Capítulo Um
Where Roses Grow Wild
Capítulo Um
Inglaterra, 1860
Lord Harry Potter, segundo e único filho vivo do falecido duque de Potter, não estava nada satisfeito.
Não apenas porque Yorkshire não era o lugar mais agradável para passar o inverno, onde havia semanas inteiras em que o sol nunca brilhava. Tampouco porque Lady Arabella Ashbury, cujo marido possuía a propriedade vizinha ao Solar Potter, estava naquele momento excessivamente absorvida consigo mesma para distingui-lo com sua prodigiosa atenção.
Não, Harry estava insatisfeito por razões que não conseguiria expressar em palavras, mesmo que quisesse fazê-lo, e não queria, já que a única pessoa por perto era a viscondessa de Ashbury. A viscondessa era conhecida em toda a Inglaterra por muitos dos seus excelentes atributos, inclusive a pele clara e os tornozelos delgados e elegantes, mas um ouvido compreensivo e solidário não estava entre suas qualidades.
“Diga a Sra. Praehurst encomendar foie gras suficiente para cinqüenta pessoas”, disse lady Ashbury, fazendo anotações numa lista dos diversos itens de última hora sobre os quais ela queria que Harry falasse com a governanta antes de seus amigos chegarem de Londres para uma caçada de fim de semana em Yorkshire. “Descobri que no campo nem todos gostam de foie gras. As Herbert não sabem a diferença entre foie gras e manteiga.”
Harry, estirado em uma chaise longue em frente ao fogo no Salão de Recepções Dourado, soltou um bocejo. Tentou segurar, mas escapou; não teve jeito. Felizmente, Lady Ashbury pouco acostumada com homens bocejando em sua presença, não estava prestando atenção.
“Não entendo por que você tem de convidar as Herbert”, continuou Lady Ashbury. O tom dela não era petulante, mas também não era de quem estava brincando. ”O pai delas pode ser o seu administrador, mas, na minha opinião, não posso dizer que ele lhe tenha trazido algum benefício, Harry.”
Harry inclinou-se para a frente na chaise longue, servindo-se de mais um pouco de conhaque da garrafa colocada ao alcance da mão na mesa lateral. Ele já estava bêbado e pretendia ficar ainda mais antes de a tarde se tornar noite. Um dos melhores atributos da viscondessa era não se incomodar com esse tipo de comportamento. Ou, pelo menos, nunca tocar no assunto.
“Afinal de contas, Harry”, continuou Lady Ashbury, “se não fosse pelos 'incansáveis esforços' de Sir Arthur Herbert no interesse da propriedade Potter, o duque agora seria você, e não aquele moleque, filho do seu irmão.”
Harry se recostou, deu um gole no conhaque e ficou olhando fixamente para o alto. O teto do Salão de Recepções Dourado era pintado de amarelo-claro, combinando com as pesadas cortinas de veludo das janelas. Ele limpou a garganta ruidosamente e disse com a sua voz mais grave, aquela que deixava os meninos dos estábulos do Solar Potter morrendo de medo: “Todos parecem esquecer que o filho de John é o herdeiro legal do título e da propriedade”.
Lady Ashbury fingiu não notar o tom de advertência da voz dele. “Mas ninguém nem mesmo sabia o paradeiro do menino até Sir Arthur começar essa busca intrometida…”
“A meu pedido, lembra-se, Arabella?”
“Oh, Harry, não me trate como se eu fosse boba.” Lady Ashbury jogou a pena que tinha nas mãos e se levantou da mesa de trabalho de tampo de marfim, o roçar da saia de seu vestido de pálido cetim azul-claro fazendo frufru. Dirigiu-se a passos largos para a chaise longue; a pele pálida e as madeixas loiras, quase brancas, formavam ima imagem bem bonita contra as cortinas amarelas fortes do fundo. Era esse, o motivo por que a viscondessa sempre fazia questão de que eles se sentassem ali e não no Salão Matinal Azul, que era mais confortável, porém menos favorável à sua figura.
