Choque Inicial



Ainda não tinha amanhecido completamente, na verdade estava mais para noite do que para dia. Na cabeça dela, as coisas também estavam mais para escuras do que para claras. Nada parecia se encaixar, ela sabia que as coisas não se encaixariam como em um passe de mágica, afinal nem tudo era magia. Ela suspirou, odiava não entender, mais que isso, odiava saber que demoraria a entender, muito mais que isso, odiava saber que não queria entender tão cedo. Suspirou de novo, ela estava impaciente, tamborilou os dedos no vidro da janela, se surpreendeu ao constatar que este estava embaçado, mas logo riu com o pensamento. Pareceu-lhe egoísta pensar que sua respiração quente deixava o vidro frio embaçado. Desencostou a testa do vidro, fechou os olhos, a paisagem parecia surreal demais.
Nada pertencia àquele lugar, nem os corpos inertes, nem os estilhaços de vidro, nem os escombros, nem a tristeza, muito menos aquele silêncio incomodo, um silêncio que teria muito o que contar um dia, mas naquele momento o luto que preenchia todos os espaços daquele lugar não deixava o silêncio falar.
Quando as primeiras lágrimas escorreram pelos cantos de seus olhos, ela tentou de alguma forma pensar que estava tudo bem, se deixou por um segundo esquecer. Afastou-se devagar da janela, pensando em subir para o dormitório, o que não lhe parecia nem um pouco convidativo, decidiu permanecer ali com sua tristeza. Sentou-se em sua poltrona favorita que não era tão confortável quanto ela se lembrava. Mesmo assim abraçou as pernas enquanto seus olhos pesavam e o cansaço de meses vencia a vontade de não se deixar dormir.

Os olhos dele pareciam tão felizes, ela decidiu sorrir, a felicidade dele merecia um sorriso. Ela sentiu a mão dele, quente e levemente áspera, roçar a sua, sentiu a cheiro cítrico que vinha dele, sentiu borboletas no estômago quando ele passou o braço em torno de sua cintura, sentiu frio quando a mão dele a deixou. Viu um raio verde, não queria ver, mas sabia que não veria aqueles olhos de novo.


- Hermione! Acorda, foi só um sonho. – era a voz dele.
Ela suspirou, abriu os olhos esperando ver aqueles olhos brilhantes, mas tudo o que viu foram dois globos azuis totalmente opacos.
- Tudo bem? – “Não!”
- Está sim, Ron. – ela respondeu olhando para o chão. Ele pôs a mão em seu queixo e levantou a cabeça dela a altura de seus olhos.
- Tem certeza? – perguntou se agachando a frente da poltrona. Ela balançou a cabeça, odiando saber que logo estaria aos prantos.
Ela fechou os olhos, estava com vergonha de chorar na frente dele, na verdade estava com vergonha por todas aquelas outras coisas que no momento não queria pensar. Tentou o máximo que pode segurar o soluço engasgado, mas segura-lo a estava sufocando, ao solta-lo sentiu Ron sentar no braço da poltrona, envolvendo-a com ambos os braços carinhosamente.
Ele se deixou escorregar para a poltrona, ficando absurdamente próximo de Hermione que soluçava e apenas se encostou em seu peito.

Ela não sabia se aquele era o lugar dela, mas a dor tornou-se quase suportável quando ele a abraçou. Sentiu como se pudesse respirar depois de muito tempo sem fazê-lo, sufocando assim todas as palavras que tinha para dizer, não era hora. Ela só queria saber qual seria hora certa de dizer, e na verdade queria que fosse logo. Não faria mal nenhum chorar por essas palavras, ele nunca saberia, ele acha que ela está chorando pela guerra, pelos mortos, pelos feridos, pelas marcas, pelo que vai ser dali para frente. Não por eles, não pelo que foram, ou talvez serão um dia, não pelas besteiras que fizeram, e até onde chegaram por elas, não pelas palavras que não foram ditas, e as que nunca serão. Não também por isso, não pela dor dela, mas pela dor de todos.
Queria que alguém lhe dissesse para deixar de ser tão certinha e brigar com Ron, ser só um pouco egoísta, jogar na cara dele tudo que eles não foram, todos os erros e dizer que é tudo culpa dele, todas as noites que ela não dormiu, todos os dias que passaram sem que ela tomasse consciência, todas as lágrimas, todas a malditas lágrimas que escorreram pelo seu rosto. Tudo culpa dele.

