem-feitos.


    Gina corou. Ao mesmo tempo em que estava detestando aquela situação, sentia-se estranhamente excitada com ela.


   


Prenda o seu cinto de segurança. Assim... – Inclinando-se, o conde roçou com o braço a forma arredondada que seus olhos haviam examinado segundos atrás.


Uma verdadeira corrente elétrica percorreu Gina da cabeça aos pés, fazendo-a enrijecer e encolher-se no banco, enquanto ele prendia seu cinto, aparentemente sem perceber os efeitos causados por aquele contato físico momentâneo.



  Prendendo seu próprio cinto, o conde deu a partida no carro, e o rugido do motor abafou as batidas apressadas do coração de Gina. Ela tentava valentemente não ceder à desolação de deixar para trás a vida que sempre conhecera.



  - Não posso levar você até a França, nessas roupas – o conde comentou- depois de alguns quilômetros – Não quero ser preso por seqüestrar uma criança.


  - Meu pai deve ter se esquecido de que cresci – Gina procurou explicar, infeliz. – Nunca precisei de outras roupas, já que...



  -Já que seu pai nunca permitiu que você saísse do convento. É, eu sei disso.      – Por um instante ele voltou a atenção para Gina, que corou novamente. – Mas agora você está fora de lá, e as falhas de seu pai poderão ser remediadas.



   Gina fitou-o, surpreendendo uma frieza tão amarga naqueles olhos verde, que todo o seu corpo enrijeceu de tensão e alarme. Depois disso, o conde não mais falou, e, embora tivesse muitas perguntas a lhe fazer, o silêncio dele e a atmosfera pesada dentro do carro impediram-na de se manifestar


  


No entanto, logo a curiosidade venceu-a. Ela aproveitou a situação para fitá-lo disfarçadamente, estudando-lhe o perfil aquilino e arrogante, a forma das mão brancas e fortes que manejava o volante.


   Seria a pele dele todinha daquela cor branca?



  A indiscrição desse pensamento chocou-a, fazendo com que corasse e tirasse depressa os olhos das pernas do conde. O modo como os músculos dele se contraíam, cada vez que mudava a marcha, tinha feito com que se lembrasse dos desenhos que vira nos livros da biblioteca do convento. Na ocasião, achara que os artistas haviam exagerado a forma dos corpos masculinos, mas o homem ao seu lado poderia ter servido de modelos para eles. Ainda assim, havia nele um ar indefinível e estranho, que sugeria outra cultura, não inteiramente latina.       Havia algo no rosto dele que puxava por sua memória.


   Dentro de meia hora, eles estavam em Sevilha. A cidade não era inteiramente estranha para Gina, que a visitara em várias ocasiões com a escola, mas ela nunca estivera na ruazinha estreita, cheia de butiques elegantes, onde o conde estacionou o carro.


 


   Mais uma vez, Gina se encolheu quando ele se inclinou para ajudá-la a tirar o cinto, fazendo com que ele não conseguisse evitar o comentário irônico:
  


- Então, até mesmo a inocência tem uma certa percepção. Foi com as boas freiras que você aprendeu a evitar os homens, ma petite, ou isso vem de um instinto que vai muito além de qualquer ensinamento?


   Embaraçada e zangada por ele zombar de sua ingenuidade, enquanto, deliberadamente, tornava-a consciente da virilidade que parecia emanar por todo os poros, Gina levou a mão à porta do carro, estremecendo de alívio ao vê-la se abrir.



   Muitos olhares curiosos ergueram-se para eles, enquanto o conde a levava pela calçada. Gina não pôde conter uma expressão de desagrado ao se ver refletida no vidro da vitrine de uma das lojas, com os cabelos puxados para trás e o corpo apertado num uniforme pequeno demais para seu tamanho.
 


A loja em que entraram era pequena, mas tão imbuída de uma atmosfera de riqueza e elegância que ela se sentiu intimidada. A mulher que apareceu para servi-los examinou-a com um ar de altivo desdém, que mudou de imediato para uma gentileza quase servil quando o conde se adiantou, dirigindo-lhe a ela num espanhol tão perfeito quanto o italiano que usara no convento.



  Ao ouvir a palavra “enxoval”, Gina abriu a boca para protestar, mas foi silenciada pelo olhar do conde, que lhe disse em francês:



   - Só estou fazendo a vontade de seu pai, por isso faço o favor de não protestar


 


   Terminando de dar as instruções necessárias à vendedora, ele comunicou á Gina que iria sair para cuidar de alguns negócios, mas que estaria de volta dentro de duas horas.
  


- Seus cabelos também precisam de uma melhora – acrescentou ainda, antes de sair – Vou ver ser madame pode recomendar um bom profissional.


   - Faz tempo que quero cortá-los, mas...


   -Cortá-los: Meu Deus, isso seria um crime! Ninguém lhe disse, minha inocente, que na sua noite de núpcias seu marido vai querer vê-la coberta apensas por esse véu avermelhado? – E, sem ligar para a cor que surgiu no rosto dela, o conde jogou-lhe os cabelos para trás, num gesto despreocupado.



