Capitulo 2
O magistrado bateu o martelo, e Gina adiantou-se. A corte de Old Bailey era como Jocko descrevera. E ele era um freqüentador antigo do local. As janelas estreitas e imundas deixavam entrar pouca luz e nenhum ar fresco. Insetos zumbiam. Pessoas tossiam, cochichavam e se mexiam sem parar. Gina estremeceu de nojo. O cheiro de suor e de mau hálito infectava o ar. Provavelmente ela também exalava aquele odor, depois de uma semana na prisão imunda de Newgate.
Ela e Mick tinham sido trancafiados no labirinto subterrâneo de celas fétidas, ao lado de assassinos, devedores, ladrões, prostitutas e salteadores. Pasma, constatara que os ali confinados andavam para todos os lados, brigavam, namoravam e faziam sexo nos cantos escuros das paredes de pedras.
A beleza exótica de Gina atraiu logo os olhares cobiçosos masculinos. Temerosa, passara a primeira noite em Newgate abraçada com Mick. Um pouco antes, ela dera seus brincos de ouro falso ao carcereiro, em troca de um pedaço de pão amanhecido e de um caneco de água malcheirosa para Mick. Como objeto de valor, só lhe restava o baralho de tarô. Nunca pensara em separar-se do mesmo. Mas, em Newgate, comida, roupa e proteção eram comprados. Sem nada para barganhar, ficaria à mercê de um bando de homens grosseiros e lascivos.
A autoridade tornou a bater o martelo e os circunstantes ficaram em silêncio. Gina endireitou as costas, segurou a mão de Mick e aproximou-se do juiz com a cabeça erguida. Perguntou a si mesma se a sorte não a abandonaria. Seu pai lhe dissera que os ciganos eram muito afortunados. Na primeira manhã em Newgate, ela começara a acreditar naquilo.
— San to Rom? Acorde, doce menina. Tacho rat?
Gina sentou-se, espantada. Quem estaria falando romano em Newgate?
Era o homem mais horrível que já vira. A pele escura e marcada pela varíola brilhava sob a luz da tocha. Um dos olhos era negro e amendoado como os dela. O outro, coberto por uma crosta amarela. Os cabelos rebeldes eram negros, assim como a barba longa. Uma argola de ouro verdadeiro balançava em cada orelha.
— Mandi Rom — Gina sussurrou. — Eu sou cigana.
O gigante riu, mostrando os dentes pontiagudos. Levantou-a e depois abaixou-se para sacudir Mick.
— Levante-se, pralo. Está na hora de comer. — Fez uma mesura diante de Gina. — Sou Ardaix, conhecido pelos gorgios como o Egípcio.
O homenzarrão piscou e levou-os até uma cela bem maior com palha fresca no catre, uma mesa de carvalho, cadeiras, velas de cera de abelhas e...
— Um frango assado! — Gina não conteve um grito. Ardaix riu e estendeu uma coxa.
— Coma, é chavo. Vejo que está bokhalo... faminto. — Notou o ar espantado de Mick. — Ele não é tacho raft.
— Não. Mick e eu somos irmãos apenas por parte de mãe. Ele tem oito anos e se chama Malachy 0'Donohue e eu sou Gina. Meus pais morreram.
Assim começara a amizade. Sob a proteção de Ardaix, nenhum homem ousara tocar um dedo no parente do Egípcio, com receio de perder a vida.
— Essa é uma questão de honra romano — Ardaix dissera na noite anterior ao julgamento. — Esses jakals não enxergam que a senhora é uma grande dama. Não se preocupe, eu a ajudarei.
Ardaix explicara o que ela deveria fazer para evitar a forca. Roubar uma bolsa com cinco libras era considerado um crime sem perdão.
Gina matou discretamente um piolho do braço e desejou que o entendimento de Ardaix com os carcereiros resultasse pelo menos num banho. Apesar de sentir-se muito suja, encarou o magistrado com orgulho. O homem de peruca e longas vestes negras a fitava do alto.
— Meirinho, qual o crime cometido por estes dois?
Um homenzinho, com cara de rato e vestido de fraque, precipitou-se para a frente.