Esmurrou o peito dele e soluçou.
- Calma! – exclamou, puxando o rosto de Hermione para cima. – O que foi?
- Não foi nada, Ronald. – se levantou da poltrona.
- Essa é muito boa, Hermione. – foi atrás dela. – O que aconteceu?
- Não é da sua conta. – virou-se de costa, secando o rosto. Ele estava calmo, na verdade calmo demais, tinha um risinho irônico no canto da boca, os olhos estavam menos tensos, em tom de gozação. Ele queria brincar. Então, ele sabia. Não, Ron seria incapaz de ver um palmo a sua frente, quanto mais saber por que ela havia ficado tão nervosa de uma hora para outra. Mas ele realmente parecia lutar contra um divertimento inconveniente.
- Você fica uma graça quando está nervosa. – comentou sorrindo.
Por essa ela não esperava, e por alguns segundos duvidou do que tinha escutado.
-Como? – juntou as sobrancelhas e crispou os lábios.
- To falando serio, Mione. Uma gracinha. – sorriu de lado, ele estava tão vermelho quanto à tapeçaria do lado da lareira.

Estava quente demais para um fim de primavera, estava quente demais até para um verão escaldante. Será que ele não estava sentindo?

- Desculpe, sim. – ela sorriu e abaixou os olhos. – Eu só... Só estou um pouquinho nervosa. E só pra variar, acabei descontando em você.
-Bem, eu vou tomar um banho e tentar dormir. Qualquer coisa você sabe onde me encontrar. – deu um passo para frente, não muito seguro do que estava fazendo, ela se perguntou por que ele estava com aquela cara.
Ron passou rápido em direção a escada, e parou no primeiro degrau, suspirou. Hermione riu. E como um balaço desgovernado, ele voltou, sério demais, centrado demais, seguro demais e colocou a mão no rosto dela, e ela soube, e odiava saber que naquele momento que se deixaria levar, odiou saber que não estava surpresa.




Ele a beijou. Não como da primeira vez, dessa vez não parecia tão errado, nem inapropriado, não era tão constrangedor, nem desesperado. Parecia certo, e até mesmo bobo o modo como ele pressionava sua nuca e como ele parecia quente, como ela se apoiava nos ombros dele, esperando no cair no chão, mesmo que ele a tivesse segurando pela cintura. Tão certo, ela gostou de estar certa.
Aquele era realmente o lugar dela, não importa o que fizesse, não importa quanto tempo passasse: ainda era ele e mais ninguém.


Pouco tempo depois, separam seus lábios. Ron beijou sua testa, e segurou suas mãos.
- Nós temos que conversar, mas essa não é a hora, nem o lugar certo. Eu só quero que você saiba... Bem, você... Nós temos muito que conversar. – ele riu, ela concordou com a cabeça.


Depois de algumas horas ela até chegou a achar engraçado. Mas ele havia falado que eles precisavam conversar, tinham que conversar. Muitos podiam dizer que isso era tão pouco, mas se tratando dele, era muito. Ela riu, e se sentiu culpada, não era hora.



O sol estava pino quando ela desistiu de tentar dormir. Tantas coisas que ela queria esquecer, e outras que queria deixar para depois.
Quando Harry passou por ela na sala comunal perguntou por que ela não estava dormindo, soou tão idiota ter passado horas e horas naquela sala vazia e fria apenas esperando o tempo passar, a dor passar, a ansiedade a deixar inquietar-se. Mas agora não fazia sentido ficar sozinha naquele quarto frio, sem vida, rolando de um lado para o outro, em uma cama que não era mais sua, que não lhe deixava fechar os olhos e descansar.

O silêncio continuava o mesmo e ela se cansou.

Saiu da cama, alcançou a escada e desceu. “você sabe onde me encontrar” Sorriu.