“Teria sido a coisa mais fácil do mundo se você simplesmente dissesse ao duque que o filho de John também estava morto, como a mãe e o pai, e assumisse você mesmo o título”, declarou Arabela.
Harry levantou uma sobrancelha na direção dela, zombeteiro. “A coisa mais fácil do mundo, Arabella? Mentir para o meu pai no seu leito de morte? Ele passou os últimos dez anos amaldiçoando John por se casar com a filha de um vigário escocês, impedindo que o filho órfão viesse para Potter, apesar de ser, de fato, o verdadeiro herdeiro do título. E daí, quando o duque cede e se arrepende, no último momento… Ora, Arabella! Teria sido abominavelmente desonroso da minha parte pelo menos não tentar atender o desejo do velho no leito de morte.”
“Oh, dane-se a honra!”, exclamou Lady Ashbury. “Você nem viu o menino ainda!”
“Não”, concordou Harry. Ele tinha terminado o quarto conhaque e serviu do quinto. “Mas vou vê-lo quando Herbert voltar com ele, amanhã.” Sorrindo para si mesmo, Harry refletia. “O que parece que você não consegue enfiar nessa sua adorável cabecinha, Arabella, é que eu não quero ser duque. Ao contrário de você e, tenho certeza, da sua mamãe, cuja maior ambição na vida foi agarrar para você um marido com título de nobreza, eu ficaria perfeitamente satisfeito em não ser um aristocrata, em ser meramente um cidadão comum.”
Lady Ashbury soltou um som exasperado. “E como, faça-me o favor de dizer, você teria condições de manter os cavalos de raça dos seus estábulos com o salário de um mero homem sem título ou propriedade, Lord Harry? Ou a casa em Park Lane, em Londres? Para não falar dessa monstruosidade cheia de correntes de ar que você chama de solar. O único homem sem título de nobreza que conheço que pode manter tudo o que você tem é o Sr. Alistar Cartwright, e como você bem sabe, a riqueza dele é herdada, tanto quanto a sua. Não, Harry, você é um filho de duque e, portanto, tem os gostos de um filho de duque. A sua única infelicidade é não ter nascido antes do seu desgraçado irmão John.”
Harry olhou-a, com uma sobrancelha ironicamente levantada. “Que diabos, Arabella! Você realmente acha que eu gostaria de ser um duque? Preocupar-me com questões da propriedade o dia todo? Ser sempre perseguido por homens como Herbert, que adorariam ocupar todo o meu tempo com contabilidade? Ter que negociar com os arrendatários, providenciar que o sapé dos tetos de suas casas seja trocado todos os anos, que seus filhos recebam educação e suas esposas estejam satisfeitas?” Levantou os ombros largos com um estremecimento de desagrado. “Esse tipo de vida fez do meu pai um velho, matou-o antes do tempo. Não vou permitir que isso aconteça comigo. Que o moleque do meu caro falecido irmão tenha o diabo do título. Herbert providenciará para que Potter não seja totalmente destruído por uns tempos e, dentro de dez anos, quando o menino sair de Oxford, ele pode voltar para cá e assumir o lugar que lhe é de direito nestes sagrados salões.”
“E o que você pretende fazer da sua vida, Harry?”, indagou Arabella, mas disfarçando a irritação. “Você só pode caçar de novembro a março, e Londres é abominável no verão. O que você precisa, meu querido, é de uma ocupação.”
“O que você acha que eu sou, um americano?”, riu Harry, de forma pouco agradável, enquanto secava o copo. “Adoro quando você se digna a me aconselhar, Arabella. Sempre me faz lembrar da nossa diferença de idade. Diga-me, o seu marido não se incomoda de você estar sempre correndo e cruzando o pântano para visitar um homem com a metade da idade dele e uma década mais jovem que você?”
