Capítulo Um
Capítulo Um
O garanhão se lançou sobre o cume da colina, revolvendo a terra e levantando uma nuvem de poeira. Em seguida, empinou e movimentou as poderosas patas dianteiras no ar. Por um momento, a silhueta de cavalo e cavaleiro destacaram-se contra a luminosidade do céu da tarde. Um parecia tão perigoso quanto o outro.
Ao mesmo tempo em que os cascos do animal tocavam o solo, os calcanhares do cavaleiro pressionavam seus flancos, conduzindo a ambos em um galope imprudente, rumo ao caminho mais íngreme. Aquele trecho da trilha era regular, mas nem um pouco suave, marcado, de um dos lados, por rochedos imponentes e, do outro, por um enorme penhasco. Percorriam-no imprimindo intensa velocidade, o que proporcionava imensa sensação de prazer.
Só um louco cavalgaria com tanta displicência e arrogância pela vida. Só um louco ou um sonhador.
- Avant, Drácula. - O comando foi dado em um tom de voz baixo e desafiador, assim como a gargalhada que o acompanhou. Era o tom de um homem que considerava o medo um banquete e a velocidade o vinho.
Pássaros, assustados com o som do estrondoso tropel e com a poeira, revoaram de árvores e arbustos no precipício, formando frenéticos círculos em direção ao infinito. A barulheira das aves logo se dissipou. Quando o caminho serpenteou à esquerda, o garanhão o contornou, sem diminuir o ritmo. A estrada terminava em um despenhadeiro com mais de 20 metros de altura, que se debruçava sobre as pedras brancas da orla do mar azul. Seixos eram erguidos com a poeira, para em seguida caírem silenciosamente no espaço vazio.
O cavaleiro olhou para baixo, mas não reduziu o galope. Jamais consideraria tal possibilidade.
Daquela distância, não podia sentir o cheiro da maresia. Até mesmo o estrondo das ondas batendo de encontro às rochas não podia ser claramente ouvido, era como um trovão distante e inofensivo. Mas, daquela altura, o mar parecia envolto em uma atmosfera de perigo e mistério. Todos os anos reivindicava seu tributo pelas vidas dos homens. O cavaleiro compreendia, aceitava, porque assim fora desde o início dos tempos. E assim continuaria sendo. Em ocasiões como aquela, ele se colocava nas mãos do destino e apostava tudo na própria habilidade.
O garanhão não precisava ser açoitado, nem pressionado com esporas para ser conduzido mais rápido. Como sempre, a excitação e a confiança do mestre eram suficientes. Ambos desceram o sinuoso caminho até poderem ouvir o barulho do mar e o grito das gaivotas.
Para um expectador, poderia parecer que o cavaleiro estava fugindo do diabo ou correndo para os braços de um amor. Mas qualquer um que fitasse seu rosto saberia que não se tratava de uma coisa nem outra.
Se havia um brilho nos olhos escuros, não era de medo ou de antecipação. Era de puro desafio. Viver o momento e para o momento, apenas. A velocidade fazia seus cabelos pretos voarem livres ao vento, bem como os pêlos da crina do cavalo.
O garanhão, negro como carvão, exalava pura energia, com seu peito largo, pescoço poderoso. A pele brilhava com o suor, mas sua respiração continuava ritmada. No seu lombo, o cavaleiro se mantinha ereto. A face, estreita e bronzeada, excitada. A boca cheia e esculpida, curvada em um sorriso que expressava, ao mesmo tempo, negligência e prazer.
Quando o caminho se tomou mais plano, as passadas do cavalo se alongaram. Ali, os dois passaram por cabanas caiadas de branco, com varais de roupas secando à brisa marinha. Flores cobriam os jardins bem cuidados, e as janelas descortinadas estavam abertas. O sol, ainda alto no céu, lançava seus raios brilhantes sobre a terra. Sem diminuir o ritmo, sem precisar das mãos leves do cavaleiro em suas rédeas para guiá-lo, o garanhão correu para uma cerca viva tão alta quanto a cintura de um homem.
Juntos, saltaram a cerca.
Ao longe avistavam-se os estábulos. Da mesma maneira que havia perigo e atração mortal nos despenhadeiros, que ficaram para trás, havia paz e ordem no cenário à frente. Vermelhas, brancas e bem cuidadas, como o gramado que as cercava, as construções acrescentavam charme à paisagem de colinas e à vegetação. Cercas cruzadas formavam paddocks, nos quais cavalos eram exercitados, com menos intensidade que o Drácula.
