Capitulo 1



 


 


 


 


Londres, 1763


 


Gina Weasley mordeu o lábio e analisou a própria imagem no pedaço de espelho pendurado na parede da cervejaria. Seis séculos de fumaça haviam enegrecido o reboco e a ma­deira que revestiam o ambiente miserável. O nevoeiro que pe­netrava pela janela aberta era responsável pelo aspecto fantas­magórico. A Taverna da Sereia, freqüentada por marinheiros locais e estrangeiros, era um local excelente para o exercício de suas fraudes. O estabelecimento ficava a poucos metros das águas lamacentas e malcheirosas do Tamisa onde flutuavam, ancorados, pequenos barcos, brigues e navios de guerra.


 


          Gina suspirou e fitou o próprio reflexo no espelho. Afligia-se com a própria situação. Mas quando pensava em fazer uma escolha entre a prostituição e a gatunagem, a segunda opção era sempre a preferida.


Ergueu o queixo, desafiadora. Não podia negar. Era uma ladra. Nos últimos dez anos, o fato melancólico e sombrio lhe acenara com as muralhas da prisão. Durante esse tempo, os rigores da sobrevivência tinham sido muito mais importantes de que seus sonhos de respeitabilidade. Não duvidava de que acabaria nas galés, mas tinha um motivo crucial para justificar seus atos. Sua determinação em não seguir os passos da mãe. Aquela vida fora um caminho destinado à ruína. Tão certo quanto o Tamisa desaguava no mar.


 


          De repente, como que saído das profundezas do inferno, o padrasto de Gina assomou às suas costas. Ela franziu as so­brancelhas ao ver a aparência asquerosa refletida na superfície ondulada do vidro espelhado. Nem chegou a verbalizar uma praga em idioma romano. Jocko 0'Donohue deu um passo à frente e agarrou-a pela cintura. Ele cheirava a urina cediça, dentes estragados e cerveja barata.


 


— Não há mais tempo para ataviar-se, princesa. Trate de ocupar logo essa cadeira e agradeça ao demônio por seu pai cigano ter lhe deixado como herança alguns truques e esse rosto bonito. Embora, sem a minha sábia orientação, jamais teria aproveitado algum desses atributos.


 


Jocko virou-se, segurou o xale escarlate, um presente que Mick esmolara de uma alcoviteira, e com ele cobriu a mesa velha que ficava no centro do quarto.


 


          Gina amarrou um lenço desbotado nos cabelos ruivos e ondulados. Não adiantaria argumentar. Discordar de Jocko lhe valeria alguns tapas dados com a mão calosa e imunda. Ou pior. A ameaça de forçá-la a ir para as ruas como uma... Oh, Deus! Meretriz! Gina estremeceu, apesar do calor que fazia no recinto de teto baixo, naquele anoitecer do começo de junho. Jocko, alma amaldiçoada que haveria de arder nas chamas do inferno, forçara a mãe de Gina a ganhar dinheiro nas ruas. O destino dela fora uma morte precoce devido a maus tratos e à fome. Gina não deixaria que o ogro fizesse o mesmo com ela ou com Mick, seu irmão.


 


          Jocko saiu do quarto e arrastou-se escada abaixo. Ouvia-se o lamento de uma rabeca e o som desafinado de uma canção lasciva. Os primeiros fregueses da noite já haviam chegado. Um casal de amantes chegados há pouco ao país e ansiosos por conhecer as emoções dos quarteirões populares de Londres. Jocko lhe dissera que o sujeito estava bêbado e a moça, ansiosa para conhecer a própria sorte vaticinada pela famosa madame Zora. A cartomante era mais conhecida como Gina Weasley entre os fanfarrões, os vadios, os ladrões e as prostitutas dos cortiços londrinos.


 


          Mick saiu detrás da cortina comida pelas traças que cobria a parede dos fundos. Era o seu esconderijo. Ele ergueu as so­brancelhas e brindou-a com um sorriso que mostrava uma falha nos dentes.


 


— É só mais uma vez, Gina. E nós precisamos de dinheiro, não é?