“Você tem que beber tanto?”, retrucou a viscondessa de Ashbury. Harry, com um suspiro resignado, mentalmente subtraiu um item da lista de atributos dela. “É de dar desgosto ver alguém tão comparativamente jovem ficar tão inchado e barrigudo.”
Harry abaixou os olhos, passando pela sua gravata plastrão branca com o nó perfeito sobre o colete que vestia o vigoroso peito. “Barrigudo?”, ecoou ele, sem acreditar. “Onde?”
“Você tem bolsas debaixo dos olhos.” Arabella deu um passo para a frente e arrancou o copo de conhaque da mão dele. “E dá para ver que está começando a ficar com papadas, como o seu pai.”
Harry soltou uma praga e se levantou com um pulo do assento, um tanto instável devido ao conhaque. Com mais de 1,90 m, Harry sempre fora uma figura imponente, mas no Salão de Recepções Dourado do Solar Potter, ele parecia muito mais alto. Sua grande estrutura contrastava com a delicada mobília dourada e de veludo verde, e seus pés, calçados com botas de montaria pretas bem lustradas, pisavam firme sobre os tapetes persas cuidadosamente escovados.
Dirigindo-se a passos largos até um espelho chanfrado pendurado em uma das paredes, Harry examinou o seu reflexo, procurando sinais de obesidade.
“Pelo amor de Deus, Arabella, não sei do que você está falando. Que papadas?", disse ele.
Ele tinha certeza de que não era por vaidade que não via qualquer sinal de dissipação. Sem dúvida, se as papadas existissem, ele teria notado. Harry não era tão interessado assim na sua aparência, mas sabia, porque muitas mulheres lhe tinham dito, que era agradável. Porém, estava consciente de que, apesar da roupa bem cortada, parecia deslocado em qualquer salão de recepções, dourado ou não. Ele tinha a compleição trigueira e melancólica de um pirata ou bandoleiro, sem falar no cabelo negro, que tendia a ficar rebelde em contato com a gola do casaco. Os olhos eram de um verde esmeralda brilhante e inteligente.
“Eu não quis dizer exatamente que você tem papadas agora”, disse a viscondessa de Ashbury, de repente muito ocupada com algo sobre a mesa de tampo de marfim. “O que eu disse foi que, se você não tomar cuidado…”
“Não foi isso o que você disse.”
Harry não tinha certeza sobre o que o deixava mais consternado: o fato de que ela o tinha alarmado a ponto de fazê-lo se levantar da chaise langue ou o fato de que, agora que já estava de pé, poderia muito bem ir para o andar de cima. Poderia ficar infeliz com mais tranqüilidade no conforto da sua biblioteca ou mesmo na sala de bilhar, onde poderia fumar e beber à vontade, sem nenhuma mulher implicando para lhe fazer advertências quanto a panças.
Antes, porém, de ter uma chance de inventar alguma desculpa para apaziguar a suscetível viscondessa, com quem já tinha compartilhado algumas horas de prazer em um quarto de hóspedes do terceiro andar naquele dia, Evers entrou na sala e limpou a garganta ruidosamente.
”Sir Arthur Herbert está aqui para vê-lo, my lord.” O mordomo, que havia servido ao pai de Harry por cinqüenta anos e, sem dúvida, serviria ao novo duque de Potter por mais vinte, não levantou uma sobrancelha diante do óbvio estado de embriaguez do patrão, ainda no começo da tarde.
“Hebert?”, repetiu Harry, sem acreditar. “O que ele está fazendo de volta tão cedo? Não o esperava antes de amanhã ou depois. O moleque…ãã, Sua Graça, o duque, está com Sir Arthur, Evers?”
O olhar de Evers não se afastou de um ponto acima da cornija de mármore verde da lareira. “Sir Arthur está só, my lord, e, eu poderia acrescentar, em um estado de considerável agitação.”