— Roubo, excelência. Cinco libras surrupiadas em uma taverna. — O homúnculo fitou com desprezo a roupa rasgada e colorida de Gina. — Foi durante uma encenação de leitura de sorte cigana. Prova evidente de que os dois são desonestos e batedores de carteira.
O magistrado estreitou os olhos de lince por trás dos óculos de armação de ouro.
— O que a senhora tem a dizer diante dessa acusação?
— Houve um mal-entendido, milorde...
— Não diga asneiras, senhora. — O juiz leu a folha que estava à sua frente.
— Aqui diz que o menino foi apanhado com a carteira no bolso. Há também uma testemunha. Meirinho, onde está ela? — Ele perscrutou a platéia lotada.
Gina gelou.
— Parece que não está presente, excelência.
O magistrado voltou a sentar-se na poltrona de espaldar alto.
— Não importa. A senhora foi acusada de roubo. Todos sabem que os ciganos usam de inúmeras artimanhas para roubar. Por isso, os dois terão de retornar a Newgate até que sejam feitos os preparativos para a execução no patíbulo de Tyburn.
— Milorde, espere! — Gina gritou, com um sorriso ingênuo e o olhar estreitado. — A justiça inglesa não é a mais famosa do mundo?
— Sim, senhora — O juiz não escondeu a impaciência. — Por isso mesmo eu a estou sentenciando...
— Nosso parlamento sempre justo e nosso amado rei não protegem os cidadãos que têm o privilégio de servir a Igreja da Inglaterra?
— Ora — O juiz revirou os olhos —, a senhora pretende reivindicar o beneplácito do clero?
— Pretendo, meritíssimo. — A expressão de penitência não poderia ser mais convincente. — Pelas leis inglesas, os seguidores da Igreja não podem ser punidos pela forca. Meu irmão e eu queremos a chance de provar que fomos educados segundo os ritos da Igreja e por isso estamos sob sua proteção.
Gina sabia que nem os presentes nem o juiz esperavam um discurso coerente de uma cigana originária oriunda das entranhas do distrito mais perigoso de Londres.
— A senhora não fala como uma cigana nem como uma... Gina sorriu.
Felizmente sua mãe fora uma mulher culta e seu pai, um excelente ator.
— Milorde, repito que fui educada dentro das normas da igreja da Inglaterra. Minha mãe, que Deus a tenha, era filha do vigário de St. Boltoph, perto de York. — Ela omitiu o fato que o avô se tornara um ferrenho pregador metodista.
O juiz tirou os óculos, abaixou a cabeça, coçou a base do nariz e suspirou. Gina pensou ter notado um leve sorriso.
— Meirinho, traga a Bíblia. — Fitou Gina com olhar faiscante. — Estou farto de ouvir os larápios dizer que sabem ler e repetir alguns versículos decorados para dar a impressão de que foram instruídos segundo princípios religiosos. Asseguro-lhe que essas artimanhas não funcionam na minha corte. — Entregou-lhe o grande livro encadernado em couro. — Abra-o, ao acaso, e leia uma passagem.
Gina refletiu, abriu a Bíblia em uma das passagens dos Salmos e leu um trecho em voz baixa e clara. Depois levantou a cabeça.
— Devo continuar, milorde?
O magistrado apoiou-se em um dos cotovelos.
— Por favor.
Gina retomou a tarefa e a assembléia começou a agitar-se. Uns cutucavam outros, admirados. Esboçou um sorriso diante da piscadela de Mick. O juiz recorreu novamente ao martelo para acalmar os ânimos.
— É o suficiente — A autoridade sentenciou e virou a cabeça de lado, deslocando a peruca. — Diga-me, o menino também sabe ler?
— Sim, milorde.
Gina cochichou no ouvido de Mick e entregou-lhe o livro sagrado. O menino folheou algumas páginas e, enrubescido, leu um trecho devagar, mas sem cometer erros. A platéia aplaudiu, delirante, e pediu a absolvição dos irmãos.