 


— Claro que sim. — Gina sentou-se e segurou as cartas de taro de sua avó.


Fora o último presente que recebera de seu pai, Arthur. Gina embaralhou as cartas e fechou os olhos. Se o pai estivesse vivo, ela nunca teria descido tão baixo. E se não fosse pela vilania de Jocko, não estaria ali naquela noite.


 


          Naqueles dez anos após a morte do pai, Gina poupara todos os vinténs. Moedas preciosas ganhas dançando nas ruas, ser­vindo cerveja nas tabernas e prevendo o futuro para os incautos possuidores de mais dinheiro do que juízo. Gastara somente em comida extra para o irmão raquítico. A pequena sacola de couro crescera mês a mês, ano após ano.


 


          Gina abriu os olhos, espremeu as cartas entre os dedos e olhou ao redor. Jurara tirar Mick daquele lugar infecto. Afas­tá-lo das doenças, dos ratos, das ruas imundas. Para longe dos criminosos e dos batedores de carteiras ansiosos para recrutar para suas fileiras pérfidas um rapazinho esperto como Mick. Acima de tudo, jurara escapar das garras de Jocko, daquela espelunca vizinha da estrebaria, levando junto o irmão.


 


          Gina suspirou. Na semana passada, ao voltar para casa, en­contrara Jocko mais bêbado de que o costume. E debaixo da tábua solta sob o catre, a preciosa bolsa... vazia.


 


          Jocko negara tudo e dera-lhe uma surra pela ousadia de es­conder dinheiro dele. A bebedeira de conhaque francês que se prolongou por vários dias era a prova de que o dinheiro de Gina se evaporara junto com seus sonhos.


 


— Não temos escolha, Gina — Mick falou, com sua voz estridente. — Ou vou juntar-me à gangue dos Black Jack ou lesamos os tolos ou roubamos. — Tirou as cartas das mãos de Gina e espalhou-as na mesa. — Depressa, eles estão chegando.


 


           Mick apagou as velas e deixou acesa apenas a lamparina de óleo de baleia. Escondeu-se atrás da cortina. A chama lançava sombras misteriosas sobra a minúscula bola de cristal, e Gina sorriu.


 


          Um jovem alto entrou. Trajava um gibão de couro e calções rústicos. Piscou, desorientado pela fantasmagoria. A moça vi­nha atrás, de olhar arregalado no rosto sardento.


         


           Gina sacudiu os cabelos longos que lhe chegavam à cintura e virou-se para a luz dar brilho aos brincos de ouro falso que a todos enganavam.


 


— Bem-vindos, sejam — Gina cumprimentou-os com voz maviosa. — Por favor, fechem a porta.


 


           Gina estreitou os olhos negros e sorriu enigmaticamente. Era um truque para intimidar. Apontou duas cadeiras próximas ao esconderijo de Mick.


 


— Sentem-se e digam-me. Por que vieram procurar madame Zora?


 


           O casal entreolhou-se, nervoso.


 


— Uma questão os preocupa, não é mesmo? — Gina acen­tuou o sotaque romano e o olhar meditativo, pegou a bola de cristal e rodou-a entre os dedos. Voltou-se para a consulente. — E bastante grave, suponho. Seu belo rosto é expressivo, senhora, mas começaremos com sua palma.


 


           A moça corou e estendeu a mão. Gina tomou-a, analisou as linhas e arregalou os olhos.


 


— Ah, senhora, vejo muita grandeza em seu futuro. — Gina inclinou-se para a frente e continuou, com voz rouca. — Estou vendo muita sorte em sua palma... muita sorte. A senhora se lembrará por toda sua vida do que madame Zora lhe disser esta noite. — Soltou a mão da outra e recostou-se na cadeira.


 


— O que madame está vendo?


 


— Poderei dizer-lhe mais por uma coroa.


 


— Pague a ela, Ned. — A moça cutucou o namorado.


 


          O rapaz, a contragosto, enfiou a mão no bolso do colete e atirou na mesa a moeda de prata que valia cinco xelins. Gina guardou-a rapidamente e, de viés, mirou a cortina. A obscuridade era favorável às habilidades de Mick. Os ingênuos não perceberiam o logro.