“Diabos!”, Harry levantou o braço e esfregou o queixo que, apesar de ainda não ter passado muito tempo depois do meio-dia, já estava áspero devido à barba que despontava. Se Herbert estava sozinho, isso só podia significar que a informação recebida de Aberdeen era falsa, como todas as outras. E Hebert tinha jurado que a fonte era confiável! Agora Harry precisaria despender mais esforços - e dinheiro - na busca do herdeiro do ducado de Potter. Como era possível que um menino de dez anos virtualmente desaparecesse da face da Terra?
“Diabos!”, repetiu Harry irritado. “Traga-o então, Evers. Traga-o para cá.”
A viscondessa soltou um suspiro exagerado no minuto em que o mordomo se afastou o suficiente para não poder mais ouvi-la.
“Ah, Harry, tenha dó. Você tem mesmo que receber aquele homem asqueroso aqui? Não podia fazê-lo esperar na biblioteca? Não me agrada ficar ouvindo vocês dois tagarelando sobre aquele moleque imprestável.”
“Sim, imprestável!”, Sir Arthur, corpulento e expansivo como sempre, entrou rapidamente na sala, mal dando tempo a Evers de abrir totalmente as portas antes de passar apressado pelo mordomo, que o olhava com suas sobrancelhas arqueadas. “Oh, uma criança extremamente imprestável, de fato, Lady Ashbury! Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras!”
Sir Arthur estava tão perturbado que nem havia permitido que o lacaio lhe tirasse a capa e o chapéu, de forma que a neve caía dos ombros daquele homem de meia-idade. Evers pairava indeciso por perto, o rosto parecia uma máscara de aflição diante das manchas molhadas que cresciam sobre o tapete debaixo das galochas do advogado.
“Deus do Céu, homem!”, Harry deixou escapar, chocado com a aparência desleixada do seu administrador. “O senhor acaba de chegar da Escócia ou do inferno?”
“Desse último, my lord, desse último, posso lhe garantir.”
Antes de Evers poder detê-lo, Sir Arthur afundou-se na chaise langue de veludo verde que Harry tinha acabado de deixar vaga.
A neve caiu nas profundas almofadas e começou a derreter imediatamente. “Nunca, em todos esses meses de busca pelo herdeiro do seu pai, encontrei qualquer coisa tão desagradável, Lord Harry.”
A viscondessa, que vinha observando os acontecimentos com os lábios levemente curvados e as sobrancelhas delicadamente arqueadas, olhou de relance para o mordomo. “Evers, creio que Sir Arthur precisa de um conhaque.”
“Não, não!”, exclamou Sir Arthur, levantando uma mão gorda. “Não, obrigada, my Lady. Eu nem chego perto de destilados antes do meio-dia. Lady Herbert não aprovaria, nem um pouco.”
“Mas, Sir Arthur”, o sorriso de Arabella era indubitavelmente zombeteiro, “já passa da uma, afinal de contas.”
“Ah. Nesse caso…,” Evers já estava ao lado do cotovelo do administrador, com um copo cheio na mão. “Oh, obrigado, Evers, meu caro. Ah, isto sim!… E não há necessidade de Virgínia saber, não é mesmo?”
Harry, que quase sempre tinha vontade de destruir alguma coisa toda vez que estava na presença do conselheiro de maior confiança do seu falecido pai, perguntou, com os dentes cerrado: “Devo entender, pela sua total falta de serenidade, que fomos enganados novamente?”
Sir Arthur levantou os olhos do seu conhaque, o rosto rechonchudo e insípido quase comicamente surpreso. “O quê? Enganados? Oh, não, my lord. Nem um pouco. Não, trata-se do jovem mesmo. Ah, sim, finalmente pegamos o jovem certo.” Soltou um suspiro trêmulo, tão dramático quanto barulhento. “O que realmente é uma pena.”
