Fraqueza



Demétrius se sentou no topo da colina, de onde podia ver o castelo e parte de Hogsmeade.


Três dias. O jovem pensou, pesaroso, sentindo a brisa fria acariciar seu rosto. Tão perto... E tão longe. Logo nos reuniremos, meu irmão.


Toda manhã, desde que chegara ali, ele se sentava no mesmo lugar e olhava o castelo, seu peito gritando ante a proximidade com o gêmeo.


Entenda, existe algo que conecta os gêmeos draconianos, e, não importa o que seja, os tornam necessitados da presença um do outro. Estudiosos draconianos afirmam que as almas de gêmeos dragões são ligadas por um fio invisível que se estica quando estão longe um do outro. As conseqüências da distância entre irmãos gêmeos é a perda comum de controle sobre magias complexas ou a suposta falta de magia em certos momentos, embora não seja completamente comprovado.


Mas Demétrius e Peter eram diferentes. Quando Peter completou a maioridade para um dragão – entre 100 e 1500 anos, caso não percam as contas – ele tomou uma decisão séria. Ele decidiu que Demétrius apenas o atrasava e por muitas vezes reclamava da proximidade que o irmão precisava ter para que ele pudesse fazer uma magia complexa sem se concentrar um milhão de vezes mais do que o necessário. Na noite do seu aniversário, enquanto os convidados congratulavam os irmãos, Peter ergueu-se e proferiu as seguintes palavras.


 


...


 


Uma batalha se aproxima. Estamos às vésperas de uma batalha que será escrita em todos os livros, sejam os escritores bruxos ou dragões, embora, a história nos diga que apenas em livros draconianos as palavras são dignas de serem escritas. Taças se ergueram em sua homenagem e altos gritos ecoaram. Mas é necessário que saibamos separar, através da sabedoria, os capazes dos incapazes. Ele descia lentamente as escadarias do palácio, suas asas negras abertas em sinal de grandiosidade e superioridade. As chamas das velas refletiam na armadura de General. Passo noites acordado, escrevendo, estudando, tentando entender, como nossa raça ainda pode ostentar defeitos tão graves... covardes, fracos, amantes de humanos. Aqui, ele parou e caçou os olhos azuis de sua irmã, mas ela não viera à festa e por um instante isso o deixou triste. Não por muito tempo, naturalmente. Todos eles são elos fracos na nossa corrente, os elos que, se quebrarem, abrirão caminho para que aqueles malditos bruxos se aproximem de nossas fraquezas. Isso é algo intolerável. Então cortemos, cortemos de vez essas cordas que nos ligam aos fracos, joguemos fora nossas fraquezas, se necessário, destruamo-nas!


Ele parou, nesse ponto, Demétrius levantou-se, sua mão no peito, uma dor incessante como o penetrar de uma espada.


O que você pretende, Peter? Ele gritou, ajoelhando-se, a dor se alastrando, queimando seu corpo.


Estou cortando fora minhas fraquezas. Peter ergueu a mão e uma fina corrente apareceu, completamente retesada, a ligação entre ele e seu irmão, unindo ambos os corações num só. Eu não me arrependo.


A espada desceu com uma velocidade inimaginável, enquanto o grito de Demétrius escapava por entre seus dentes, seu corpo caindo desfalecido nos degraus de mármore, escorregando por toda a escadaria, as asas destruindo colunas que pareciam se impor no caminho.


A corrente se quebrou, sumindo como se nunca tivesse existido, como se houvesse sido nada mais que um pequeno empecilho no caminho do rapaz.


Peter nunca iria admitir, mas a dor em seu peito ardia tão forte que por pouco ele não foi obrigado a cair de joelhos também. Mas não, ele seria forte, muito forte, mais forte que o fraco do seu irmão fora. Não importava quanta dor ele tivesse que causar, não importava quem fosse – Tivesse que causar a morte do irmão, causaria sem nenhuma piedade. – Ele simplesmente não deixaria a glória escapar por entre seus dedos.


