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- Olá, Harry - a loira do banco ao lado chamou 


 


- Olá, Darla. Como vão as coisas?


 


- Poderiam estar melhores.


 


- É sempre assim, não é? - disse enquanto olhava para a moça. - E então, vai se comportar hoje?


 


Darla riu e respondeu:


 


- Você me conhece. Sempre quero me comportar. Mas claro que sempre posso ser convencida a fazer alguma besteira.


 


- Então hoje você vai continuar com as roupas de baixo. Certo? Harry perguntou encarando-a e levantando uma das sobrancelhas escuras.


 


- Quando se trata de mim, nunca se pode dizer o que vai acontecer. - Ela se inclinou para frente. - Nunca se sabe o que eu posso fazer. Às vezes sou louca.


 


Só às vezes? Comprar para si mesma um cartão de aniversário para seu namorado assinar sugere desordem passivo-agressiva que beira a loucura absoluta.


 


- Apenas fique de calcinha para que eu não tenha que te jogar de novo para fora com o traseiro desprotegido.


 


De novo? Quer dizer que isso já aconteceu? Gina tomou um gole e deslizou seu olhar sobre o traseiro considerável de Darla apertado na calça jeans.


 


- Eu aposto que todos adorariam ver isso! - disse Darla com uma mexida nos cabelos.


 


Pela segunda vez naquela noite, Gina engasgou com a bebida. Uma profunda gargalhada de Harry chamou a atenção de Gina para o brilho divertido nos surpreendentes olhos verdes.


 


- Hei, docinho, está precisando de água? - ele perguntou.


 


Gina balançou a cabeça e limpou a garganta.


 


- Esse drinque está muito forte para você?


 


- Não, tudo bem. - Ela tossiu uma última vez e recolocou o copo no balcão. - Só acabei de ter uma visão do inferno.


 


Os cantos da boca de Harry viraram para cima e se transformaram num sorriso de cumplicidade, confirmando que ele havia compreendido o significado de - visão do inferno, e formando duas covinhas nas bochechas bronzeadas.


 


- Eu nunca a vi por aqui antes. Está de passagem?


 


Gina esforçou-se para tirar a imagem do grande traseiro nu de Darla da cabeça e trazer novamente a mente para a razão, pois estava no Mort's. Achava que iria antipatizar com Harry Potter assim que o visse. Mas não foi o que aconteceu.


 


- Não. Comprei uma casa na estrada Red Squirrel.


 


- A área é boa! No lago?


 


- Isso mesmo. - Ela pensou que, além da fisionomia, Harry havia herdado também o charme do pai. Até onde Gina sabia, Tiago Potter havia seduzido mulheres só de olhar na direção delas. Ele certamente seduzira sua mãe.


 


- Então você vai passar o verão?


 


- Pretendo.


 


Ele inclinou a cabeça para um lado e estudou o rosto delicado. Olhou fixamente para os olhos, a boca e se demorou pelo tempo de várias batidas cardíacas antes de olhar novamente para os olhos.


 


- Qual é o seu nome, olhos castanhos?


 


- Gina - respondeu, segurando em seguida a respiração como se esperasse que ele a conectasse com o passado. O passado dele.


 


- Só Gina?


 


- Slater - respondeu, usando o pseudônimo.


 


Alguém no fundo do bar chamou-o e ele olhou por um instante antes de voltar novamente sua atenção para Gina. Sorriu docemente. Um sorriso que fez surgir novamente as covinhas que amenizavam a face tão máscula. Ele não a reconheceu.


 


- Eu sou Harry Potter. - A música começou novamente e ele disse: - Bem-vinda a Truly. Quem sabe a gente se vê por aí!


 


Ela observou-o se afastar sem lhe contar a razão pela qual estava na cidade, e porque ela estava sentada no Mort's. Não era o melhor momento nem o melhor lugar. Mas não havia - talvez, era certo que se veriam novamente. Ele ainda não sabia, mas a veria ainda muitas vezes. E da próxima vez certamente não seria tão gentil com ela.


 


Os sons e cheiros do bar ficaram opressivos. Gina pendurou a bolsa no ombro e em seguida deslizou do banco e abriu caminho em meio à multidão na penumbra. Na porta, olhou para trás na direção do balcão e de Harry. Ele inclinava a cabeça um pouco para trás e sorria, iluminado pelas luzes do teto. Ela parou e apertou a maçaneta quando ele se virou de costas para pegar uma cerveja.


