A caverna, o lago e o medalhão

A caverna, o lago e o medalhão



- Eles traziam as crianças pra cá?


Harry olhava a paisagem ao seu redor. Agora que seus olhos haviam se acostumado à escuridão, ele podia ver um pouco do lugar onde se encontrava. Estavam parados sobre uma rocha, um penhasco árido e sombrio se erguia às suas costas, e abaixo de seus pés a água do mar espumava e se revolvia contra as pedras.


- Não era bem para cá. – explicou Dumbledore – Há uma pequena aldeia perto daqui. Acredito que traziam os órfãos para apanhar um pouco de ar fresco e ver as ondas. – disse ele – Não, somente Tom Riddle e as duas infelizes crianças que ele decidiu aterrorizar visitaram este lugar. Mas o destino final de Tom, e o nosso também, fica um pouco mais adiante. Vamos.


Dumbledore indicou a Harry a borda da rocha, onde nichos profundos serviam como apoios para mãos e pés, e davam acesso às pedras escorregadias, mais ao nível do mar. Era uma descida traiçoeira, e a mão ferida do diretor dificultava o avanço dos dois.


- Vê ali, Harry? – perguntou Dumbledore, apontando uma fissura no penhasco, onde a água redemoinhava; Harry assentiu – Ali é o nosso destino.


Eles desceram mais um pouco, e então o diretor voltou-se novamente para Harry.


- Você se importa de molhar-se um pouco? – perguntou ele, e Harry fez que não com a cabeça – Então guarde sua Capa de Invisibilidade, não irá precisar dela. Vamos dar um mergulho.


E então, com uma agilidade que Harry jamais lhe teria atribuído, Dumbledore escorregou pela pedra e mergulhou na água escura, começando a nadar rumo à fenda no penhasco. Harry enfiou a Capa de Invisibilidade no bolso do moletom e acompanhou-o. A água estava gelada, e as roupas pesavam, puxando-o para baixo. Seus pulmões ardiam a cada sorvo de ar frio e salgado, enquanto ele nadava seguindo a luz bruxuleante da varinha de Dumbledore, que a levava presa entre os dentes.


A fenda logo se alargou, embora não devesse ter mais do que um metro e meio entre uma parede e outra, formando um túnel escuro. Um pouco mais à frente, o túnel fazia uma curva à esquerda, e Harry viu que entrava profundamente na rocha, enquanto continuava a nadar logo atrás do diretor. Então ele o viu sair da água mais adiante, as roupas escuras por causa da água, a longa cabeleira cinzenta ensopada. Quando chegou ao mesmo ponto, Harry se deparou com degraus que conduziam a uma ampla caverna. Subiu a escada, tremendo no ar enregelante, as vestes ainda pesando por causa da água.


Dumbledore estava de pé, no meio da caverna, e girava, lentamente, examinando com atenção as paredes e o teto.


- É, é aqui o lugar. – disse ele.


- Como pode saber? – perguntou Harry, intrigado com a certeza na voz do diretor.


- Existe magia no ar, é possível sentir. – disse Dumbledore, simplesmente – Isto é apenas o saguão de entrada, ainda precisamos entrar na câmara principal. Mas primeiro...


Dumbledore apontou a varinha para Harry, que sentiu um calor percorrendo todo seu corpo. Suas roupas ficaram imediatamente secas e quentes, como se tivessem sido penduradas diante do fogo.


- Obrigado. – agradeceu Harry, e Dumbledore apenas lhe sorriu antes de voltar a examinar a caverna.


O diretor se aproximou da parede da caverna, tocando-a com os dedos murchos da mão ferida, murmurando palavras que Harry não conseguia compreender. Ele andou ao redor da caverna, tateando as paredes, tocando a maior área da rocha áspera que pôde, até que parou, com a mão espalmada contra um ponto da parede.


- Aqui. A entrada está aqui.


Dumbledore se afastou, e  apontou a varinha para a parede rochosa. Por um instante, apareceu ali o contorno de um arco, brilhante, como se houvesse uma forte luz por trás da fresta, mas antes que Harry pudesse pensar em dizer algo, o contorno desapareceu e a rocha voltou a ser sólida como antes. O diretor permaneceu em silêncio, fitando a parede como se esperasse ler algo na rocha, e Harry também se calou, para não atrapalhar a concentração do bruxo. Depois de algum tempo, o diretor então disse baixinho.