As portas estavam todas fechadas, deixando o corredor com um ar sombrio, denso. Girou a maçaneta, a abriu a porta. Ron sentou-se imediatamente na cama.
-Ah, é você. – sorriu de lado. – Também não consegue dormir. – ela acenou com a cabeça. Ele olhou para o lado. Harry dormia como uma pedra, o que não condizia com o Harry que ela se lembrava, parecia leve como nunca fora, tranquilo e relaxado.
- Eu nunca o vi dormir assim.
- Nem eu, e tenho certeza que o vi dormir mais vezes do que você.

Hermione continuou parada do lado da porta, não queria aproximar-se mais, mas também não queria ficar longe. Era a milésima vez que sentia egoísta, e estava odiando não saber como perguntar se ele estava bem.

Afinal, era o irmão dele.


Ele estava agindo como se não importasse, ou como se não estivesse lembrando. Isso não era saudável. Ela odiou saber que ele apenas não queria pensar no assunto, iria doer muito. Ron não conseguiria lhe dar com isso.

-Mione?
- Sim? –respondeu ainda absorta em pensamentos.
- Eu perguntei, se você vai ficar ai na porta. – ele disse rindo.
Ela andou devagar até a cama, e sentou na frente dele. Pegou sua mão, tinha que fazer alguma coisa:
- Ron, você não quer conversar? – ele olhou curioso meio que sorrindo.
- Acho que não é hora pra conversarmos sobre isso.
- Não! Sobre seu irmão. – ele engoliu seco, se mexeu desconfortavelmente, e respondeu com a voz baixa em tom de pouco caso:
- Qual deles?

Foi a ultima gota que o cálice suportaria antes de transbordar.

- Não seja hipócrita, Ron. – falou ríspida – Você age como se não importasse, como se não fizesse diferença. E sabe por que você está fazendo isso?
- Por quê? – ele desafiou.
- Porque a coisa que você mais temeu durante todo esse tempo, foi perder alguém da sua família, perder alguém que você amasse. Você sabe lhe dar com tudo, mal ou bem. Mas você não saberia como reagir quando isso acontecesse. E é por isso que você está assim. Você não sabe o que fazer.
- Alguém que eu amasse. E quem te disse que amava aquele idiota? Quem te disse? – ele virou o rosto e fungou. – Ele gastava o tempo dele me enchendo o saco, não se sentia feliz enquanto não me humilhasse. E você acha que eu vou sentir falta dele? – algumas lágrimas escorreram e se misturaram com a rala barba que encobria seu rosto. – Ele nem vai fazer falta...

Ela percebeu que se o viu chorar alguma vez não prestou atenção realmente, e depois ela descobriu que poucas vezes havia visto alguém chorar na vida.

Ron estava com a cabeça em seu colo, agarrado em sua cintura, chorando desesperadamente. Ela se sentia tonta, a dor dele a cortava, e para piorar ela se sentia inútil, porque não sabia o que fazer para amenizar o sofrimento dele.

Hermione chorou com ele, era o máximo que poderia fazer naquele momento.


Era como se houvesse passado uma eternidade. Ele não havia falado nada, mas não estava dormindo, ele só não sabia o que dizer a Hermione. A cabeça dela doía, e o silêncio do castelo começava a incomodar de novo. Pensou que precisava dormir, mas não queria fazê-lo antes de falar com Ron, perguntar se estava tudo bem. Na verdade nada estava.

Ele tirou a cabeça de seu colo. Seus olhos estavam tão vermelhos quanto os dela. Deu um beijo em sua testa.
- Você não quer dormir um pouco?

Ela apenas acenou com a cabeça. Ron deitou na cama e a puxou para o seu lado, a abraçando.



Quando Ron a beijou nos lábios, e desejou-lhe que tentasse dormir bem, ela lutou contra si mesma para não explodir de tanta vergonha. Ela percebeu que dali para frente teria que aprender a conviver com algumas coisas, e a deixar algumas que fariam falta, para trás.






"— Eu não sou o Fred, sou Jorge — retrucou o menino — Francamente, mulher, você diz que é nossa mãe? Não consegue ver que sou o Jorge?
— Desculpe, Jorge, querido.
— É brincadeira, eu sou o Fred."

Harry Potter e a Pedra Filosofal

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.