Sir Arthur estendeu uma mão trêmula na direção da garrafa que estava sobre a mesa lateral dourada, com intenção de se servir de mais um conhaque, e tanto Evers quanto Harry deram um passo à frente para detê-lo, o mordomo por se sentir ofendido em seu senso de dever e Harry de pura frustração. Harry não estava tão bêbado para não levar a melhor sobre um cinqüentão, pai de cinco filhas, ou sobre um mordomo de setenta anos. Ele se apoiou sobre um joelho ao lado da chaise longue, os dedos fechados ao redor do gargalo de garrafa de conhaque. Era tão alto que apenas de joelhos poderia fitar os olhos de Sir Arthur, que estava sentado, e foi o que fez, sem saber que os seus próprios olhos cinza tinham um perigoso brilho de raiva reprimida.
“O que…”, Harry disse, articulando as palavras com cuidado, “aconteceu… na… Escócia?”
Sir Arthur parou de contemplar com pesar para o fundo do copo, o olhar fixado no brilho ameaçador dos olhos de Harry. “Bem, eu…ããã…”, gaguejou o administrador. “Bem, o senhor vê, my lord, é ele. O duque, my lord. O jovem Jeremy de Potter.”
“O senhor o encontrou?”, o alívio de Harry era palpável. “Graças a Deus.” Mas o alívio logo se transformou em impaciência. “Mas, se o encontrou, por que diabos não o trouxe de volta consigo para Potter?”
“Recusou-se a vir”, disse Sir Arthur simplesmente, encolhendo os ombros.
Harry não tinha certeza de ter ouvido direito. “Desculpe, Sir Arthur. O senhor pode repetir?”
“Recusou-se a vir”, disse Sir Arthur novamente. “E foi absolutamente inflexível, my lord. Recusou-se a sair do lugar sem…”
“Recusou-se a vir?”, urrou Harry. Ficou de pé de um salto, os punhos cerrados ao lado do corpo. Notou que Arabella estava olhando fixo para ele, um pouco alarmada, mas não conseguia controlar a sua súbita compulsão de andar de um lado para o outro da sala, como um animal enjaulado.
“Recusou-se a vir? O menino foi informado de que é herdeiro de uma fortuna, dono de uma propriedade que é a jóia de Yorkshire e que ele é, na verdade, um duque, e se recusa a vir? Essa criança é idiota?” , berrou Harry, assustando Evers, que tentava retirar a já vazia garrafa de conhaque. É bem típico de John ter um herdeiro idiota, pensou Harry, furioso.
“Oh, não, my lord”, disse Sir Arthur, assustado. “Pelo contrário. Saudável como um pônei, com dez anos, todo endiabrado. Jogou um ovo na minha cabeça no momento em que desci da carruagem.”
Harry se esforçava para não perder totalmente a paciência. “Então por que ele se recusa a vir com o senhor?”
“Bem, não era tanto o menino, my lord, mas a tia.”
“Tia?” Arabella levantou os olhos, interrompendo o minucioso exame de suas cutículas. “O menino tem uma tia?”
“Sim, my lady. Ele é órfão, como à senhora sabe, devido ao falecimento prematuro de Lord John, há dez anos. Acredito que a mãe dele, a infeliz esposa de Lord John, expirou pouco depois. O duque vem sendo criado pela irmã da mãe e pelo avô materno, que também morreu há cerca de um ano, acho. Morte terrível, pelo que eu soube. Caiu morto no púlpito. Um vigário, como à senhora sabe.”
Harry começava a achar que era única pessoa naquela sala, com a possível exceção de Evers, que ainda tinha algum senso de realidade. “O que me diz dessa tia?” interpelou, tentando direcionar a conversa de volta ao ponto que interessava. “A tia se recusa a deixar que o menino venha?”
“Não precisamente, my lord. O menino se recusa a vir sem a tia. Muito dedicado a ela. Realmente é tocante ver, hoje em dia e naquela idade, um menino tão afeiçoado à sua…”
“Para o inferno, Hebert”, trovejou Harry. “Por que o senhor não disse à maldita tia que ela também podia vir com o menino?”
