CAPÍTULO II



HARRY BEBEU da taça de vinho, observando as lindas jovens desfilando pelo salão, cortesia de seu velho amigo, Ronald.

Como um dos fotógrafos mais requisitados da cidade, Ronald sempre contava com a presença de homens e mulheres, belos e jovens, assim como a dos vampiros mais poderosos da cidade em todas as suas festas.

Esta noite não era diferente.

Mulheres altas e magras se desviavam da mesa cheia de comida e seguiam para o bar, onde homens igualmente altos e magros se juntavam a elas, ansiosos por uma oportunidade com uma das mulheres ou com um deles.

Harry costumava evitar esses tipos. Seu sangue era fraco devido aos jejuns constantes e ele não tirava satisfação de encontros sexuais com um saco de ossos.

Não que recentemente costumasse tirar satisfação de qualquer encontro sexual, pensou, examinando a multidão e os aproveitadores das pessoas lindas. Os estilistas. Pessoas no ramo de relações públicas e outros que se aproximavam mais do seu gosto e eram fáceis de seduzir.

Avistou uma jovem atraente perto da mesa do bufê, enchendo o seu prato com caviar. Era de altura média, com olhos castanhos e tristes e o cabelo curto, cor-de-chocolate, lhe adornava o rosto atraente.

Seu corpo também era atraente, Harry pensou. Seios fartos e, pelo visto, verdadeiros, com uma cintura mediana e quadris pueris. Apesar de gostar de suas mulheres mais curvilíneas, havia algo de agradável na aparência geral da jovem.

“Agradável” sendo a maior emoção que uma mulher podia despertar nele após sua longa existência recheada de inúmeras parceiras anônimas.

Após quase dois mil anos, não havia mais nada capaz de lhe trazer satisfação. E, naqueles instantes seguintes, quando levava as presas ao pescoço de uma mulher e se alimentava, era tomado de uma fúria que destruía todas as outras emoções, estragando a realização de todas suas outras necessidades.

Fúria dirigida ao vampiro que o transformara.

Fúria dirigida aos humanos que haviam destruído a vida que construíra para si mesmo após ter sido transformado.

Harry inspirou profundamente, controlando a fúria que corria por suas veias, ao ver humanos e vampiros inadvertidamente se misturando na multidão. Os humanos não tinham conhecimento dos imortais que circulavam entre eles, enquanto os demônios estavam avaliando os mortais, do mesmo modo que alguém se preparando para jantar escolhe uma lagosta em um tanque.

Ele não saberia dizer ao certo quem ele odiava mais.

A maior parte da multidão estava reunida no grande salão da boate, onde Ronald havia decidido oferecer a sua “pequena” reunião para comemorar a temporada de festas e o recente lançamento de uma campanha especialmente desenvolvida para uma das maiores lojas de departamentos do país.

Cerca de 500 pessoas circulavam no interior do salão de festas e da galeria adjacente. Uma longa fila se estendia lá fora, na calçada, de pessoas ansiosas para se juntar às festividades da noite.

— Pare de ficar com essa cara amarrada — disse Ronald ao se aproximar e passar o braço ao redor do ombro de Harry.

Ele olhou de esguelha para o amigo extravagante. Ronald estava com uma larga túnica branca bordada de dourado nas mangas, na bainha e na gola. Calças também larga desciam por sob a túnica.

A vestimenta lembrou Harry das togas que os dois haviam usado na juventude, antes que um breve encontro amoroso com uma nova paixão durante o saturnal houvesse dado fim à vida de ambos.

Harry apontou para as decorações.

— Escolheu tudo isso como brincadeira?

— Não acha festivo? — retrucou Ronald, gesticulando irreverentemente com a mão.

Ramos de folhagem e guirlandas adornavam as várias paredes e arcos. Estrelas e sóis dourados decoravam os ramos de pinho e azevinho. Espalhados pelo recinto estavam pequenos pinheiros, também cobertos de ornamentos dourados e enfeitados com vibrantes fitas roxas. O aroma de flores do campo trouxe à sua mente lembranças de seus feriados em Roma. Tal recordação veio acompanhada de intensa dor.

— Acho torturante.

Ronald inclinou-se para bem pertinho dele, e sussurrou-lhe no ouvido:

— Talvez porque seja incapaz de perdoar e curtir, mio amico.

Antes que Harry pudesse retrucar, Ronald seguiu para o bar, onde um casal de jovens parecia estar aguardando-o. Quando Ronald colocou um braço ao redor da cintura de cada um deles, ele olhou para Harry, piscou e sorriu, como se estivesse lhe fazendo um convite.

Talvez Ronald pudesse encontrar alegria imatura nos braços deles, eu não, pensou Harry, recusando o convite com uma ligeira sacudidela da cabeça.

Um garçom se deteve diante dele e Harry pegou uma taça de vinho tinto da bandeja. Outro garçom aproximou-se, oferecendo uma variedade de aperitivos, alguns enfeitados de dourado, como era o costume romano. Harry aguardou que o homem fosse embora e procurou no meio da multidão a mulher que havia avistado antes, pretendendo se apresentar e seduzi-la a acompanhá-lo até um canto reservado, onde poderia saciar sua fome.