Ele virou-se, olhando o corpo caído no chão, um corpo igual ao seu, um corpo com o mesmo rosto, mas com uma alma fraca, suja e inocente. Uma alma que ele não suportaria viver ao lado. Uma alma tão boa que lhe dava nojo.


Bondade nunca venceu uma guerra.


VOCÊ é o elo fraco da corrente. Katherine gritou, sua voz vindo do alto da escadaria, seu vestido branco caindo por sobre os degraus enquanto ela delicadamente descia até o irmão caído. Quantos inocentes você pretende matar nessa guerra inútil Peter? 1000, 2000...? Quer bater seu recorde, é isso?


Irmãzinha, pensei que não viria prestigiar minha festa, ela está tão divertida, você simplesmente perdeu o melhor dela! O moreno disse, cínico. Mas acho que agora iremos começar o ato dois, certo?


Peter, eu já tenho um pergaminho inteiro cheio de citações muito interessantes para dizer, mas a única que me vem na cabeça é: Vá à merda.


Demétrius apoiou-se na espada que desembainhara da cintura, segurando no cabo para se erguer, encontrando apoio nos ombros da irmã mais nova.


Vocabulário baixo para uma princesa não acha? Uma de suas sobrancelhas se ergueu, enquanto o sorriso se alargava.


Ora, você já soube responder melhor, o que aconteceu, a guerra acabou com seus neurônios? Acho que eu deveria te emprestar uns livros de como deixar de ser um idiota.


Guarde-os para si mesma, você fará uso melhor deles.


Sim, jogando na sua maldita cabeça!


CALEM-SE! Demétrius gritou, sua voz ribombando por toda a estrutura de mármore. Parecem dois malditos bebês! Não crescem? O Peter se julga um elo forte da corrente, mas como pode ser forte se nem entre os seus consegue se manter em paz? É assim que pretende vencer uma guerra? Com arrogância e petulância? Apenas desgraça espera aqueles que subestimam seus adversários.


Ora seu... A espada subia acima da cabeça de Peter, pronta para uma investida letal.


Demétrius ergueu a mão, jogando Peter contra uma parede, surpreendentemente era mais fácil usar magias agora que não possuía a ligação que o enfraquecia quando Peter sugava toda a energia vital.


EU DISSE CALE-SE! Katherine arregalou os olhos. De onde vinha toda aquela força? Seu irmão nunca fora capaz de enfrentar o gêmeo, nem por um instante e agora... Você diz que sou um elo fraco na corrente, mas não admite é que o elo que está fraco não sou eu, mas a ligação entre nós te tornava fraco, te tornava incapaz. Eu controlava a magia que você usava, tentava não deixar você fazer gastos desnecessários, para que pudesse continuar sua luta. Você não é invencível Peter, pensa que ninguém pode te parar, mas o que eu estava fazendo era te impedindo de se sentir um onipotente. Eu estava te protegendo.


Não preciso de proteção...! Peter se debatia, havia muito mais magia do que ele pensava prendendo-o contra a parede.


Será? E quando você precisar de proteção contra você mesmo, quando você for seu único inimigo, quando você se confrontar de frente para um espelho e perceber que não consegue vencer? Quem estará lá para te proteger?Deixe-me responder: Ninguém. Você morrerá só, Peter. Nunca haverá ninguém lá para você, pois tudo que você toca, morre e tudo que você põe no coração, apodrece. Como você se sente, Peter, sabendo que a única forma de encontrar sua glória é não ter ninguém para reparti-la?


Os passos do rapaz fizeram eco tal o silêncio e a tensão na sala, enquanto ele caminhava até a varanda e alçava vôo, sumindo por trás de uma nuvem escura que trovejou poucos segundos depois.


Não precisava mais estar perto do irmão e agora ele conseguia ver como isso era bom.


 


...