Sir Arthur pareceu surpreso. “Eu disse, my lord. Na verdade, insisti com ela. Estendi a ela o convite para viver no Solar Potter por quanto tempo quisesse. Pelo resto da vida, se o desejasse.” O administrador interrompeu o que ia dizendo e, inesperadamente, começou a tirar sua capa. “Está quente aqui, Sr. Evers? Acho que o fogo está forte demais.”
“E então?” Harry tinha parado de andar de um lado para o outro e estava de pé, com um cotovelo sobre a cornija. Ele não achava que o fogo estivesse nem um pouco quente demais. “Bem, o que a mulher respondeu?”
“Oh, ela recusou com muita determinação o meu convite, my lord. Não quis nem ouvir falar do assunto. E, naturalmente, o menino não sai de lá sem ela.” Hebert estremeceu. “E, portanto, aqui estou eu.”
“Recusou o seu convite?” Harry realmente tinha vontade de lançar o punho contra alguma coisa. Evers tinha acabado naquele momento de colocar uma tela de proteção contra o fogo entre Hebert e a lareira, de forma que ele descontou a sua raiva nela, jogando no chão a delicada tela pintada à mão com um golpe forte.
Arabella soltou um gritinho, assustada, e Hebert parecia atordoado. Apenas Evers se manteve calmo; pegou a tela, endireitou-a e deu a seu patrão um olhar rápido de desaprovação.
“A tia é uma idiota?”, interpelou Harry.
“Oh, não, my lord, muito pelo contrário.” Sir Arthur tinha começado a suar em bicas, ou devido ao calor do fogo ou ao nervosismo diante do comportamento de Harry. Talvez pensasse que um daqueles grandes punhos poderia ir na direção dele em seguida. De qualquer forma, reagiu rapidamente, o rosto largo e brilhante de suor: “Não, my lord, não é uma idiota. É uma liberal.”*
Se o corpulento administrador tivesse cuspido no assoalho, Harry não teria ficado mais atônico. “Uma o quê?”, perguntou ele em voz baixa.
“Uma liberal.”
Sir Arthur sorriu agradecido para Evers, que tinha dado um passo para a frente e estava tirando a capa e o chapéu do monte molhado no qual o administrador os tinha empilhado sobre a chaise longue. “Muito antimonarquista, my lord. Não quer ter nada a ver com a aristocracia. Diz que os nobres são os responsáveis pela falta de reformas que ajudariam o povo. Diz que são os conservadores que mantêm as massas na pobreza abjeta, de forma que 1% da população possa desfrutar de 99% da riqueza. Diz que os donos de terra como o senhor não são nada além de imprestáveis e desocupados, que não pensam em mais nada além de caçar e se envolver com prostitutas…” Interrompendo-se, constrangido, Sir Arthur olhou rapidamente para a viscondessa. “Minhas desculpas, Lady Ashbury.
Arabella levantou uma única sobrancelha e não disse nada.
Harry escutava Sir Arthur sem acreditar no que ouvia. Aquilo não podia estar acontecendo. Simplesmente não podia estar acontecendo. O herdeiro do duque de Potter fora encontrado, mas o menino se recusava a vir porque a sua tia lunática era uma liberal? Como isso era possível?
“Não entendo”, disse Harry, lutando para manter a calma. Temia se descontrolar novamente. Não havia sobrado nada para golpear, a não ser o rosto sorridente e gordo de Sir Arthur; Harry realmente gostava do velho falastrão e não queria machucá-lo. Pelo menos não muito. “O senhor está dizendo que essa mulher recusou um convite para viver em uma das maiores casas da Inglaterra devido às suas convicções políticas?”
“Exatamente, exatamente”, disse Sir Arthur, com uma risadinha. “E o menino não vem sem ela.”