- Ah, mas que grosseiro!


- O que foi, Professor? – perguntou Harry.


- Parece-me – disse Dumbledore, enfiando a mão boa nas vestes e tirando uma pequena faquinha de prata, semelhante à que Harry utilizava nas aulas de Poções –, que precisamos pagar para passar.


- Pagar? – ecoou Harry – O senhor tem que dar algo à porta?


- Sim. – confirmou o diretor – Sangue, se não estiver enganado.


- Sangue?


- Por isso eu disse que era grosseiro. – disse Dumbledore – A idéia, como você deve ter compreendido, é que o inimigo deve se enfraquecer para entrar. Mais uma vez, Voldemort demonstra não compreender que há coisas muito piores do que a dor física. – continuou o diretor, amenamente, jogando para cima a manga das vestes e expondo o antebraço da mão machucada.


- Professor! – exclamou Harry, mas não a tempo. Houve um lampejo prateado, e um esguicho vermelho escuro; a rocha diante deles pontilhou-se de gotas escuras e brilhantes, e Dumbledore fitou Harry com um sorriso.


- O seu sangue vale muito mais do que o meu, Harry. – disse ele, tocando o corte com a varinha, e fechando-o imediatamente, como Snape fizera com o braço de Malfoy – Ah, veja, parece que deu certo, não?


O contorno brilhante de um arco voltou a aparecer na parede, e desta vez não se apagou. A rocha suja de sangue circunscrita pelo arco desapareceu, deixando uma abertura para a mais absoluta escuridão.


- Eu vou na frente, acho. – disse Dumbledore, e então cruzou o arco, com Harry em seus calcanhares, acendendo rapidamente a varinha ao entrar.


Eles depararam-se com uma visão extraordinária; estavam à beira de um lago escuro, tão vasto que Harry não conseguia enxergar suas margens distantes, em uma caverna cujo teto era tão alto que não era possível distingui-lo. Uma luz verde brilhava ao longe, no centro do lago, talvez; refletia-se na água imóvel abaixo, e seu brilho, junto com a luz das duas varinhas, era a única coisa que rompia a escuridão, que parecia a Harry mais densa do que a escuridão normal.


- Por aqui, Harry. – disse Dumbledore, virando-se para a direita – Fique junto de mim, e não encoste na água.


Ele seguiu margeando o lago, com Harry logo atrás de si, os passos de ambos ecoando na estreita margem de pedra. Caminharam uma boa distância, mas a paisagem não se alterava; a um lado a parede escura e rochosa, do outro, a vastidão da superfície espelhada do lago, no meio da qual havia aquela luz misteriosa.


- Professor? – chamou Harry, por fim – O senhor acha que é a Horcrux no meio do lago?


- Ah, sim, Harry. – respondeu Dumbledore – Com certeza, sim. A questão é... como chegaremos a ela?


Harry não disse nada. Em sua cabeça cruzavam imagens de monstros marinhos, serpentes gigantescas e outras criaturas apavorantes emergindo das águas escuras do lago, e ele sentiu um arrepio descer-lhe pela espinha. Dumbledore voltara a analisar a parede da caverna, passando a mão não na rocha, mas no ar, como se esperasse esbarrar em alguma coisa invisível...


- Ahá! – exclamou ele, então, segundos depois. Sua mão agarrou no ar algo que Harry não podia ver. Mantendo a mão fechada no ar, Dumbledore ergueu a varinha com a outra e deu uma batidinha no próprio punho. Imediatamente apareceu no ar uma corrente grossa de metal esverdeado, que se alongava da mão do diretor até o fundo do lago. Dumbledore deu uma nova batida com a varinha na corrente, e ela começou a deslizar por dentro de sua mão ainda fechada e a se enroscar no chão, com um ruído metálico que ecoou por toda a caverna, e foi puxando algo das profundezas do lago escuro. Harry ofegou quando a proa de um barquinho veio à tona, tão verde quanto a corrente,e  flutuou, quase sem ondulações na água até o ponto onde ele e o diretor estavam.


- Como o senhor sabia que o barco estava aqui? – perguntou ele, espantado.


- A magia sempre deixa vestígios. – respondeu Dumbledore – Por vezes vestígios bastante característicos.


- O barco é... seguro? – perguntou Harry, fitando a embarcação com ar de dúvida.