Um dos cavalariços parou de conduzir uma jovem égua em círculos quando ouviu o garanhão se aproximar. Louco como um mergulhão, pensou o homem, mas não sem alguma admiração. Cavalo e cavaleiro, voando juntos naquele galope frenético, eram uma visão comum. Mesmo assim, dois outros cavalariços aguardaram atentos, até o animal reduzir a velocidade e parar.
- Alteza.
Sua Alteza, o príncipe Harry de Cordina, deslizou do lombo de Drácula com uma risada que expressava imprudência.
- Cuidarei dele pessoalmente, Pipit.
O velho cavalariço deu um passo à frente com um leve coxear. Apesar da expressão serena na face enrugada, o homem passou os olhos pelo principie e pelo garanhão, conferindo algum sinal de ferimento.
- Perdoe-me, senhor, mas chegou uma mensagem do palácio enquanto estava fora. O príncipe Tiago deseja vê-lo.
Com um pouco de pesar, Harry entregou as rédeas ao cavalariço. Parte do prazer da cavalgada era a hora em que, normalmente, se dedicava a caminhar com o garanhão e escová-lo. Mas se o pai o mandara chamar, não tinha escolha a não ser renunciar ao prazer em prol do dever.
- Cuide bem dele, Pipit. Fizemos uma longa corrida.
- Sim, senhor. - disse o cavalariço, que passara três quartos da vida com os cavalos. Um dos seus deveres fora ensinar Harry a montar em seu primeiro pônei. Aos 60 anos, com uma perna prejudicada por causa de uma queda, lembrava-se da energia e da paixão da mocidade. Batendo de leve no pescoço de Drácula, achou-o úmido.
- Vou cuidar dele pessoalmente, Alteza.
- Faça isso, Pipit. - Mas Harry demorou a soltar as cilhas. - Obrigado.
- Não precisa agradecer, senhor. - Com um suspiro abafado, Pipit suspendeu a sela do lombo do garanhão. - Não há outro homem aqui com nervos para lidar com o diabo. - O estribeiro murmurou algo em francês quando o cavalo começou a se remexer. Em segundos, Drácula voltou a se acalmar.
- E não há outro homem em quem eu o confiaria. Uma concha extra de ração hoje à noite não faria mal a Drácula.
Pipit encarou o elogio como se nada fosse além do seu dever.
- Como quiser, senhor.
Ainda agitado, Harry virou-se, afastando-se dos estábulos. Podia ter gasto a hora extra para se acalmar. Galopar velozmente, sem se preocupar, satisfazia apenas parte de sua sede. Precisava de movimento, de velocidade, mas, acima de tudo, precisava de liberdade.
Há quase três meses estava preso ao palácio e ao protocolo, às pompas e aos procedimentos. Como segundo na linha de sucessão ao trono de Cordina, seus deveres, às vezes, eram menos públicos que os do irmão, Alexander, mas raramente menos árduos. Deveres, obrigações, faziam parte da sua vida desde o nascimento, e, normalmente, eram encarados como algo natural. Harry não sabia explicar para si mesmo, muito menos para qualquer outra pessoa, por que desde o ano anterior começara a se revoltar contra isso.
Hermione havia percebido. Harry imaginou que talvez ela entendesse o que se passava com ele. A irmã também sempre tivera sede de liberdade e privacidade. E conseguira isso dois anos antes, quando Alexander se casara e o peso da responsabilidade saíra um pouco dos seus ombros.
Mesmo assim, nunca se esquivara dos seus deveres, pensou Harry enquanto atravessava as portas do jardim do palácio. Se precisassem, podiam contar com ela. Ainda dedicava seis meses, todos os anos, à Associação de Ajuda às Crianças Deficientes, sem descuidar do seu casamento e dos filhos.
Harry enfiou as mãos nos bolsos enquanto subia os degraus que o levariam ao escritório do pai. O que havia de errado com ele? O que acontecera nos últimos meses que o fizera desejar sair na calada da noite do palácio e fugir para qualquer lugar?
Não pôde livrar-se daquele estado de espírito, mas conseguiu acalmá-lo quando bateu à porta do escritório.
- Entre.
Tiago não estava atrás da escrivaninha como Harry imaginara, mas sentado ao lado de uma bandeja de chá junto à janela. Em frente a ele, uma mulher, que se ergueu ao ver o principie entrar.
Como um homem que costumava apreciar as mulheres, de qualquer idade e forma, fez uma leve inspeção, antes de se virar para o pai.
- Sinto muito interrompê-los, mas fui informando que o senhor desejava me ver.