Ele caminhou lentamente através da multidão, lutando contra os cheiros e ruídos que irritavam seus afiados sentidos vampirescos. Uma orquestra tocava bem alto em um dos cantos, forçando um aumento de volume naqueles que tentavam ter uma conversa. Ao atravessar a multidão, mais de uma mulher tentou lhe atrair a atenção com um sorriso cordial, mas ele era imune a tais súplicas. Só se contentaria com outra no caso de falhar com o seu alvo escolhido. Em retrospectiva, a perseguição havia se tornado a única parte divertida do jogo para ele, visto que o final da caçada normalmente lhe trazia tão pouca satisfação.

Ele insistiu e, por fim, a encontrou, parecendo um pouco infeliz e ligeiramente deslocada em um canto do aposento adjacente. Segurava uma taça de vinho na mão, cheia até a metade. Quando ele se aproximou e sorriu, a mão segurando a taça titubeou.

Não estava tão barulhento assim no canto escolhido pela moça, mas, ainda assim, Harry sentou-se ao lado dela na borda da janela e inclinou-se na direção dela.

— É bom achar um cantinho tranqüilo, não concorda?

— Deveria me encontrar com algumas pessoas, mas este é meu primeiro evento. É um pouco intimidante.

Ela sorriu para ele e levou a taça à boca para um gole trêmulo.

— Ronald é famoso por exagerar. — Ele bebeu do próprio copo antes de dizer: — Mil perdões. Meu nome é Harry, e o seu é...?

— Dafne. Conhece Ronald pessoalmente?

Sua pergunta foi feita com um tom de admiração.

— Somos amigos de longa data, mas estas festas podem ser... cansativas. Quer ir a algum lugar mais tranqüilo? Talvez comer alguma coisa?

Sua mão tremeu novamente, antes que ela se virasse para ele e o examinasse cuidadosamente, a princípio para determinar se ele estava falando sério, e depois para saber se ele era de confiança. Assim como as dele tantos anos no passado, as prioridades dela estavam invertidas.

Talvez, se ele tivesse tido as prioridades no devido lugar, sua vida houvesse sido diferente.

Devia ter sido aprovado, tendo em vista que ela perguntou:

— Aonde gostaria de ir?

Humanos eram fáceis demais, Harry pensou, ao passar o braço pelo dela e deixar o prédio em sua companhia.





O BRAÇO DE Annah doía de tanto sacudir o sino. Ao olhar discretamente para o relógio, ela se deu conta de que já estava tarde, de que era hora de voltar para casa, ainda mais considerando que a rua residencial já estava quase deserta.

Haviam escolhido este ponto diante da biblioteca em uma elegante vizinhança dos Jardins tanto pela segurança quanto pela perspectiva de um bom lucro. Apesar da relativa segurança da região, ela sabia que ficar até tarde em qualquer lugar podia ser arriscado. Além do mais, a biblioteca havia fechado há quase uma hora, e não havia mais quase pedestres da rua, minimizando a possibilidade de doações.

Ela pegou o pote de doações, pretendendo deixa-lo no pequeno escritório ao qual a biblioteca tivera a generosidade de lhes oferecer acesso. Ao fazê-lo, avistou um homem do outro lado da rua. Ele estava escondido nas sombras da escadaria de acesso à casa de tijolos.

Por um instante, ela se perguntou se não seria o mesmo homem atraente que ela havia visto antes, mas ele permaneceu nas sombras, o que a deixou intranqüila. Com a chave que a bibliotecária lhe fornecera, ela abriu a porta, entrou e a trancou atrás de si. Movendo-se rapidamente, ela guardou as doações da noite e o pote em um local seguro. Pegando a bolsa na gaveta da escrivaninha, caminhou de volta até as portas de vidro da entrada principal da biblioteca.

Ainda ligeiramente enervada pelo homem nas sombras, ela vasculhou os arredores em busca de qualquer sinal dele. Não viu nada. Quando um carro de polícia se deteve perto da porta da biblioteca, ela foi embora, seguindo na direção da Avenida Paulista e da linha de metrô que a levaria para casa, em seu pequeno apartamento na Vila Madalena.

Ao caminhar, ocasionalmente olhava por sobre o ombro, atenta, mas tudo parecia em ordem e ela resolveu considerar o homem nas sombras como um produto de sua imaginação. Talvez fosse apenas vontade de dar outra espiada no bonitão que saíra da luxuosa casa de tijolos, um pouco mais cedo, naquela mesma noite.

Controle-se, Annah. Qualquer um com uma aparência daquelas e que more nesta região cara é areia demais para o seu caminhão. Estava mais acostumada a cerveja e salgadinhos, não champanha e caviar. Tal pensamento fez com que seu estômago roncasse, lembrando-a que ela não comera nada desde antes do início de seu turno como Papai Noel.