- Ah, creio que sim. – respondeu Dumbledore – Voldemort precisava criar um meio de atravessar o lago em segurança, caso desejasse visitar ou remover sua Horcrux.


Harry examinou o barco mais uma vez. Parecia decididamente pequeno para suportar a ele e a Dumbledore juntos.


- Não parece ter sido construído para suportar o peso duas pessoas... será que nos agüentará?


Dumbledore riu.


- Não creio que Voldemort tenha se preocupado com o peso, Harry, mas com o poder mágico do bruxo que utilizasse o barco. – disse ele, como quem explica uma questão em sala de aula – Imagino que tenha lançado um feitiço sobre o barco para que apenas um bruxo por vez possa usá-lo.


- Mas então...? – começou Harry, confuso.


- Você ainda é menor de idade, Harry, e, portanto, não qualificado. Creio que me compreenda. – Harry assentiu – Desta vez você embarca primeiro, com cuidado para não tocar na água.


Dumbledore se afastou, e Harry entrou cuidadosamente no barco. O professor então embarcou também, enrolando a corrente no fundo da embarcação, que imediatamente se pôs em movimento.


Muito longe dali, no escritório da sombria mansão que ocupava, Voldemort dava ordens a uma relutante Bellatrix Lestrange, depois de ter recebido a mensagem enviada de Hogwarts pelo jovem Malfoy.


- Você fica, Bellatrix. – disse Voldemort, em tom conclusivo.


- Mas, milorde... – tentou Bellatrix.


- Não posso arriscar perdê-la em Hogwarts. – disse Voldemort, em tom neutro.


- Mas Annabella irá. – argumentou Bellatrix, embora não pudesse evitar sentir-se orgulhosa pelo que seu mestre dissera – E Sirius...


- Com certeza estará lá. – Voldemort terminou a frase por ela – E por isso mesmo é bom que ela vá. Desejo testar as reações dela diante de Black. Além disso – ele continuou –, ela o conhece melhor do que ninguém, apesar de não lembrar-se dele, conhece sua forma de duelar, está em seu subconsciente. Ela manterá Black ocupado demais para que ele impeça nossos planos. Tem ordens específicas de segurá-lo o máximo que puder, incapacitá-lo, ou, se possível, matá-lo.


- Não! – disse Bellatrix, a voz mais alta e aguda do que desejara – Sirius é meu.


- Eu decido isto, Bellatrix. – disse Voldemort, friamente.


- Perdão, milorde, eu... – gaguejou a mulher.


- Não discutirei mais este assunto, Bellatrix, já está decidido. – Voldemort a interrompeu – Annabella vai. Você fica. E quando ela tiver subjugado Black, irá revelar-se para ele. – disse ele, com uma expressão de quem antevia algo muito desejado – Black morrerá pelas mãos dela, sabendo que a perdeu para mim, da mesma forma que perdeu Regulus.


- Isso o destruirá, mesmo que ela não o mate. – comentou Bellatrix.


- É exatamente o que desejamos, não é? – disse Voldemort, com um breve sorriso maldoso no rosto ofídico.


Harry e Dumbledore ficaram espremidos no espaço apertado do barco; impossibilitado de sentar-se de forma confortável, Harry agachou-se, enquanto Dumbledore manteve-se de pé, olhos fixos na luz esverdeada no centro do lago. O único som que se ouvia era o barulho da proa cortando a água imóvel; o barco se movia sem ajuda, como se uma corda invisível o puxasse na direção da luz, e logo já não era mais possível divisar as paredes da caverna. Harry então baixou o olhar, vendo o reflexo dourado da luz de sua varinha cintilar na água escura; ele fitava as pequenas e curtas ondas que o barco produzia na superfície vidrada quando a viu, branca como mármore, flutuando a centímetros da superfície.


- Professor! – exclamou ele, e sua voz assustada ecoou caverna acima.


- Harry?


- Acho... acho que vi uma mão na água. – disse Harry, de olhos arregalados, ainda encarando a água escura – Uma mão humana!


- Sim, tenho certeza de que viu. – respondeu Dumbledore, como se aquilo não fosse nada de mais.


Harry fitou o professor por um instante, e então voltou a olhar para a água. Seu coração foi parar na garganta quando a luz da varinha iluminou um corpo de mulher, centímetros abaixo da superfície; seus olhos abertos toldados como que por uma névoa, e seus cabelos longos e suas vestes girando em torno do corpo esguio.