- Sim. - Tiago tomou um gole de chá. - E já faz algum tempo. Príncipe Harry, gostaria de lhe apresentar lady Gina Weasley.
- Alteza. - A mulher baixou o olhar, enquanto se curvava em uma reverência formal.
- É um prazer conhecê-la, lady Gina. - Harry segurou-lhe a mão, fazendo-a erguer-se em segundos. Atraente de um modo suave. Gostava de mulheres mais chamativas. Britânica, a julgar pelo sotaque. Preferia as francesas. Esbelta e asseada. Com freqüência, sentia-se atraído pelas mais voluptuosas. - Seja bem-vinda a Cordina.
- Obrigada, Alteza.
O sotaque era de fato britânico, culto e reservado. Por um breve instante, seus olhares se cruzaram e ele percebeu que os olhos dela eram de um azul profundo e brilhante.
- Seu país é muito bonito.
- Por favor, sente-se, minha querida. - sugeriu Tiago, apontando para a cadeira, enquanto vertia outra xícara de chá. - Harry.
Gina, com as mãos entrelaçadas sobre o colo, percebeu que o jovem príncipe olhou com antipatia para o bule. Mas sentou e aceitou a xícara.
- A mãe de lady Gina é uma prima distante sua. - começou Tiago. - Eve e ela se tornaram muito amigas quando seu irmão visitou a Inglaterra recentemente. A convite de Eve, concordou em ficar conosco para lhe fazer companhia.
Harry só esperava que não quisessem que ele escoltasse a moça. Era muito bonita, entretanto se vestia como uma freira. O vestido cinza de gola alta cobria-lhe os joelhos. A cor do traje não destacava em nada a pele clara.
Os olhos livravam-lhe a face de se tornar pálida, mas os cabelos vermelhos, presos para trás de modo tão austero, lembravam as velhas acompanhantes ou governantas vitorianas. Entediante, pensou ele. Mas lembrou-se de seus modos e deu-lhe um sorriso breve e sociável.
- Espero que aprecie sua permanência tanto quanto nós, em tê-la conosco.
Gina lançou-lhe um olhar solene e desejou saber se o príncipe estava ciente, e por certo estava, do quão viril parecia com aquele casual traje de equitação.
- Tenho certeza de que apreciarei imensamente, senhor. Sinto-me lisonjeada pelo convite da princesa Eve para que permaneça aqui enquanto ela aguarda o nascimento do segundo filho. Espero lhe proporcionar a companhia e a ajuda que ela necessita.
Embora estivesse prestando atenção à conversa, Tiago ofereceu um prato de biscoitos glaçados.
- Lady Gina foi muito generosa concedendo-nos seu tempo. É uma verdadeira literata e está trabalhando atualmente em uma série de composições.
Entediante, pensou Harry e tomou um gole do odioso chá.
- Fascinante!
O mais breve dos sorrisos tocou os lábios de Gina.
- Costuma ler Yeats, senhor?
Harry se remexeu incomodamente na cadeira e percebeu que desejava voltar para os estábulos.
- Não muito.
- Meus livros devem chegar aqui no final da semana. Por favor, sinta-se à vontade para me pedir emprestado qualquer título que lhe interesse. - Gina se ergueu mais uma vez, mantendo as mãos entrelaçadas. - Se me der licença, Alteza, gostaria de desfazer o restante da minha bagagem.
- Claro! – Tiago se ergueu para conduzi-la até a porta.
- Nós a veremos no jantar. Chame os criados se precisar de algo.
- Obrigada, senhor. - Ela fez uma respeitosa reverência e, em seguida, estendeu a cortesia a Harry. - Boa tarde, Alteza.
- Bonjour, lady Gina. - Harry esperou até que a porta se fechasse atrás dela, antes de se sentar sobre o braço da cadeira. - Bem, ela vai enfadar Eve até as lágrimas em uma semana. - Deixando o chá de lado, pegou um punhado de pequenos biscoitos. - O que deu na cabeça de Eve?
- Sua cunhada ficou muito amiga de Gina durante as duas semanas que passou na Inglaterra. - Tiago caminhou até um gabinete e, para alívio de Harry, retirou uma garrafa de bebida. - Gina é uma jovem culta e de excelente família. Seu pai é um importante membro do Parlamento britânico.
O conhaque era concentrado e rico. Tiago verteu o líquido no copo frugalmente.
- Isso é bom, mas... - Harry calou-se de repente, enquanto pegava um copo. - Santo Deus, papai, não está pensando em formar um casal aqui. Ela não faz meu tipo.