 


- Sonhando acordado? – Uma voz nova sussurrou ao lado do ouvido do rapaz sentado na relva macia, ativando um instinto que há muito parecia esquecido.


A mão correu rapidamente para o cabo da espada, desembainhando-a e atacando certeiramente a cabeça do agressor, teria sido uma vida a menos na Terra, não fosse a velocidade que o desconhecido retirou sua faca de caça do coldre e defendeu a estocada.


O som de metal contra metal sibilou, enquanto os dois travavam uma pequena batalha de reconhecimento, até que os olhos verdes se encontraram de verdade com os olhos negros e delinearam a cicatriz que atravessava seu rosto.


- Blake. – Demétrius falou, deixando a espada cair, fincando-se no chão. – Já faz algum tempo desde que te vi pela última vez.


O outro rapaz suspirou e massageou o braço. Se o entrave tivesse durado por um pouco mais de tempo ele não teria ficado muito bem, não com a lâmina tão perigosamente próxima ao seu pescoço.


- É já faz uns sete ou oito anos. – Ele falou, pondo os braços por trás da cabeça, desajeitando os cabelos curtos e pretos.


Demétrius sorriu, Blake era um dos poucos caçadores que apreciava a presença de dragões e provavelmente era o único com quem os dragões se davam bem. Mas não porque ele fosse mais simpático que os outros, isso também, mas havia o agravante que o rapaz era meio sangue.


Um meio dragão.


E, muito embora meio sangues fossem mal vistos na sociedade draconiana, ele era um dos poucos que se safava a esse preconceito.


- Meu irmão está lá, sabia? – Demétrius perguntou, apontando com o queixo para Hogwarts, enquanto voltava a se sentar na relva.


Blake deu de ombros, deitando-se ao lado do puro sangue.


- Eu soube.


Demétrius riu um riso contido e irônico.


- Você foi chamado para matá-lo, certo?


- Eu e todo o resto dos caçadores. – Ele deu de ombros novamente, como se aquilo não importasse. – Mas eu não aceitei, o conselho nunca paga o que promete.


- Ah, claro, eu esqueci! Você não trabalha para o Conselho. Você é um mercenário. – Um sorriso maldoso se estendeu pelo rosto do rapaz. – Você trabalha para quem pagar melhor.


Blake fez uma careta e mudou de posição.


- Mercenário é uma palavra muito forte, que tal você dizer...


- ...vendido? Gigolô? Qualquer um encaixa. Eu soube que você está trabalhando para um bruxo que quer meu irmão morto. Você se orgulha?


- Ei, é um trabalho honesto. Nunca em meus 250 e alguma coisa anos eu matei um dragão que não merecesse morrer.


Demétrius olhou o rosto do rapaz, não fosse a cicatriz que cortava seu rosto verticalmente do lado direito, ele não aparentaria ser muito mais velho que um garoto daqueles que estudava em Hogwarts.


- Tudo é uma questão de ponto de vista.


- Viu, eu disse.


Demétrius suspirou, era inútil discutir, Blake era uma criança.


- Sejamos honestos, se existe alguém que merece morrer naquele castelo, é o seu irmão. Eu não queria ter de matá-lo, eu preferia vê-lo morrer bem lentamente e queria poder apreciar cada gota que saísse do seu corpo como se fossem as gotas do Éter dos deuses. Ele precisa pagar pelo que fez com meu rosto. Mas, independente disso, eu posso sobreviver com ele, melhor, eu posso sobreviver junto dele. Especialmente se a Kate estiver por perto. – Seu sorriso se alargou. – Mas ele é minha nova missão, ou seja, ele morre, eu vivo e todos saímos felizes.


- Blake?


- Sim?


- Você não está fazendo isso por dinheiro, não é?


Blake fechou o rosto, assumindo uma expressão soturna e fria, que o envelhecia em muito.