Sua boca salivou ao passar por um restaurante mexicano. Embora fosse brasileira, poderia comer comida mexicana todos os dias da semana, mas, como ainda demoraria, a vasilha de seu burrito favorito já estaria congelada quando chegasse em casa. Sem falar que estava tentando perder alguns quilos, para compensar os que certamente ganharia graças a todas as festas e refeições natalinas que ainda estavam por vir. Seus quadris já estavam arredondados demais para agüentar o peso extra.

Para mim, só uma refeição pré-congelada de baixa caloria, pensou ao passar pela catraca da estação do metrô e seguir às pressas para a plataforma. Havia alguns outros passageiros aguardando lá. Pelo jeito, alunos da Impacta, que ficava ali perto.

Com uma enorme lufada de ar que se aproximava lentamente pelo túnel e o tremor sob seus pés, o trem subterrâneo anunciou a sua chegada iminente. O apito estridente e o silvo dos freios incomodaram seus ouvidos antes que o trem se detivesse na estação.

Ela subiu a bordo, e logo estava a caminho da Vila Madalena. A área havia se tornado nobre há vários anos, embora o apartamento de Annah ficasse a alguns quarteirões dali.

O pequeno apartamento era perfeito para ela. Era um bom investimento até obter sociedade e talvez encontrar alguém e se estabelecer cm uma casa com filhos nos bairros elegantes mais afastados do centro. Uma vida previsível, mas, por outro lado, a previsibilidade se adequava à natureza dela.

Sempre havia sido a garota perfeita. Aquela em quem todo mundo confiava para ser estável e responsável. Talvez outras pessoas achassem isso maçante, ela considerava tranqüilizador.

Mal levou 15 minutos para alcançar sua parada e outros dez até estar colocando a chave na porta de seu apartamento.

Ao abrir a porta, foi recebida por um miado familiar.

Sua gata preta, Osíris, a aguardava ansiosamente lá dentro. Quando ela entrou, a gata miou mais uma vez e lhe deu as boas-vindas enroscando-se sinuosamente em suas pernas.

Annah curvou-se, pegou a gata no colo e a abraçou bem apertado, o que lhe rendeu um rosnado de protesto. Ela soltou o animal, que a seguiu até a cozinha.

A vasilha de cerâmica alegremente enfeitada de Osíris estava vazia. Sem dúvida era este o motivo para as boas-vindas tão entusiásticas.

Annah encheu as duas vasilhas antes de colocar o jantar congelado no micro-ondas e vestir um moletom quente e confortável.

Depois, abriu o sofá-cama na sala de estar e ligou a TV. O noticiário do final da noite estava passando, mas ela mudou de canal até encontrar uma reprise de um de seus dramas policias favoritos.

Algo a respeito da eterna luta entre o bem e o mal sempre a intrigara. Fora por isso que havia se tornado advogada. Embora um ano no escritório do promotor público houvesse lhe mostrado que se enganara ao tomar tal decisão. Depois de entrar em acordo em mais casos do que gostava de se lembrar, havia optado por continuar sua carreira em uma firma de advocacia onde, pelo menos, sabia o tipo de pessoas que estava representando.

O micro-ondas apitou, despertando-a de seus pensamentos.

Como fazia todas as noites em que não estava trabalhando até tarde, ou saindo com um colega para beber alguma coisa, Annah pegou o seu jantar e se acomodou sob as cobertas de sua cama. Ao comer, metade de sua atenção estava dirigida ao programa de TV e metade se voltava para o homem que havia visto antes.

Enchendo o garfo com um pouco de macarrão com queijo de baixo teor calórico — tradução: pouco saboroso —, ela procurou entender por que ele ficara tanto tempo em sua cabeça. Não costumava deixar se levar por um rostinho bonitinho. Era sensível demais para isso.

Talvez houvesse sido a fúria na escuridão, o olhar fulminante que ele lhe lançara. Cheio de raiva e até dor.

Quanto melodrama! Annah zombou de si mesma. Apesar de sua natureza normalmente sensível, sempre havia sido um pouco sonhadora, devorando inúmeros romances literários e assistindo a dezenas de filmes de amor. Sem dúvida nenhuma, a advogada durona que ela apresentava para o restante do mundo, tinha o seu lado mole.

A advogada durona que passava horas demais no escritório, o que não lhe deixava muito tempo para uma vida social.

Se Annah fosse ser sincera consigo mesma, estava aí o verdadeiro motivo de seu fascínio pelo desconhecido. Há muito tempo que não tinha ninguém além da gata para lhe aquecer os lençóis.

A gata pulou para a cama e se acomodou nos pés de Annah, afofando o local com as patas e circulando a área até ter certeza de que achara um ponto confortável para se deitar. Um ronronar de contentamento logo vibrou pelas pernas de Annah, e ela sentiu algo quente sobre seus pés.

Um substituto triste e inadequado para o calor rijo do corpo de um homem.

Annah terminou sua refeição e se afundou nos travesseiros, tomando cuidado para não desalojar a gata e verificando mais uma vez se o alarme estava ligado. Caso visse o homem atraente amanhã, talvez fizesse algo para mudar a sua atual situação.

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