A boca firme de Tiago se suavizou com um sorriso.
- Sei muito bem disso. Mas posso lhe assegurar de que lady Gina não foi trazida até aqui para tentá-lo.
- Ela não teria essa possibilidade. - Harry rodou o copo de conhaque, então tomou um gole. - Yeats?
- Muitas pessoas acreditam que a literatura é algo que transcende os manuais de equitação. - Tiago tirou um cigarro do maço. Havia um nó de tensão na base do seu pescoço. Forçou-o a permanecer lá em vez de permitir que se alastrasse.
- Prefiro ler algo útil em vez de poesia sobre amores não correspondidos ou a beleza de um pingo de chuva. - Quando aquilo o fez sentir-se pequeno e sem graça, Harry cedeu. - Mas, em todo caso, farei o possível para proporcionar uma boa estada à nova amiga de Eve.
- Nunca duvidei disso.
Com a consciência mais tranqüila, Harry abordou assuntos que julgava mais importantes.
- A égua árabe deve parir por volta do Natal. Estou apostando que é um potro. Drácula criará filhos fortes. Tenho três cavalos que devem estar prontos para serem exibidos na primavera e outro que penso em aproveitá-lo em provas olímpicas. Gostaria de organizar isso dentro de poucas semanas, de modo que os cavaleiros possam ter mais tempo para trabalhar com o cavalo.
Tiago fez um aceno displicente e continuou rodando o copo de conhaque.
Harry sentiu o familiar sentimento de impaciência surgir e lutou para controlá-lo. Sabia que os estábulos não estavam na lista de prioridades do pai. Mas como poderiam estar, com negócios internos, relações exteriores e trapaças políticas no Conselho da Coroa?
Ainda assim, tinha que haver algo mais? Os cavalos não apenas proporcionavam prazer, mas também acrescentavam certo prestígio, já que a Casa Real de Cordina possuía um dos melhores estábulos da Europa.
Harry considerava sua única contribuição verdadeira para a família e para o país.
Trabalhara árduo e servilmente nos estábulos como qualquer cavalariço. Durante anos, estudara tudo que podia sobre criação. Para sua satisfação, descobrira um dom natural que acrescentara estímulos a sua educação. E em curto espaço de tempo transformara um bom estábulo, no melhor. Em mais outra década, tinha certeza, não existiria outro igual.
Mas havia horas em que precisava discutir sobre os cavalos e suas ambições com alguém que não fosse um cavalariço ou outro criador. Mas sabia, e sempre soubera, que essa pessoa dificilmente seria seu pai.
- Acho que não é hora para discutirmos esse assunto. - Harry tomou outro pequeno gole de conhaque e esperou que o pai revelasse tudo que se passava em sua mente.
- Sinto muito, filho. Receio que não seja mesmo. - Tiago experimentou uma sensação de pesar Um principie não podia se dar a esse luxo. - Como está sua agenda para a próxima semana. Importa-se de me colocar a par?
- De fato, não. - Ele ficou inquieto outra vez. Erguendo-se, Harry começou a caminhar de um lado para o outro. Das janelas, o mar parecia tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante, pensou. Então, ansiou pelo momento em que estaria a bordo de um navio novamente, a milhas de distância de qualquer terra, com uma tempestade se formando no horizonte. - Sei que tenho de participar do Le Havre no fim da semana. O Independance está chegando. Há uma reunião com a Cooperativa dos Fazendeiros e alguns almoços. Cassell preenche todas as minhas manhãs. Se for importante, posso pedir-lhe que datilografe as prioridades para o senhor. Tenho certeza de que estou cortando pelo menos alguma amarra.
- Está se sentindo preso?
Encolhendo os ombros, Harry bebeu rapidamente o último gole de conhaque. Então, o sorriso fácil retomou-lhe aos lábios. Afinal, a vida era muito curta para viver se lamentando.
- As amarras é que fazem isso. O resto, pelo menos, parece que vale a pena.
- Nosso povo exige de nós bem mais do que as tarefas de simples governantes.
Harry se virou da janela. Atrás dele o sol alto e luminoso no céu. O fato de ter nascido na família real, às vezes, mascarava os desejos mais secretos de seu coração.
- Eu sei, papai. O problema é que não tenho a paciência de Alexander, a serenidade de Mione ou seu controle.
- Você pode precisar de tudo isso muito em breve. - Tiagopousou o copo e encarou o filho. - Deboque será libertado da prisão dentro de dois dias.