- Demy, lá dentro existe a arma mais poderosa que um dragão pode querer, uma forma de exterminar tudo que pensa e anda sobre essa Terra. Se seu irmão adquirir tal poder... Eu não posso deixar. Não, eu estou fazendo isso porque é certo, por que é necessário, porque eu sei que se eu não fizer, ninguém mais chegara perto o bastante do coração dele para colocar uma espada lá.


Demétrius assentiu. Se havia alguém que poderia matar Peter, seria Blake.


Não... Nem ele seria capaz disso. Peter finalmente havia se tornado indestrutível.


- O que você fará se colocar as mãos no Maleficarum?


O meio sangue pensou um pouco e então disse:


- Nos termos de contrato não há nada sobre o Livro. Eu vou destruí-lo. É poder demais, Demy. Ninguém pode ter algo como aquilo nas mãos.


Não, não pode, especialmente o Peter. O Dragão pensou.


- Então... Nossos caminhos se separam aqui, certo?


- Creio que sim. Temos escolhas a fazer. Se eu te conheço, a última coisa que tentará fazer é matar seu irmão e esse é exatamente meu motivo de estar aqui. O Maleficarum deve ser destruído, mas você precisa levá-lo para o seu pai. Nossos caminhos não podiam ser mais diferentes.


Blake sorriu, então, seu olhar se dirigindo para o castelo, enquanto imagens de um passado distante lhe consumiam.


- O destino age de forma estranha. – falou, por fim, sua voz baixa. - Estamos todos aqui novamente, não é? Foi bem aqui, não foi? A última batalha, a primeira vez que nós vimos Peter cair, a primeira vez que ele ganhou uma cicatriz... Para nunca mais esquecer. O destino nos uniu no lugar que marcou a vida de todos os envolvidos, para uma última batalha.


Ele então começou sua caminhada, descendo para o castelo.


- Nos encontraremos então, meu meio irmão, mais tarde, quando precisarmos segurar as espadas em campo. Só espero que, quando o momento chegue, estejamos lado a lado, e no lado certo.


Demétrius deu de ombros, enquanto a figura solitária sumia ao longe, esmaecendo em sua visão.


- Tudo uma questão de ponto de vista, meio irmão.


 


...


 


Peter tremeu quando seus pés tocaram no chão úmido.


O frio fazia sua respiração se tornar visível, numa nuvem escassa frente a seu olho.


Seus olhos, agora acostumados à escuridão, delineavam formas onduladas no chão, como uma enorme quantidade de cobras imóveis, umas por sobre a outra. Mas o cheiro de planta infernizava seu nariz, um cheiro que ele reconhecera assim que percebeu as raízes subindo pelas paredes.


- Visgo. – Ele sussurrou para si mesmo, momentos antes de um baque surdo chamar sua atenção. – Você poderia ter caído com mais delicadeza. – Ele virou-se para a garota que massageava o lado do corpo com o qual caíra. – Isso não foi um convite para que você começasse a falar. – Ele falou rapidamente, ao ver a boca da garota abrir e se fechar, com um resmungo. – Visgo do Diabo é famoso por não suportar o calor, então, se você quiser sobreviver e não tiver uma forma de fazer fogo, seria melhor se aproximar de mim.


A garota engatinhou por um instante, antes de conseguir se levantar, a mão procurando no escuro onde o rapaz estava, mas parecia que toda vez que sua mão se aproximava o garoto não estava mais lá.


- Pare de andar. – Ela falou, irritada.


Então, aconteceu uma coisa que ela não esperava e algo que ele não estava preparado para que acontecesse.


A mão da garota encontrou a barra da camisa do rapaz, porém, ao tentar dar o próximo passo, o corpo dela desequilibrou por causa de uma raiz mal alinhada e caiu para frente, exatamente onde Peter se encontrava.


Peter, movido por instinto, virou-se rapidamente e agarrou o corpo da garota, mas, o que ele julgava ser uma coisa fácil de fazer, a surpresa tornou difícil, fazendo-o se desequilibrar e cair no chão, amortecido pela planta que se alastrava por baixo de seus pés.