- Tem cadáveres aí dentro! – disse Harry, ao ver mais um corpo passando ao lado do barco.


- Tem. – disse Dumbledore, calmamente – Mas por ora não precisamos nos preocupar com eles.


- Por ora? – ecoou Harry, despregando o olhar da água para fixá-lo em Dumbledore.


- Não enquanto estiverem apenas boiando tranquilamente abaixo de nós, o que não creio que continuarão a fazer quando apanharmos a Horcrux.


Os olhos de Harry se arregalaram ante a idéia de todos os cadáveres deixando seus leitos no fundo do lago, e Dumbledore, percebendo a expressão no rosto do garoto, voltou a falar.


- Mas, como tantas outras criaturas que habitam o frio e a escuridão, eles temem o calor e a luz que podemos evocar em nosso auxílio, caso se torne necessário. Fogo, Harry. – esclareceu ele, em resposta a expressão aturdida de Harry.


- Ah, sim, claro. Fogo. – concordou o garoto, apressadamente.


- O medo paralisa, Harry, impede de pensar. Não deixe que ele tome conta de você. – recomendou Dumbledore. Harry assentiu, e então se virou para olhar a luz verde, destino do barco.


Ele agora não podia fingir que não estava apavorado. O grande lago negro, coalhado de cadáveres, com a luz misteriosa em seu centro... parecia fazer séculos que ele havia encontrado a professora Trelawney, que dera a Hermione, Sophie e Rony a Felix Felicis... desejou ter se despedido melhor dos amigos e da – ele já a considerava assim – prima, e sequer havia visto Gina antes de partir... Seu coração se apertou ao pensar neles, como estariam, e o que estaria acontecendo em Hogwarts naquele momento?


Na escola, Sophie e Gina acabavam de colocar os quatro membros da Ordem de guarda no castelo naquela noite a par da situação. Elas haviam encontrado com Sirius, e, utilizando patronos, os três convocaram Tonks, Lupin e Gui para uma espécie de reunião de emergência, no saguão principal.


- Não sabemos o que pretendem fazer – disse Sophie –, mas não vão demorar a chegar.


- Sabem quantos são? – perguntou Gui.


- Não. – respondeu Gina.


- Não são muitos. – disse Sophie, o olhar levemente desfocado – Não esperam encontrar resistência.


- Bem, a Sala Precisa é o foco. – disse Sirius – Remo e eu vamos para lá. Gui e Tonks ficam aqui em baixo, de olho em qualquer movimentação. Avisem Minerva. E Snape.


- Não! Snape, não! – protestou Gina.


- Não é hora pra desconfianças bobas, Gina. – disse Gui – Snape é um membro da Ordem.


- E vocês duas, para a torre da Grifinória. – disse Lupin – Iremos mandar Rony e os outros para lá.


- Mas...


- Não discuta, Gina, faça o que Remo está mandando. – mandou Gui.


Gina olhou para Sophie, em busca de apoio, e Sophie apenas fitou-a com ar tranqüilo.


"Não discuta, Gina." – a ruivinha ouviu a amiga dizer em sua cabeça.


"Mas, Soph..." – ela tentou protestar.


"Não se preocupe. Nós não vamos a lugar algum."


Os quatro bruxos mais velhos prepararam-se para deixar o saguão, e então Sophie chamou Sirius. Eles se aproximaram um do outro, e a garota colocou-se diante do pai de forma que Gina não pudesse ver o que ela iria fazer.


- Nini... sei o que está pensando. – disse Sirius – Vá para a torre e fique lá. Eu vou estar bem.


Sophie concordou com a cabeça, relutante, a preocupação estampada no rosto. Ela então enfiou a mão no bolso do casaco, retirando algo que colocou na mão de Sirius, fechando os dedos dele sobre o pequeno objeto.


- O que...?


- Por favor, me ouve. – pediu Sophie, antes que ele terminasse de formular a pergunta – Preciso que você prometa que assim que estiver fora do alcance de visão da Gina vai beber essa poção.


Sirius olhou para o frasco de poção, e então a fitou por um instante, sem compreender o segredo em relação a Gina, mas vendo a expressão do rosto dela e pelo tom de urgência de sua voz, apenas assentiu. Então, olhando-a no fundo dos olhos, fez um carinho no rosto da garota, que estremeceu.


- Prometi que não a deixaria mais, filha, e irei cumprir minha palavra. – disse ele – Agora preciso que você também me prometa uma coisa. Prometa que irá para a torre, e que ficará lá.