Deboque. A simples menção daquele nome fazia o estômago de Harry se agitar. François Deboque. O homem que dera ordens para seqüestrar Hermione. O homem que planejara assassinar Tiago e Alexander. Deboque!
Harry pressionou um dedo sobre a cicatriz em seu ombro esquerdo. Levara um tiro naquele lugar, e o gatilho fora puxado pela amante de Deboque. Para Deboque. Por Deboque.
A bomba colocada dois anos antes na Embaixada de Paris tinha como objetivo atingir seu pai. Em vez disso, matara Seward, o leal assistente, que deixou viúva e três crianças órfãs. Deboque também estava por trás disso.
E por todos aqueles anos, agora quase dez, desde que Hermione fora seqüestrada, ninguém conseguira provar o envolvimento de Deboque no seqüestro, nas conspirações ou nos assassinatos. Os melhores investigadores da Europa, inclusive o cunhado, Rony Weasley, trabalharam no caso, mas nenhum conseguiu provar que Deboque era o responsável.
Agora, em poucos dias, estaria livre.
Não havia dúvida na mente de Harry que Deboque continuaria tentando se vingar. A Família Real era sua inimiga, se não fosse por outra razão, pelo fato de ter ficado trancafiado em uma prisão de Cordina por mais de uma década. E também não havia dúvida que durante todo o tempo ele continuara negociando drogas, armas e mulheres.
Nenhuma dúvida e nenhuma prova!
Aumentaria o efetivo de guardas. A segurança seria reforçada. A Interpol continuaria seu trabalho, bem como o Sistema de Segurança Internacional.
Mas tanto a Interpol quanto o SSI, durante anos, vinham tentando incriminar Deboque por assassinato e conspiração. Mas até ele ser mantido sob controle e os fios de sua organização cortados, Cordina e o restante da Europa ficariam vulneráveis.
Enfiando as mãos nos bolsos, Harry saiu para o jardim. Pelo menos tinham jantado en famille aquela noite. Aliviado um pouco da tensão, embora muito pouco pudesse ter sido dito na frente da nova amiga de Eve. Duvidava que alguém tão reservado e empertigado teria percebido alguma tensão durante o jantar. A mulher apenas respondera o que lhe fora perguntado e tomou uma única taça de vinho ao longo da refeição.
Teria desejado que ela voltasse para a Inglaterra uma dúzia de vezes se não tivesse testemunhado o modo carinhoso com que de fato a moça tratava Eve. A cunhada estava grávida de três meses do segundo filho e não precisava de um estímulo adicional que uma conversa relacionada a Deboque suscitaria. Dois anos antes, ela quase morrera tentando proteger Alexander. Se lady Gina conseguisse manter a mente de Eve afastada de Deboque, mesmo que por algumas horas no dia, a inconveniência de tê-la no palácio valeria a pena.
Precisava conversar com Rony. Harry enfiou as mãos crispadas nos bolsos. Rony Weasley era mais que o marido da irmã. Como chefe de segurança, o cunhado teria algumas respostas. E ele, certamente, teria dúzias de perguntas. Precisariam fazer mais do que colocar guardas extras. Recusava-se a passar as próximas semanas às cegas, enquanto outros trabalhavam para proteger sua família.
Blasfemando baixinho, olhou para a lua em um céu sem nuvens. Em outra ocasião, com o perfume do jardim flutuando ao seu redor, teria desejado uma mulher a seu lado para contemplarem a beleza do infinito. Agora, sentindo-se frustrado, preferia a solidão.
Ao ouvir os cachorros latindo, seu corpo enrijeceu. Imaginou que estivesse só. Estava quase certo disso. Em todo caso, seus velhos cães de caça jamais latiam para a família ou para os criados. Na expectativa de um confronto, Harry caminhou devagar na direção do barulho.
Naquele instante, ouviu a risada dela e o som o pegou de surpresa. Não era reservado e afetado, mas rico e encantador. Enquanto a observava, Gina se curvou para acariciar os cães, que se esfregavam em suas pernas.
- Mas, vejam, que casal adorável vocês formam. - Sorrindo, ela se curvou mais ainda para afagá-los. A luz do luar iluminou-lhe a face e o pescoço.
De imediato, os olhos de Harry se estreitaram. Não parecia desbotada e sem graça naquele momento. O luar acentuava-lhe as reentrâncias e os contornos da face, enriquecendo a pele inglesa acetinada e aprofundando ainda mais seus olhos azuis. Poderia jurar que vira força e paixão naquele olhar. E era um homem capaz de reconhecer ambos em uma mulher. A risada dela flutuou novamente, tão rica quanto a luz do sol, tão abafada quanto à névoa.