— Silêncio! — O juiz tornou a fazer uso do martelo e esperou que a multidão se calasse. — Muito bem, a senhora provou que sabe ler. Isso não a absolverá do crime, mas lhe dará o direito à comutação da pena. A senhora terá o braço marcado com o estigma de ladra. Depois será levada para uma colônia americana e vendida em regime de contrato de servidão, ou seja, servirá como escrava durante sete anos.
A batida do martelo selou a sentença.
Exausta, Gina pendeu a cabeça para a frente, embalada pelo balanço do navio. Acordou instantes depois, assustada.
Como se permitia cochilar, com Mick tão doente? Encostou a palma na testa dele. A temperatura continuava alta. Encostou-se na parte interna do casco do Eliza Pratt e abraçou os joelhos. Oh, Senhor, aquilo não podia estar acontecendo. Seu dever era proteger Mick. Não deveria deixá-lo morrer. E mais de uma dezena de condenados sucumbira àquela febre terrível que assolara o navio. Depois dos gritos de delírio, a vítima morria em menos de uma semana.
Uma vez ao dia, o terceiro imediato abria a escotilha e jogava a escada de corda para dentro do porão pútrido do barco. Dois marinheiros o seguiam com balde e colherão. Serviam aos degredados, sopa de ervilha carunchada ou mingau rançoso. Era quando aproveitavam para levar embora os defuntos. Gina pensara que os mortos eram jogados ao mar, com um mínimo de serviço fúnebre.
— Não seja tola — Rory Quinn, um ladrão de cavalos irlandês, fez pouco da singeleza dela. — Eles os atiram aos tubarões, sem uma palavra de oração!
Gina mirou a luz tênue que se insinuava pela escotilha. Quando Mick ficara doente, os companheiros haviam-no levado ao canto mais escuro do porão, perto dos baldes usados como latrinas. O cheiro de fezes, urina, vômito que se misturava ao de alcatrão e de óleo de baleia era insuportável. Gina sentia o gosto de bílis toda vez que inalava o ar. Além de passar o tempo inteiro afastando hordas de moscas que se refestelavam nas fezes e depois vinham pousar nela e em Mick.
Nem mesmo ousava esconder a cabeça entre as mãos. Estavam sujas demais. Os marinheiros forneciam aos condenados três canecas de água fétida por dia. O suficiente para mantê-los vivos, mas não limpos. Esse era um dos motivos por que a febre corria solta pelo navio.
— Olá, Gina? Como vai passando Malachy? — Rory Quinn chegou com o andar gingado de quem passara muito tempo no navio. Um mês inteiro.
Gina tirou uma mecha de cabelos ensebados dos olhos, incapaz de sorrir para Rory, apesar de ele se mostrar tão bondoso. O novo amigo dissera que alguém com um nome tão bonito como Malachy merecia respeito. Mick dera boas risadas com Rory, até que a febre o derrubara.
Rory ofereceu a própria caneca de água para Gina.
— Beba. Quem cuidará de Mick se a senhora ficar doente?
— Se me permite, prefiro oferecê-la a Mick. — Gina molhou os lábios ressequidos do irmão.
Mick murmurou algo e virou a cabeça. O garoto apresentava olheiras escuras e uma das faces estava com uma ferida infeccionada. Cortesia de um rato.
— Preciso fazer alguma coisa. O senhor me ajudará quando os marinheiros trouxerem comida? Talvez se eu implorar...
— Jesus, Maria, José! Em que mundo de fantasia a senhora está vivendo? Esses sujeitos não se importam com nenhum de nós. Para eles, somos a escória. Não se incomodarão com nada, nem mesmo com um menino que está morrendo de febre. — Rory abaixou-me perto de Gina. — Só há uma coisa que a senhora pode fazer, como eu já lhe disse...
— Cale essa boca. Nunca farei isso! — Jamais aceitaria a sugestão de entregar-se aos marinheiros, em troca de remédios e comida.
— Não seja tão melindrosa. A sua tão prezada virgindade é a única maneira de salvar Malachy.
Gina olhou para o rosto cinzento do irmão, abriu a escotilha e apressou-se rumo aos marinheiros.
Continua...
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