 


          Gina alisou a saia listrada de amarelo e vermelho e ergueu as cartas. Reconheceu na estranha a pronúncia característica de Yorkshire, local de origem de sua mãe.


 


— Os senhores vieram de longe. Do norte. — Percebeu os sorrisos, os olhares atônitos  e o abdômen dilatado da jovem sob o capote. Embaralhou as cartas com a prática adquirida ao longo dos anos. — O trajeto é longo e os senhores têm muita coisa em jogo. Um porvir frutífero — acentuou a última palavra.


 


          A cortina ondulou levemente, e a ponta da bota enlameada de Mick veio para a frente. Estava na hora de avançar na en­cenação. Gina estendeu o baralho na direção da rapariga.


 


— As cartas revelam tudo, senhora. Corte, por favor.


 


            A cliente obedeceu. Gina passou a bola de cristal por cima da chama azul da lamparina e começou a cantarolar uma me­lodia cigana, com estudada expressão corporal. Ned quedou-se boquiaberto. Nem percebeu a mão miúda de Mick que se in­sinuava em seu bolso.


 


— Ah! — Gina lamentou-se.


 


            Os gestos encenados continuaram até Mick voltar para trás da cortina e cessar a ondulação do tecido roto. A operação fora completada com sucesso. Gina sacudiu o baralho sobre a ca­beça. Ela odiava roubar e enganar pessoas. Mas não havia al­ternativa. Era preciso tirar Mick de perto de Jocko e sair de Londres. Não poderia falhar. Mick confiava nela.


 


             Gina pôs três cartas sobre a mesa. A Roda da Sorte, o Ca­valeiro das Espadas e o Sol.


 


— Uma grande mudança a espera, senhora. E um grande sofrimento. — Gina fitou o casal com olhar penetrante e depois piscou para a jovem. — Um homem foi o causador disso... como sempre. Mas o desfecho será promissor!


 


— Que tipo de desfecho? — a moça perguntou.


 


— Impossível dizer. — Gina recolheu o baralho com pres­teza. — As cartas guardam seus segredos. — Os tolos deviam ser despachados com urgência.


 


— Mas eu quero saber! — A moça apertou a barriga. — Ned, pague mais...


 


— Por favor, senhora! Não é uma questão de dinheiro... — Gina sentiu o sangue congelar nas veias.


 


Ned enfiou a mão na algibeira... vazia. Ele pareceu confuso e franziu o cenho. Gina ficou em pé.


 


— Por favor, desculpem-me...


 


— Espere aí! — Ned ficou em pé, furioso. — Minha carteira desapareceu. A senhora roubou-me!


 


— Ladra! — a moça gritou com voz esganiçada. — Ladra! Ajudem-nos! Fomos roubados!


 


        Gina disparou em direção da porta. Queria afastar o casal de Mick. Tarde demais. O estalajadeiro entrou.


 


— O que está acontecendo aqui dentro? Ned sacudiu Gina pelo braço.


 


— Esta cigana roubou meu dinheiro!


 


— O senhor está enganado! Por acaso não olhava para mi­nhas mãos o tempo inteiro?


 


Um som de tecido rasgado interrompeu o protesto. Mick saiu de trás da cortina e expôs-se ao perigo que Gina sempre tentara afastar dele.


 


— Pare com isso! — Mick deu um pontapé na canela de Ned. — Não ouse tocar em minha irmã!


 


O taberneiro segurou Mick pelo braço fino e empurrou-o rumo à escada.


 


— Não quero nenhum truque de ciganos ladrões em minha hospedaria. Terá de enfrentar Newgate, meu rapaz.


 


Os fregueses da taverna acorreram, recendendo fumaça e gim barato, ansiosos por diversão.


 


— Ladrões! Ladrões! — gritavam. — A árvore de Tyburn para eles!


 


— Eles trabalham juntos! — A voz de Jocko era inconfun­dível. — Procurem no bolso do fedelho!


 


Gina desanimou. Não adiantava lutar.


 




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