- Não, não devem saltar. - disse ela aos cachorros que a circulavam. - Jogarão lama em cima de mim, e como vou explicar isso?
- Normalmente, é melhor não explicar nada.
Gina ergueu a cabeça ao ouvir a voz de Harry. Ele viu surpresa em sua expressão, ou pensou ter visto. Quando a jovem se endireitou, voltou a ser a calma e discreta lady Gina. Ele atribuiu a paixão, que pensara ter visto, a um efeito de luz.
- Boa noite, Alteza. - Por um momento, Gina se amaldiçoou por ter sido pega distraída.
- Não sabia que havia mais alguém no jardim.
- Nem eu. - E ela deveria saber - Peço que me desculpe.
- Não se preocupe. - Harry sorriu para deixá-la à vontade. - Sempre achei que estes jardins não são desfrutados como deveriam. Não conseguiu dormir?
- Não, senhor. Sempre fico muito agitada quando viajo.
Os cachorros a abandonaram por Harry. Ela permaneceu ao lado do jasmim em flor e o observou acariciar os animais com aquelas mãos fortes e hábeis. Sabia que inúmeras mulheres haviam desfrutado daquele mesmo toque carinhoso.
- Avistei os jardins da minha janela e imaginei que pudesse fazer uma caminhada. - Na verdade, fora o perfume, exótico e atraente, que a levara a parar repetidas vezes após ter observado o layout do espaço.
- Prefiro-os à noite. As coisas parecem diferentes à noite. - continuou ele, estudando-a. - Não acha?
- Naturalmente. - Ela uniu as mãos abaixo da cintura. O príncipe era maravilhoso de se olhar, tanto à luz do sol quanto ao luar. Quando ele adentrara o escritório do pai naquela tarde, ela achou que o traje de equitação valorizava a aparência dele. Os cachorros voltaram a pressionar os focinhos contra as mãos dela.
- Eles gostam de você.
- Sempre fui apaixonada por animais. - Gina separou as mãos para acariciar os cães. Harry notou, pela primeira vez, que as mãos dela eram delicadas, longas e finas como o restante do corpo. - Como eles se chamam?
- Boris e Natasha.
- Nomes adequados para cães de caça russos.
- Ganhei-os ainda filhotes. E lhes dei esses nomes por causa de um desenho animado norte-americano. Espiões.
As mãos dela hesitaram por um segundo.
- Espiões, Alteza?
- Espiões russos ineptos que estavam sempre às voltas com um alce e um esquilo.
Harry teve a impressão de ter visto, outra vez, o flash de humor dar um colorido especial à face de Gina.
- Compreendo. Eu nunca fui à América.
- Não? - ele se aproximou, mas não viu nada além de uma jovem com uma boa estrutura óssea e maneiras reservadas. - É uma nação fascinante. Cordina ficou mais unida a esse país quando dois membros da família Real se casaram com norte-americanos.
- Um fato que desapontou vários europeus esperançosos, tenho certeza. - Gina relaxou bastante para curvar os lábios num sorriso cauteloso. - Conheci a princesa Hermione vários anos atrás. Ela é uma mulher muito bonita.
- Sim, ela é. Sabe, estive várias vezes na Inglaterra. É estranho nunca termos nos encontrado.
Gina permitiu que seu sorriso se prolongasse um pouco mais.
- Mas nós nos encontramos, Alteza.
- Boris, sente. - Harry ordenou ao cachorro que colocou uma pata no vestido de Gina. - Tem certeza?
- Claro, senhor. Mas não é de admirar que não se lembre. Foi em um baile de caridade oferecido pelo príncipe de Gales, vários anos atrás. A rainha mãe o apresentou a mim e a minha prima, lady Sara. Creio que Vossa Alteza e Sara se tomaram... amigos.
- Sara? - ele tentou se lembrar. Sua memória, sempre tão boa, era impecável quando se tratava de mulheres. - Sim, claro. - No entanto, lembrava de Gina apenas como uma vaga sombra ao lado da fascinante e glamourosa prima. - Como está Sara?
- Muito bem, senhor. - Se havia sarcasmo no tom de voz, foi encoberto pelo modo educado de falar - Alegremente casada pela segunda vez. Devo lhe transmitir lembranças suas?
- Se desejar... - Harry enfiou as mãos novamente nos bolsos e continuou a estudá-la. - Você estava usando um vestido azul, azul-claro quase branco.