  Sua noite de núpcias! Gina ainda revirava essas palavras em sua mente, quando ele deixou a loja. Estranhamente, nunca pensara muito em casamento. Gostaria de ter filhos e podia imaginá-los com facilidade, gorduchos e morenos... Mas um marido? Estremeceu, de repente. Por que seu pai mandara aquele estranho para pegá-la? Por que ele não viera pessoalmente?


 


   Duas horas depois, Gina olhava, espantada, para a pilha de roupa que madame havia separado: conjuntos esportivos, em tons suaves de lilás e cinza, para combinar com seus olhos; vestidos; roupas de baixo no mais fino crepe da China, enfeitadas com borboletas bordadas em cinza e prata, tão finas e delicadas que ela corou ao experimentá-las, imaginando a desaprovação das freiras.



   A cara que madame fizera ao ver seu uniforme e roupas simples de baixo impediu de tentar vesti-las de novo. Algo dentro dela protestava contra usar coisas pagas por outro homem que não fosse seu pai. Mas, pensando que ele, no fim, terminaria por reembolsar o conde, permitiu que a cobrissem com aqueles macios pedacinhos de seda que delineavam suas curvas de forma tão sensual e sedutora.



   Ela quase protestou quando madame lhe estendeu as meias de seda, só se calando por medo de ter sua reação denunciada e sofrer a zombaria do homem que seu pai apontara como seu guardião temporário. Sem consultá-la, a mulher lhe entregou em seguida umas três-peças de seda cinza, com tons de lilás e debruado em branco na barra e nas mangas do casaquinho. A blusa solta era abotoada nas costas por uma fileira de botõezinhos, e a saia reta realçava seus quadris bem-feitos e as pernas longas.



   Colocando o casaco, Gina examinou-se no espelho, surpreendendo-se com a imagem que viu. Da Gina antiga só reconheceu o rosto pequeno e triangular. O ar desajeitado e o corpo da garota haviam desaparecido por completo, e a criatura que retribuía seu olhar era alta e esbelta, incrivelmente elegante e com olhos de um cinza enfumaçado, que pareciam refletir os tons do vestido que usava.


 


   Agora – disse -, vamos cuidar dos cabelos e do rosto. Há um bom salão aqui perto. Vou mandar minha assistente levá-la até lá e esperar que Rafael termine, para trazê-la de volta.



   Gina achou Rafael e sua equipe tão assustadores quanto temia, mas, para sua surpresa, ele concordou com a opinião do conde, de que cortar seus cabelos seria um crime.



   - Oui, seus cabelos estão cheio de pontas, mas espere até vê-los aparados e bem condicionados. Não é bom amarrá-los como você faz - Rafael declarou, olhando com censura para o elástico que ela usava para manter os cabelos longe do rosto – E a sua pele! Nunca usa um hidratante?


 


   Gina não teve coragem de lhe contar que as freiras pregavam apenas o uso de água e sabonete no convento, proibindo expressamente o uso de maquilagem, embora algumas garotas se pintassem às escondidas com os cosméticos que traziam de casa.



   Seus cabelos foram lavados, condicionados e aparados antes que Rafael se desse por satisfeito e a passasse às mãos de uma garota bonita, que se apresentou como Ana. A garota não escondeu a surpresa quando Gina lhe garantiu que não sabia nada sobre cosméticos. Sem dar vazão a sua curiosidade, no entanto, mostrou-lhe, com cuidado e paciência, como tirar o melhor partido de suas feições, dizendo-lhe que tinha a sorte de possuir um tipo que sobreviveria à simples beleza juvenil, além de olhos lindíssimos.



Depois de um longo tempo limpando e pintando seu rosto, Ana virou-a de frente para o espelho, e Gina, que já estava com medo de acabar com cara de boneca, não pôde contem uma exclamação de prazer e admiração ao se ver. Um leve tom rosa coloria seus malares, realçando-lhe o formato; seus olhos tinham um ar de misterioso, parecendo mais escuros e maiores do que se lembrava, e sua boca era uma curva deliciosamente rosada, junto à sua pele clara.



   Enquanto ela se acostumava com sua nova imagem, Ana anotou num caderninho todos os cosméticos e cores que haviam usado, entregando-lhe a Gina numa linda caixa ornamentada.


 


   De volta a Rafael para secar os cabelos, Gina ficou fascinada ao observar as ondas brilhantes que ele fez surgir nos fios longos e sedosos. Sempre pensara que seus cabelos fossem irremediavelmente lisos, mas agora ele parecia emoldurar seu rosto, cascateando-lhe pelos ombros.



   Dez minutos depois, esperando na loja de madame, com as roupas novas embaladas em caixas pretas de letras douradas, Gina sentiu seu nervosismo aumentar. Mas os hábitos adquiridos no convento já estavam muito arraigados para que se tornasse inquieta ou manifestasse, de qualquer modo, sua ansiedade interna. Aparentemente, estava tão calma e composta, que madame,.  Já a ponto de deixá-la de lado como uma criança tola e ingênua, teve que rever sua opinião. Dizendo a si mesma que sabia reconhecer uma garota bem-criada, ela amoleceu o bastante para assegurar a Gina que o conde não a deixaria esperando por muito tempo.