 


Durante o tempo em que ficou parada ali, a  juke tocava uma música que falava em uísque para homens e cerveja para cavalos, e seu olhar convergiu para os cabelos pretos, a nuca e os ombros largos sob a camiseta preta. Harry se virou e colocou um copo sobre o balcão. Enquanto o observava, ele ria de alguma coisa, e até aquele momento Gina não sabia o que esperava de Harry Potter antes de encontrá-lo, mas independentemente do que fosse, certamente não esperava esse homem vivaz, espontâneo, cheio de sorrisos. De repente o olhar fixo dele atravessou o bar, escuro e infestado de fumaça, e pousou nela. Gina quase pôde sentir aquele olhar estender-se pelo salão e a tocar, apesar de saber que era pura ilusão. Estava na entrada escura e imaginara que fosse quase impossível para ele distingui-la na multidão. Abriu a porta e saiu para o ar fresco da noite. Enquanto estivera no Mort's, a noite havia baixado em Truly como uma cortina negra e pesada, e o único contraste eram umas poucas placas luminosas acesas e as luzes ocasionais da rua. Seu carro, preto, estava estacionado do outro lado da rua, em frente a uma loja de roupa íntima masculina e uma galeria de arte. Esperou que um carro amarelo passasse antes de deixar o meio-fio sob a incandescente placa de néon do Mort's.


 


Um transmissor em sua bolsa destravou a porta do carro do lado do motorista quando ela se aproximou. Ela abriu a porta e escorregou para dentro do interior fresco de couro.


Em geral não era materialista. Não se importava com roupas ou sapatos. Também não se importava se o sutiã combinava com a calcinha desde que ninguém a visse de lingerie em dias normais, e não tinha jóias caras. Há dois meses havia comprado o novo carro com acessórios mais sofisticados. Mas antes disso Gina andara num carro velho que rodou mais de trezentos e vinte mil quilômetros, até que chegou a um ponto em que precisou abandoná-lo e procurar um novo. Tarefa insólita. Tentou várias opções, fez muitos test drives, e esteve a ponto de desistir. Um dia se virou e bateu os olhos no sedan preto. As luzes do showroom brilhavam sobre o carro como um sinal de Deus, e ela podia jurar que ouvia anjos cantando aleluias como o Coro do Tabernáculo Mórmon. Quem era ela para ignorar uma mensagem do Senhor? Poucas horas depois de entrar na concessionária, levava o carro do showroom para a garagem da sua casa em Boise.


 


Gina apertou o botão de partida e acendeu as luzes. O CD preencheu o carro com Excitable Boy, do Warren Zevon. Afastou o -carro do meio-fio e fez um movimento em - U no meio da rua Main. Havia algo de brilhante e perturbador nas letras de Warren Zevon. Era um pouco como olhar dentro da mente de alguém que estava no limite entre a loucura e a sanidade, e que de vez em quando se punha à prova. Brincando com o limite, testando-o, e depois recuando, logo antes de ser sugado para dentro da terra dos malucos. Na linha de trabalho de Gina, não havia muitos que conseguiam recuar em tempo.


 


Os faróis dianteiros do carro atravessaram a noite negra. Ela virou à esquerda no único farol de tráfego da cidade. O primeiro carro que teve foi de segunda-mão, tão danificado que os bancos só ficavam inteiros graças a uma fita adesiva especial. Ela percorreu um longo caminho desde aquela época. Um longo caminho desde o Parque Roundup, nome do estacionamento do trailer onde havia vivido com sua mãe, até a casinha apertada em Boise, onde foi criada pela tia-avó Martha.


 


Até o dia da aposentadoria, Martha trabalhou como principal contadora em uma drogaria, e elas viviam do pequeno salário e dos cheques do seguro social de Gina. O dinheiro sempre foi apertado, mas Martha sempre mantinha meia dúzia de gatos. A casa cheirava o tempo todo a comida de gato e a caixas de fezes. Motivo da aversão de Gina por gatos. Bem, talvez não o gato da amiga Lucy, o sr. Snookums. O Snookie era legal.