Gina ergueu as sobrancelhas. Ninguém precisava lhe dizer que o príncipe mal a notara. E o fato de não tê-la notado e ainda assim se lembrar da cor do vestido que ela usara a fez pensar por um momento: uma memória assim poderia ser conveniente ou muito perigosa.
- Isso me deixa lisonjeada, Alteza.
- E uma política minha nunca esquecer uma mulher.
- Sim, acredito.
- Minha reputação me precede. - O rosto se contraiu para em seguida ceder lugar a um sorriso displicente. - Não fica preocupada em estar no jardim, sozinha, ao luar com...
- O Libertino Real? - concluiu Gina.
- Você lê. - Harry murmurou.
- Incessantemente. E não, Alteza, sinto-me bastante confortável, obrigada.
Harry abriu a boca e riu, e a fechou outra vez.
- Lady Gina, raramente fui colocado em meu lugar com tanta clareza.
Então ele era rápido, outro detalhe que ela não podia esquecer.
- Perdoe-me, Alteza. Não tive essa intenção.
- Claro que não, mas foi bem-feito. - Ele segurou a mão dela e a achou fria e firme. Talvez ela estivesse se revelando uma pessoa interessante e não a estúpida que ele imaginara. - Eu é quem deveria implorar seu perdão por tentar seduzi-la, mas não vou fazê-lo já que, obviamente, você se defende muito bem. Estou começando a entender por que Eve a quer aqui.
Gina aprendera a bloquear qualquer forma de culpa muito tempo atrás. E usou do artifício naquele momento.
- Tornamo-nos muito amigas em pouco tempo e fiquei encantada com a oportunidade de passar alguns meses em Cordina. Confesso que já estou apaixonada pela pequena princesa Marissa.
- Com apenas um ano de idade já está regendo o palácio.
Os olhos de Harry se suavizaram ao pensar na primeira filha do irmão.
- Talvez seja porque se parece com Eve.
Gina afastou a mão. Os rumores davam conta de que Harry fora meio apaixonado ou possivelmente mais do que meio apaixonado pela esposa do irmão. Não precisava de muito talento para uma observadora como ela perceber o afeto na voz do príncipe. Disse a si mesma para registrar aquilo. Poderia ou não ter utilidade no futuro.
- Se me dá licença, senhor, vou voltar para o meu quarto.
- Ainda é cedo. - Harry relutou em deixá-la partir. Não esperava achar tão fácil conversar com ela ou sentir prazer em falar com aquela mulher.
- Tenho hábito de me deitar cedo.
- Vou acompanhá-la até o palácio.
- Por favor, não se preocupe. Sei o caminho. Boa noite, Alteza.
Gina desapareceu depressa em meio às sombras, enquanto os cães ganiam e abanavam as caudas contra as pernas dele.
O que havia de estranho com aquela mulher? Desejou saber Harry ao se abaixar para acalmar os animais. A primeira vista, parecia bastante insípida para se confundir com o papel de parede, entretanto agora... Ele não sabia. Mas enquanto caminhava de volta ao palácio, com os cachorros em seu encalço, resolveu descobrir. Se não conseguisse refletir sobre as maneiras reservadas de lady Gina, pelo menos evitaria que pensar em Deboque.
Gina não esperou para ver se o príncipe a seguia. Ainda assim, caminhou depressa através dos portões do jardim. Nascera com o talento de se mover furtivamente e passar tão despercebida que sua falta poderia não ser notada em um grupo de três pessoas. Era um talento que transformara em habilidade e que lhe servia muito bem.
Subiu os degraus sem fazer barulho, sem olhar para trás. Se tivesse que conferir se estava sendo seguida, já estaria em dificuldade. Dentro do quarto, fechou a porta e retirou as práticas sandálias. Porque a mulher que ela pretendia ser jamais deixaria suas roupas espalhadas. Gina as apanhou e, com apenas um breve olhar de insatisfação, colocou-as no armário.
Certificando-se de que as cortinas estavam fechadas, retirou o desagradável vestido de noite.
Embora pensasse que merecia ser jogado no lixo, pendurou-o cuidadosamente em um cabide decorado.
Estava parada agora: uma mulher com curvas discretas, pele clara e pernas longas em uma minúscula camisola rendada. Retirando os grampos dos cabelos, deixou-os cair pesadamente até a cintura com um suspiro de puro prazer.
Qualquer pessoa que conhecesse lady Gina Weasley ficaria boquiaberta com aquela transformação total, tão conhecido era o papel que ela representava há quase dez anos.