“E essa…” Harry engoliu seco. “Essa mulher. Ela não tem um marido a quem se possa apelar em nome da racionalidade?”
“Oh, não, my lord. A srta. Granger não é casada.”
“Srta. Granger?”
“Sim, my lord. Hermione Granger. Vivem em um chalé perto da casa paroquial desde que o pai morreu - ela e o menino. Acredito que sejam sustentados por uma pequena renda deixada pela mãe dela. Deus sabe que o vigário não deixou nada para eles.”
“Uma solteirona”, sibilou Harry entre dentes. “Contrariado e frustrado por uma tia solteirona com inclinações liberais. Que diabos, homem!” Harry estava a ponto de arrancar o próprio cabelo, mas, em vez disso, berrou com o seu administrador, alto o suficiente para assustar até o imperturbável Evers.
“O senhor não conseguiu convencer uma tia solteira que sobrevive com uma ninharia de que o melhor para o seu amado sobrinho seria deixá-lo viver em esplendor em um solar em Yorkshire?”, interpelou-o Harry, sem acreditar. “O senhor é um tolo, homem? O que poderia ter sido mais simples? O senhor não sabe nada sobre as mulheres? O senhor não poderia suborná-la? Cativá-la? Conquistá-la com elogios? Não há nada neste mundo que a maldita mulher queira e possamos lhe dar em troca do menino?”
Sir Arthur tinha se reclinado o máximo possível na chaise longue, mas mesmo assim não conseguia escapar do olhar ameaçador que o queimava mais do que qualquer fogo. Pondo um dedo gordo debaixo da gravata, puxou-a, ofegante.
“Mas, my lord, eu já lhe disse! Ela não quis conversa comigo! Expulsou-me da casa, foi o que fez. Até jogou uma panela em mim!” Sir Arthur estava à beira das lágrimas. “E o menino, my lord! Não tem nada de educado, é um desordeiro. Ele pôs furtivamente uma horrível doninha no meu bolso e uma rebarba de metal debaixo do arreio de um dos cavalos da carruagem. Cheguei a pensar que nunca voltaria inteiro para Lady Herbert!”
Abruptamente, Harry se afastou do advogado, os ombros largos caídos. Bem, era óbvio o que precisava ser feito naquele momento. O erro havia sido enviar um agente para uma tarefa que poderia ser realizada mais adequadamente por ele mesmo. Bem que o seu pai sempre dizia que era, invariavelmente, mais simples fazer um trabalho você mesmo do que explicar a um assalariado como ele deve ser feito! Era um exemplo clássico disso. O que sabia Sir Arthur sobre mulheres, apesar das suas cinco filhas? Ele tinha cortejado e se casado com a primeira mulher que o poderia aceitar e Virginia Herbert, apesar de ser uma boa criatura, sem dúvida não representava nada parecido com um desafio para aquele cavalheiro desajeitado.
Não, só havia uma coisa a ser feita. E ele mesmo teria de viajar até Aberdeen e pegar o menino, assim como a maldita tia.
Uma liberal! Deus o livre das mulheres com excesso de instrução! O que tinha aquele vigário na cabeça ao deixar a filha ler jornais? Ela não deveria nem saber a diferença entre liberais e conservadores. Não era de surpreender que fosse uma solteirona e estivesse condenada a continuar assim, se o que ela havia despejado nos ouvidos de Herbert era um exemplo da sua técnica de conversação.
Evers limpou a garganta, já na porta da sala. “Com licença, my lord, se o senhor não precisa mais de mim…”
Harry, que estava de pé diante do fogo, com as mãos atrás das costas, virou-se repentinamente.
“Não, ainda preciso de você, Evers. Diga a meu valete que vamos partir para a Escócia imediatamente. Preciso de camisas suficientes para uma estada de não menos que três dias. Mande Robert trazer a carruagem leve. Parto tão logo às malas estejam prontas.”