Para um gato. Dirigiu cerca de um quilômetro e meio pelo lado leste do lago antes de virar na estrada ladeada por pinheiros robustos e altos, e parar em frente à casa que ela havia comprado poucos meses atrás. Não sabia quanto tempo ficaria com a casa. Um ano. Três. Cinco. Havia comprado em vez de alugar pelo investimento. As propriedades em torno de Truly eram bem valorizadas, e quando, ou se, ela vendesse o lugar, esperava ter um bom lucro.


 


Gina apagou as luzes do carro e a escuridão a afligiu. Ignorou a apreensão que sentia no peito quando saiu do carro, subiu os degraus e pisou na varanda cercada e iluminada com várias lâmpadas de sessenta watts. Não tinha medo de nada. Certamente também não teria medo do escuro, mas sabia que coisas ruins haviam acontecido a mulheres não tão atentas e cuidadosas quanto Gina. Mulheres que não tinham um pequeno arsenal de equipamentos de segurança em suas mochilas. Coisas como arma de eletrochoque, gás lacrimogêneo, alarme pessoal e soco inglês, só para citar alguns itens. Qualquer mulher é suficientemente cuidadosa, especialmente numa cidade onde à noite é difícil ver um palmo adiante do nariz. Em uma cidade situada exatamente no meio de uma densa floresta, onde a vida selvagem era preservada, árvores farfalhavam e a vegetação rasteira escondia várias espécies de animais venenosos. Onde roedores com olhinhos brilhantes esperavam que essa mulher fosse para a cama para saquear a despensa. Gina nunca teve que usar nenhum de seus equipamentos de defesa pessoal, mas ultimamente vinha se perguntando se tinha uma mira boa o suficiente para derrubar um camundongo saqueador com a arma de eletrochoque.


 


Luzes ardiam dentro da casa quando Gina destrancou a porta verde, entrou e a trancou. Ninguém saiu correndo dos cantos quando ela jogou a bolsa sobre a cadeira de veludo vermelho que estava próxima à porta. Uma ampla lareira dominava o meio da grande sala de estar e a dividia no que deveria ser a sala de jantar, mas que Gina usava como escritório.


 


Sobre uma mesa de centro em frente ao sofá de veludo estavam os arquivos da pesquisa de Gina e uma velha fotografia cinco por sete numa moldura de prata. Esforçou-se para alcançar a foto e olhou para o rosto de mãe, que tinha cabelos em um tom de louro, olhos azuis e um grande sorriso. Havia sido tirada poucos meses antes de Molly Weasley morrer. Na foto via-se uma mulher de vinte e quatro anos feliz, extremamente vibrante e linda. Como na foto amarelada encaixada na valiosa moldura de prata, muitas das memórias de Gina também haviam desbotado. Recordava-se de bocados de algumas coisas e fragmentos de outras.


 


Tinha uma memória tênue de contemplar a mãe enquanto se maquiava e escovava os cabelos antes de ir para o trabalho. Lembrava-se da velha mala azul e de se mudar de um lugar para outro. A partir do pálido prisma desses vinte e nove anos, tinha uma memória muito tênue da última vez que sua mãe havia carregado o velho Maverick e da viagem de duas horas para o norte até Truly. Instalaram-se no trailer onde havia um desgrenhado tapete alaranjado.


 


A memória mais nítida que Gina tinha da mãe era o perfume de sua pele. Ela cheirava a loção de amêndoa. Mas se lembrava principalmente da manhã em que sua tia-avó chegou no Parque Roundup para lhe contar que sua mãe havia morrido.


 


Gina colocou a foto de volta sobre a mesa e caminhou sobre o chão de madeira na direção da cozinha. Tirou um refrigerante diet do refrigerador e o abriu. Martha sempre disse que Molly era distraída. Voando como uma borboleta de um lugar a outro, de um homem para outro, procurando algum lugar onde se instalar, e procurando amor. Achando um e outro por algum tempo, antes de se mudar para um outro lugar ou para um novo homem.