A garota teve um pouco mais de sorte, sendo amortecida pelo corpo do rapaz, que agora, se encontrava a centímetros dela.


- Mas o que diabos...? – Peter resmungou, irritado, suas mãos segurando os ombros da garota, prontas para empurrá-la.


- De... Desculpe-me. – Ela disse, desconcertada.


Peter estancou. Ele não soube explicar porque, mas ele estancou. Simplesmente não conseguiu fazer qualquer movimento, suas mãos seguravam a garota de uma maneira, não rude, mas também não muito delicada. Ele sentia a respiração de Monique tocar sua pele e aquilo não o irritava, ele estava ciente da proximidade de seus rostos e ele estava ciente de que seu coração estava louco, batendo como se não houvesse amanhã, como se a única coisa que importasse estivesse à sua frente.


Por um instante ele esqueceu o Maleficarum, ele esqueceu quem era, ele esqueceu onde estava. Seus dedos afrouxaram nos ombros sua mão subiu pelo ombro da garota, segurando seu pescoço.


- Peter? – Monique sussurrou.


- O quê?! – O rapaz falou, saindo do transe a que a garota parecia induzir-lo. – Droga...! – Ele empurrou a garota de lado, fazendo-a cair no meio das raízes.


O que ele estava pensando?


Eu estou ficando insano, o Maleficarum está roubando minha sanidade. Ele gritou em sua cabeça. Essa bruxa maldita... Como eu... Ah! Maldição!


Ele levantou-se de um salto. Nada havia acontecido. Se ele conseguira enganar a si mesmo de uma cicatriz do passado, ele conseguiria enganar-se com essa também.


Fraco! Ele gritou para si mesmo, novamente. Controle-se. Você é mais forte que suas lembranças. Elas não irão lhe afetar enquanto você não quiser, lembra-se? Jogue de lado suas fraquezas. Esse é apenas um teste, e você está falhando.


Peter ouviu o som de um farfalhar movimentado às suas costas, retirando-lhe de seus pensamentos.


- O QUÊ?! – Ele gritou, irritado, virando-se para se deparar com uma imagem que seria cômica, não fosse trágica. Não, Peter não achou nem um pouco trágica, na verdade.


Monique ainda estava caída no chão, seus braços presos às vinhas do Visgo que cresciam e se alastravam pelo corpo da garota, puxando-a para baixo. Uma vinha grossa estava se enrolando em seu pescoço agora, tornando a respiração um trabalho árduo.


- Só pode ser brincadeira. – Ele falou, suspirando. – É absurdo demais, para se acreditar.


Com um pouco de esforço, ele bloqueou os pensamentos anteriores, tendo certeza de que não voltariam a lhe atormentar tão cedo, e, quando voltassem, ele saberia exatamente o que fazer com eles.


Lentamente ele se aproximou da garota, que aparecia cada vez menos por baixo das raízes escuras.


- Como você se sente? – Ele perguntou, displicente, sentando-se ao lado dela. – É ruim saber que você vai morrer?


A garota não esboçou qualquer expressão, ou, se esboçou, o rapaz não fez qualquer menção a se importar, apenas prestando atenção em seus próprios pensamentos e em como eles pareciam sempre querer voltar para a situação constrangedora que passara.


- Bom, de qualquer maneira, não tenho tempo para gastar com você, e, como eu deixei claro, não tenho a menor intenção de ajudá-la. Adeus. – Ele levantou-se, dirigindo-se para um corredor de pedra em arco do outro lado da sala, parando, depois de uns três ou quatro passos.


O que ele estava fazendo? Ele era melhor que isso. Não, Peter jamais deixara uma vida se esvair por outro meio que não fossem suas mãos, a não ser que fosse de seu extremo interesse e, venhamos e convenhamos, a garota era extremamente irritante, mas não merecia... Ou talvez...