Arabella, que estava à mesa de trabalho, baixou a pena com que escrevia. “Harry, você perdeu o juízo? Não pode estar pensando em ir ver essa mulher horrível.”
“Esta é exatamente a minha intenção”, declarou Harry. “Por quê? Você acha que não tenho os poderes de persuasão necessários? Uma solteirona escocesa liberal está acima das minhas capacidades?”
Lady Ashbury riu. O riso dela, Harry já havia notado, era um som frio e tilintante como o de uma sineta, sem ressonância e muito cansativo. “Oh, não, my lord. Nós todos sabemos quão persuasivo o senhor pode ser quando põe alguma coisa na cabeça.” O olhar da viscondessa passou rapidamente por ele e Harry não deixou de notar os belos olhos se abrirem em sinal de apreciação ao se fixarem sobre a sutil protuberância na frente das calças dele. “Mas você deve estar desesperado, querido, se vai até a Escócia com um tempo como este. Qual é a pressa? Sabemos onde o abominável menino está e obviamente ele não vai a parte alguma.”
“Quero resolver essa questão”, disse Harry, virando-se novamente para o fogo. “O meu pai está morto há quase um ano e Potter vem definhando sem um duque todo esse tempo. Já é tempo mais que suficiente, na minha opinião.”
Arabella riu novamente. “E desde quando você se importa com Potter? Realmente, Sir Arthur, o senhor é uma má influência sobre Harry. Quando a gente menos esperar, ele vai querer inspecionar as campinas das ovelhas!”
Sir Arthur parecia horrorizado com a proposta dessa viagem de Harry à Escócia. “Eu lhe imploro, my lord, deixe isso para lá! Espero um pouco. Talvez dentro de um ou dois meses, quando tiverem uma chance de se acostumar com a idéia, eles apareçam. O senhor sabe, a srta. Granger estava absolutamente convencida da total indiferença do seu pai para com o menino e ficou surpresa ao descobrir que o duque não o havia cortado do testamento…”
“Eu não tenho paciência para esperar um mês, Sir Arthur”, respondeu Harry. “Vou partir hoje e aposto que conseguirei os dois - o menino e a tia solteirona - abrigados em segurança aqui em Potter dentro de uma quinzena.”
“Se você está planejando fazer alguma aposta, é melhor acordar o seu colega, o Sr. Cartwright”, observou secamente Arabella. “Ele está dormindo na biblioteca, se recuperando do jogo de sinuca de ontem à noite. Você o leva com você, Harry? Você sabe o quanto ele gosta de se insinuar com uma solteirona escocesa.”
“My lord, realmente tenho de implorar que o senhor reconsidere.” Tão agitado estava Sir Arthur com os planos de seu patrão que se levantou da chaise longue e foi para o lado de Harry. “Temo que o senhor não esteja a par de quão volátil é o humor dessa mulher. Ela despreza resolutamente toda a aristocracia e se recusa de todo a…”
Harry riu e pousou uma mão pesada no ombro do cavalheiro. “Herbert, meu velho, vou lhe contar uma coisa sobre as mulheres. Elas são todas iguais.” O olhar rápido que lançou à viscondessa era de zombaria. “Todas elas querem alguma coisa. O que temos de descobrir é o que a srta. Granger quer e lhe dar isso em troca do seu sobrinho. É muito simples, na verdade.”
Sir Arthur não parecia satisfeito. “O problema, my lord, é que acredito que o que a srta. Granger quer é…”
“Sim, Herbert?”
“A sua cabeça, Lord Harry. Espetada em uma vara.”
* Simpatizante do Partido Liberal, que defendia redução do poder da Coroa em favor do Parlamento e reformas sociais
___________________
Obrigada pelos comentários de Márcio Black e Danielle Granger Potter .
Jessy_Potter, eu realmente amei a capa =]
Espero que gostem do capítulo.
Comentem!
Jeh
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