Lady Gina tinha paixão por sedas e rendas bretãs, mas as restringia às roupas de dormir e às lingeries. Linhos e tecidos de lã eram mais adequados à imagem que trabalhara arduamente para criar.
Lady Gina gostava de ler livros de suspense, em uma banheira de espuma, mas mantinha uma cópia de Chaucer na mesa-de-cabeceira, e, se questionada, poderia citar e discutir um punhado de passagens da obra.
Não era uma questão de dupla personalidade, mas de necessidade. Se pensasse mais profundamente no assunto, diria que se sentia confortável com ambos os egos. Na realidade, gostava mais da insípida, educada e marginalmente bela Gina. Caso contrário, jamais poderia tolerar os incômodos sapatos por períodos tão longos.
Mas havia outra parte de lady Gina Weasley que era apenas a filha de lorde Weasley, neta do conde de Fenton.
Essa parte não era reservada e modesta, mas astuta e, às vezes, estouvada. E mais: essa parte adorava o perigo e sua mente absorvia e armazenava os mínimos detalhes.
Combinadas, essas duas partes de lady Gina Weasley formavam uma excelente e altamente qualificada agente.
Ignorando o roupão, abriu a gaveta superior e retirou uma caixa comprida e fechada. Dentro havia um colar de pérolas que pertencera a sua bisavó, bem como um par de brincos que o pai restaurara para o 21º aniversário da filha. Nos compartimentos da caixa haviam várias outras peças adequadas a uma jovem de sua classe.
Gina retirou um bloco do fundo falso, levou-o até a escrivaninha de pau-rosa e começou a escrever seu relatório diário. Não fora ao jardim apenas para sentir o perfume das rosas, embora tivesse se demorado um pouco mais por causa delas. Agora tinha o esquema completo e não precisaria mais contar com as informações que chegavam até ela. Aproveitara o tempo para fazer um esboço do palácio, inclusive das portas e janelas de fácil acesso. No dia seguinte, ou em dois dias no máximo, teria uma relação de todos os guardas.
Não levara muito tempo para se tomar amiga de Eve. Conseguir um convite para se hospedar no palácio em Cordina fora muito fácil. Eve sentia falta da irmã e da familiaridade do próprio país. Precisava de uma amiga. Alguém com quem pudesse conversar, com quem pudesse compartilhar o prazer que sentia com a filha.
Gina lhe fizera um favor.
Outra vez, sentiu uma pontada rápida de culpa, mas a ignorou. Trabalho era trabalho, lembrou-se. Não podia deixar o afeto que sentia por Eve interferir no projeto no qual começara a trabalhar dois anos atrás.
Sacudindo a cabeça, fez as primeiras anotações sobre Harry. O príncipe não era exatamente o que ela esperara, pensou. Oh, na verdade era encantador e tão atraente quanto seu dossiê informava, mas dispensara à insípida lady Gina seu tempo e atenção.
Um mulherengo egoísta, lembrou-se. Chegara a tal conclusão após fazer uma pesquisa sobre ele. Talvez estivesse um pouco entediado e quisesse estimular os pensamentos, distraindo-se com uma mulher vulnerável e acessível.
Estreitando os olhos, recordou o modo como Harry sorriu para ela. Um homem com aquela aparência, posição e experiência sabia como usar um sorriso ou uma palavra agradável para encantar uma mulher de qualquer idade ou classe. O fato é que fazia isso com surpreendente regularidade, como estava documentado. Talvez quisesse acrescentar outra jóia à sua coroa, seduzindo-a.
Gina lembrou-se da silhueta máscula banhada pelo luar, o brilho ardente nos olhos escuros, quando ela o provocou. A mão firme e forte que segurou a sua... Era a mão de um homem que fazia mais do que acenar para seu povo.
Meneando a cabeça mais uma vez, forçou-se a ser prática. Não adiantaria considerar um flerte com Harry por prazer, mas por sua utilidade. Pensativa, bateu com a ponta do lápis no bloco. Não, um romance com Harry só conduziria a complicações, não importava o quão vantajoso poderia ser no final das contas.
Abaixando o olhar, cruzou as mãos. Com cuidado, Gina escondeu o caderno novamente e reposicionou o fundo falso. A caixa foi fechada, mas deixada à vista de qualquer um que mexesse em sua cômoda.
Ela estava ali dentro, disse a si mesma com um crescente sentimento de antecipação, enquanto olhava ao redor do quarto.
Quando Deboque saísse da prisão, dentro de dois dias, ficaria muito contente.
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