   Nem bem a mulher acabou de falar, a porta se abriu e o conde entrou, não dando o menor sinal de estar fora do lugar naquele ambiente completamente feminino, como Gina estava. Na certa estava acostumando a comprar roupas para as amantes.


 


   Apesar de ingênua sob muitos pontos de vista, Gina sabia dos relacionamentos mantidos por homens como o conde. Homens, ricos e sofisticados, que podiam se dar ao luxo de pagar por seu prazer e, mais tarde, quando se cansavam de seus “brinquedos”, colocá-los de lado, sem ligar a mínima para a dor que pudessem causar.



  A madre superiora na certa ficaria chocada se soubesse o quanto já era grande a antipatia que sentia pelo conde. Gina refletia sobre isso, inconsciente do quadro que oferecia enquanto esperava, imóvel e hesitante. Pálida e com ares de extrema fragilidade, deu ao homem que a observava a impressão de que a quebraria entre as mãos, se a tentasse tocá-la.


 


  Ela servia a seus propósitos bem melhor do que ele esperava. Sir Arthur era um homem muito inteligente. Com uma isca tão tentadora, não era de admirar que tivesse tanta certeza de conseguir convencer Montrachet. Uma noiva inocente e pura para a grande esperança da casa de Montrachet. Uma mulher para dar a luz os filhos que um dia herdariam esse nome. Uma criança intocada pelo homem ou pela corrupção do mundo que ele adotara como seu. Enfim, uma linda ingênua.



   O conde olho-a, sabendo o que planejava para ela, sem compaixão ou segundos pensamentos. E Gina, que o fitava, percebeu de repente onde vira um rosto como o dele – numa ilustração dos rapazes que formavam a guarda imperial do czar Alexandre, na época das guerras napoleônicas. Entre eles haviam alguns com a mesma estrutura óssea, orgulhosamente arrogantes, altivamente desdenhosos, perigosamente selvagens, apesar do verniz de civilização que ostentavam.



   -E então, Gina, vamos?



   O tom que ele usou foi tão calmo e mundano, que por um instante ela pensou que outra pessoa havia falado. Mas não. O conde segurava à porta aberta para que saísse, e lá fora o motor da Ferrari à roncava à espera deles, enquanto madame se despedia com um sorriso obsequioso.


 


  Na calçada, Gina hesitou. O conde abriu a porta do carro para ela, deixando que se acomodasse sozinha, enquanto colocava as caixas no porta-malas.  Depois, deu a volta e acomodou-se ao volante. Foi quando Gina, que já havia dado um jeito de prender o cinto de segurança, perguntou impulsivamente:



   - O senhor... o senhor tem sangue russo, conde?



   Por um instante chegou a achar que ele não fosse responder. Sua pergunta fora impolida. As freiras tinham-na ensinado a nunca fazer perguntas pessoais a ninguém, mas sua curiosidade fora espontânea.



    - Um pouco – ele admitiu, voltando-se para fitá-la e fazendo-a imaginar que pensamentos se esconderiam por trás daqueles olhos verdes - Por quê?



   Meio sem graça, ela lhe contou das ilustrações.



   -Então... você está aprendendo russo? Na certa tem dom para línguas. Minha mãe era russa. Os pais dela deixaram a Rússia durante a Revolução. Felizmente, foram dos que tiveram sorte. Meu avô tinha investimentos em Paris e eles puderam viver acostumados em Soa Petersburgo. Mas foi o suficiente para que minha mãe fosse considerada um bom partido para o meu pai e o título de Potter.



   Gina franziu a testa, e ele continuou a explicar:



  - O nome Potter é muito antigo. Vem antes da Revolução Francesa, mas eu creio que as freiras devem ter lhe ensinado que o orgulho é um pecado, bem como a vaidade. – acrescentou com ar divertido.



    Isso fez Gina desconfiar de que havia adivinhado o quanto estava encantada com sua nova aparência.



    - Seria bom você tentar dormir um pouco, ma petite. Temos um longo caminho pela frente. Não quero parar antes de chegarmos a Serivace.


 


   -Serivace?



   - Minha propriedade. – Ele olhou-a, depois sorriu. É muito bonita. Você vai gostar de lá.



   Mas o conde não mencionou sir Arthur nem quando se encontrariam. E ela se contevê calada, sabendo, por instinto, que seria inútil fazer-lhe perguntas a que ele não queria responder.



  - Tudo virá na hora certa, ma petite – ouviu-o murmurar, enquanto fechava os olhos e tentava relaxar.



   Tinha a estranha sensação de que aquele homem era perfeitamente capaz de ler seus pensamentos.


 


 


 


 


Continua...


 


 


 


Comenteem :)

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.