 


Gina bebeu da garrafa, depois recolocou a tampa. Não era nem um pouco parecida com a mãe. Sabia qual era seu lugar no mundo. Sentia-se confortável com a pessoa em que se tornara, e certamente não precisava de um homem que a amasse. De fato, nunca estivera apaixonada. Não daquele jeito romântico sobre o qual a boa amiga Clare escrevia para ganhar a vida. E não do jeito absurdo, do tipo - louca por homem, jeito este que havia governado sua mãe e, finalmente, tirado sua vida.


 


Não, Gina não tinha interesse no amor de um homem. O corpo era outra coisa, e ela queria um namorado ocasional. Um homem para vir várias vezes por semana para fazer sexo. Ele não precisava ter um papo brilhante. Na verdade, ele nem precisava levá-la para jantar. Para ela, o homem ideal só precisava levá-la para a cama, depois ir embora. Mas havia dois problemas em encontrar o homem ideal. Em primeiro lugar, qualquer homem que quisesse apenas sexo de uma mulher era muito provavelmente um babaca. Em segundo lugar, era difícil encontrar um homem disponível que fosse bom na cama em vez daquele tipo que apenas pensava ser bom. A tarefa de escolher entre os homens e encontrar o que ela queria se tornara uma tarefa árdua da qual ela desistira quatro anos atrás.


 


Enganchou a ponta da garrafa de refrigerante entre dois dedos e saiu da cozinha. Seus chinelos de borracha batiam na sola dos pés enquanto atravessava a sala de estar e passava pela lareira na direção do escritório. O laptop estava sobre a escrivaninha em - L que por sua vez estava encostada na parede. Acendeu a luminária presa à escrivaninha. Duas lâmpadas de sessenta watts iluminaram uma pilha de diários, o laptop e as anotações intrincadas chamadas - Nomes descobertos e atitudes necessárias. Ao todo havia dez diários de várias formas e cores. Vermelho. Azul. Cor-de-rosa. Dois dos diários tinham fechadura, enquanto um dos outros não era nada além de um caderno de notas espiral amarelo com a palavra - Diário escrita com marcador preto. Todos eles pertenceram a sua mãe.


 


Gina batia levemente a garrafa de refrigerante diet contra a coxa enquanto olhava fixamente para o livro branco no topo da pilha. Ela não sabia da existência deles até a morte da tia -avó Martha, alguns meses atrás. Não acreditava que Martha havia mantido os diários escondidos propositadamente. O mais provável era que quisesse entregá-los a Gina algum dia, mas se esquecera completamente. Molly não foi a única mulher distraída na árvore genealógica da família Prewett.


 


Como única parenta viva de Martha, foi encargo de Gina encomendar o funeral, arrumar as coisas e esvaziar a casa onde a tia-avó morara. Ela foi atrás de lares para os gatos da tia e planejou doar a maior parte das coisas para a caridade. Em uma das últimas caixas que separou, deparou-se com sapatos velhos, bolsas antigas e uma velha caixa de sapatos. Ela quase jogou fora a velha caixa sem sequer abrir. E na verdade uma parte sua quase desejava não tê-la aberto. Desejava poupar a si mesma da dor de olhar dentro daquela caixa e sentir o coração lhe subir pela garganta. Como uma criança, ansiara por uma conexão com a mãe. Alguma coisinha que pudesse ter e manter. Sonhara ter alguma coisa que a ligasse à mulher que havia lhe dado a vida, e que pudesse revisitar de tempos em tempos. Perdera sua infância ansiando por alguma coisa... Alguma coisa que estivera o tempo todo um pouco escondida no fundo de um armário. Esperando por ela em uma caixa de sapatos.


 


A caixa continha os diários, o obituário da mãe e artigos de jornal sobre sua morte. Também tinha um saco de cetim com jóias. Em sua maioria coisas sem valor. Um colar foxy lady, vários anéis de turquesa, um par de brincos de argola de prata e uma pequenina faixa cor-de-rosa do Hospital de St. Luke, onde estavam inscritas as palavras


 


- Bebê Weasley.


 


Naquele dia, em pé no seu antigo quarto, quase sem fôlego, pois seu peito arfava, sentiu-se de novo como uma criança. Amedrontada e solitária. Com medo de alcançar o que queria e fazer a conexão, mas ao mesmo tempo estimulada por finalmente ter algo de tangível que pertencera a sua mãe, de quem se lembrava com dificuldade.


 


 


 


 


Continua...


 


 


 


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