- AHHHHH!!! Dane-se a minha consciência! – Ele gritou, desesperado, seus olhos se tornando um pouco mais vermelhos que o normal. – Eu estou me tornando tudo aquilo que eu jurei destruir!


Ele se virou. A garota ainda estava presa, só, indefesa, uma presa perfeita.


Era hora de dar um jeito nisso, era hora de cortar suas fraquezas, de passar de vez no teste.


- Talvez isso doa um pouco. – Ele disse, erguendo a mão, chamas verdes brotando entre seus dedos. – E fique quieta.


Com um flamejar estonteante as chamas se propagaram, consumindo não só as vinhas que se alastravam pelo corpo da garota, mas as que cresciam pelas paredes e as que se enroscavam no teto também.


Em suma, tudo ao seu redor queimava, banhado em chamas verdes, consumido pela raiva que crescia no peito do rapaz.


- Está acabado. – Ele disse, mais para si mesmo que para qualquer outra coisa.


As cinzas e o cheiro de planta queimada se misturam a algo que ele não conseguia distinguir, algo que não havia como definir. O Visgo estava morto, todas as raízes que restavam, mesmo que houvessem sobrevivido, haveriam de buscar um novo lugar para viver, não mais aquela caverna de formas grotescas, como agora ele bem poderia perceber.


A chuva de cinzas ainda duraria alguns segundos, segundos onde ele não poderia distinguir nada que estivesse muito além de seu nariz. Mas naquele momento, quando ele tentou olhar para frente, não precisava ver, podia ouvir que falhara no teste que ele mesmo se impusera.


O coração da garota ainda batia. E batia apressado, assustado.


Ele tentara, de fato tentara, mas algo nele não deixou que fosse em frente. Algo preso em seu inconsciente, algo que ele pensava haver subjugado muitos anos antes, algo que, agora que ele sabia que estava vivo, atrapalharia tudo. Suas lembranças ainda viviam e com elas, vinha o seu passado.


- Eu falhei. – Ele constatou, dando as costas, aproximando-se do arco que o levaria ao próximo aposento. – Siga-me, se quiser. Infelizmente, é o único lugar em que uma parcela de mim, a parcela que deveria estar morta, ainda lhe deve proteção.


Pondo a mão na maçaneta, ele girou-a e adentrou o próximo quarto.


Monique levantou-se lentamente, constatando que estava inteira, sem sofrer um arranhão ou queimadura, embora seu cabelo fosse ficar uma desgraça depois da chuva de cinzas. De qualquer maneira, o importante é que a garota não ligava para o cabelo, ou a irritação nos olhos, ou como aquele lugar úmido era deprimente, pois ela sorria.


Não que houvesse boas razões, mas algo naquela cena, nas palavras do rapaz e no fato de que, contra todas as probabilidades, ela ainda estava viva, lhe divertiam.


Correndo com passinhos rápidos, ela atravessou a porta que o rapaz deixara aberta.


 


...


 


- Pássaros? – A garota falou, confusa, enquanto limpava o cabelo do excesso de cinzas que pareciam formar um chapéu negro.


Mais uma vez – e essa parecia à décima – Peter suspirou.


- Não, são chaves e eu não lembro ter autorizado o blábláblá.


Certo, aquilo estava se tornando meio irritante, mas depois da demonstração de amabilidade que o rapaz dera momentos antes, ela estava feliz demais para se deixar abater, na verdade, o esforço dele para não completar a tarefa naquele momento era muito, muito divertido.


Os pontinhos brilhantes e farfalhantes que voavam acima de suas cabeças se agitaram mais que o normal, fazendo rasantes e movimentos estranhos ao perceber a energia que emanava da mão que o rapaz erguia.


- Seres estúpidos. Dou-lhes um desconto por não terem cérebro. Mas ele acaba aí. – Uma rajada de vento forte assustou Monique, por um instante, até ela se dar conta que a fonte estava três passos à sua frente.


O vento agitou ainda mais os pássaros-chave que agora caiam, batendo contra as paredes. Diante da força do vento eles nada podiam.


- Encontrei você. – Peter falou direcionando a rajada de vendo para uma chave velha e rústica que fugia apressada. – Não tão rápido.


O vento se tornou insuportável, fazendo todas as outras chaves, embora mais novas, caírem primeiro.


A chave que Peter queria só desistiu quando suas asas arrebentaram ante a tentativa de fuga.


Ela caiu com um baque surdo, frente aos pés do rapaz.


- Fácil. – Ele pegou a chave, dirigindo-se à porta, pisoteando as outras chaves, por vezes destruindo algumas que ainda tentavam alçar vôo.


Monique seguiu-o, com um olhar reprovador no rosto, enquanto ele atravessava a porta, indo parar em mais um cômodo.


Um tabuleiro de Xadrez gigante se erguia à sua frente, algumas peças já haviam sido movidas e algumas jaziam destruídas no chão, como se o jogo já houvesse sido jogado antes.


- Não há nada para ver aqui. – O rapaz disse, atravessando a enorme sala sem esperar, como se as estátuas enormes fossem algo indigno de sua atenção e não os incríveis trabalhos de escultura que eram.


 Trabalho de amadores. Ele pensou, menosprezando os bruxos, mais uma vez.


A próxima sala era vazia, aparentemente.


Aparentemente apenas.


Havia uma mesa no centro da sala, com alguns frascos dos mais variados tamanhos e cores. Um pergaminho estava quase caindo da mesa quando Peter pegou-o e passou os olhos por ele, sentindo a velhice do objeto passar por entre seus dedos.


- Um enigma. – Ele sorriu. – Ao menos uma alma neste lugar imundo sabe que um verdadeiro desafio não se baseia nas capacidades corporais e sim na mente. Não há força que consiga quebrar a corrente da inteligência.


Ele passou mais uma vez os olhos pelo pergaminho, tendo a certeza de que entendera cada palavra minuciosamente bem.


Mais uma vez, suspirou. Já estava ficando cansado, parecia que sempre havia um motivo para um suspiro de desdém a cada passo.


- Nem tão inteligente. – Sussurrou.


Apoiando uma mão embaixo da pequena mesa, ele deu um empurrão, jogando-a contra a parede à sua direita, destruindo-a como se fosse um brinquedo de uma criança.


Os fracos se desfizeram contra os tijolos úmidos da saleta, jorrando seus conteúdos ao chão, tornando o cheiro do ar insuportável por um instante.


- Como se eu precisasse de alguma poção para atravessar o fogo! – Ele riu, divertido. – O fogo não ousaria me machucar.


Andando em direção à próxima porta que estava encoberta com chamas negras, o rapaz chamou a garota, que parecia indecisa se seria a melhor idéia.


- Vamos, logo! – Ele passou do lado da garota, segurando seu braço com um pouco de rudeza. – Você precisa estar em contato comigo, o fogo não lhe fará mal enquanto eu não quiser. – Ele parou a dois passos da porta e virou o rosto para ela. – Não me faça querer.


Com um puxão um pouco mais forte, eles atravessaram a porta, o fogo sendo apenas uma sensação um pouco incômoda nas roupas da garota.


Não havia mais salas então, não havia mais para onde correr, eles haviam chegado ao final das armadilhas e obstáculos, havia acabado. O que Peter queria deveria estar ali em algum lugar.


Mas não estava, em compensação, havia outra coisa no lugar, algo que Peter jamais imaginou ver novamente.


 


...


 


Um espelho.


Apenas um espelho estava intocado no centro da sala redonda. E por mais grandioso e altivo que parecesse, permanecia sendo apenas um espelho.


Mas não era assim que Peter pensava.


- Ojesed. – Ele sibilou, sua voz apenas um sussurro fino. – Mas... Há dois anos... Esse espelho deveria ter sido destruído.


Por um instante, antes de Peter virar o rosto rapidamente, sua imagem refletida tremulou.


Circulando a sala, Peter admirou o espelho de todos os ângulos, tendo o cuidado de não olhar seu reflexo.


Monique estava à porta, olhando o rapaz e seu rosto que transitava entre a admiração e a suspeita.


- Homens morreram e mataram por esse espelho. – Ele passou a mão na lateral, sentindo a moldura talhada à mão escorregar pelos seus dedos. – Suas imagens refletidas mostravam não apenas seu próprio reflexo, mas os desejos mais profundos de sua alma.


Ele fechou os olhos, postando-se em frente ao espelho, seus dedos agora tocavam o vidro frio e fino, que cedia ante a pressão que o rapaz fazia.


- A insanidade à espreita, escondida em nossos próprios sonhos e desejos.


Seus olhos abriram lentamente, primeiramente fitando apenas a si próprio, na mesma sala em que se encontrava.


Mas, como ocorrera antes, a imagem tremulou, a superfície do espelho pareceu líquida, enquanto a sala na qual ele se encontrava se metamorfoseava, suas roupas estavam sendo trocadas por uma armadura negra, suas asas apareciam e em seus braços um livro marrom repousava.


- É meu. – Ele falou, enlouquecido pelo espelho, seus desejos falando mais alto que sua razão. De fato, o Maleficarum não estava ali, apenas uma ilusão projetada pelo espelho, mas aquela pequena fantasia lhe saciava de uma maneira inebriante.


As asas do rapaz – aquelas que apareciam apenas no espelho – esticaram-se de excitação.


Reparando agora, ele podia ver que estava postado em frente ao palácio draconiano, onde seu pai costumava reinar, o lugar onde ele vivera toda a sua infância e juventude.


Ele estava queimando.


Tudo estava queimando, cada pedaço do espelho se consumia em chamas, o fogo corria por toda a cena, destruindo e ruindo a estrutura do palácio e queimando as árvores que abundavam ao redor.


Fogo. Mas não era qualquer fogo, aquele fogo, o fogo que o espelho representava, era a própria essência do Fogo, era tudo que ele representava. Dor, Fúria, Destruição, Ódio. Se havia algo que pudesse se alastrar e que crescia ao se consumir, ele estava representando. Toda a fúria que consumia os homens agora corria leve pela Terra.


Ele riu, feliz, consciente de que aquele era seu desejo mais profundo e, por mais destrutivo que fosse, ele estava próximo de ser conquistado.


E você estará só quando isso acontecer. A voz lhe consumiu. Ele não saberia dizer de onde veio, ou como o fez. Mas ela estava ali e dizia a verdade.


Agora ele pudera perceber, estava só. Não havia com quem compartilhar sua glória e reinado. Ele reinaria sobre o Caos, mas apenas sobre ele.


- NÃO! – Ele gritou, erguendo a mão, jogando o próprio punho contra o vidro, que rachou lentamente, fazendo o reflexo mágico sucumbir e ser consumido por si mesmo. – Não é assim que vai ser.


Não pode ser assim. Não é assim que eu quero.


Ele virou-se, ouvindo o som da rachadura se prolongando, do vidro rachando, dos pedaços da moldura se desfazendo e se esfarelando, caindo ao chão em ruínas.


Irritado, seus passos pesados ecoando na sala, ele voltou à porta, parando ao lado da garota que ainda observava, meio temerária do que pudesse ter acontecido ali.


- Vamos embora. – Ele disse, seu olhar frio e indiferente. – Eu fiz meu caminho até aqui atrás de algo que não encontrei. Ainda há caminhos a se percorrer, eu sei que irei encontrar o que quero e quando o fizer, haverá Fogo.


Dando dois passos em direção à sala anterior ele parou.


- Acho que você já pode falar. - e então continuou, sem esperar a garota.

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