Sophie não respondeu de imediato, respirando fundo, sem desviar seu olhar do de Sirius.


"Desculpe por isso, pai." – pensou ela, enquanto cruzava os dedos às costas.


- Eu prometo.


Sirius assentiu mais uma vez, e depois de dar um beijo na testa da garota, deu as costas a ela, subindo rapidamente as escadas atrás de Lupin, que já ia longe. Sophie, então, voltou para perto de Gina.


- O que fazemos agora? – perguntou a ruivinha.


- Vamos para perto da Torre da Astronomia. – respondeu Sophie – E então só nos resta esperar.


Na caverna, depois de mais alguns minutos, durante os quais a luz esverdeada no centro do lago parecia estar aumentando, à medida que o barco avançava, Harry sentiu a pequena embarcação batendo suavemente em alguma coisa e parando de se mover. Ao erguer a varinha, cuja ponta brilhava, constatou que haviam chegado a uma espécie de ilhota de rocha, no meio do lago, onde estava a fonte da luz verde.


- Cuidado para não tocar na água, Harry. – Dumbledore recomendou novamente, quando Harry desembarcou.


A ilha devia ter mais ou menos o tamanho do escritório do diretor em Hogwarts; era um pedaço de rocha plana e escura, onde não havia nada, além da fonte da luz verde, que parecia ainda mais intensa vista de perto. Harry imaginou que fosse algum tipo de lampião, mas logo percebeu que estava enganado. Bem no meio da pequena ilha, havia uma bacia de pedra, muito parecida com a Penseira, apoiada em um pedestal. Ele e Dumbledore se aproximaram da bacia e a examinaram; ela estava cheia de um líquido verde-esmeralda, que emitia uma forte luz fosforescente.


- O que será isso? – perguntou Harry.


- Não sei, Harry. – respondeu Dumbledore, sem tirar os olhos da bacia – Mas provavelmente é algo mais preocupante do que um pagamento de sangue ou cadáveres submersos.


Ele então empurrou para cima a manga do braço direito, esticando os dedos da mão ferida para a superfície do líquido verde.


- Senhor, não... não toque...!


- Calma, Harry. – disse Dumbledore, com um leve ar de riso, a mão ainda a alguns centímetros da poção – Não posso tocar, veja. Só consigo chegar até aqui. Tente.


De olhos arregalados, Harry levou a mão à bacia e tentou tocar a poção. Sua mão parou em uma barreira invisível, mas bastante sólida, a uns três centímetros do líquido verde, que o impedia de se aproximar mais.


- Afaste-se, por favor, Harry. – pediu Dumbledore.


Harry deu um passo atrás, enquanto o diretor erguia a varinha. Dumbledore fez diversos gestos complicados sobre a superfície da poção, murmurando encantamentos que Harry não conseguiu ouvir ou compreender. No entanto, o conteúdo da bacia de pedra não se alterou. Harry permaneceu em silêncio enquanto o professor trabalhava, mas, após algum tempo, Dumbledore guardou a varinha, voltando a fitar atentamente a bacia.


- Com toda a certeza a Horcrux está aí dentro... – disse ele, pensativo – Mas como alcançá-la? A poção não pode ser tocada com a mão, desaparecida, dividida ou aspirada, nem pode ser transfigurada, encantada ou alterada em sua natureza.


Harry o observava, aturdido, sem conseguir dizer palavra. Viu então o diretor, quase distraidamente, erguer novamente a varinha, girá-la, e então apanhar no ar uma taça de cristal que conjurara do nada.


- Só posso concluir que a poção deve ser bebida.


- Quê? – exclamou Harry – Não!


- Penso que sim. Somente bebendo-a posso esvaziar a bacia e ver o que guarda no fundo.


- Mas... mas a poção pode matar o senhor! – argumentou Harry, alarmado.


- Ah, não acredito que isso aconteça. – disse Dumbledore, tranqüilo – Lorde Voldemort não iria desejar matar a pessoa que alcançasse sua ilha.


Harry fitou-o com uma expressão de incredulidade.


- Professor... – começou ele, mas Dumbledore o interrompeu.


- Desculpe, Harry, creio não ter me expressado corretamente. – disse o diretor – Eu devia ter dito que ele não desejaria matar imediatamente a pessoa que alcançasse esta ilha. Iria querer que ela vivesse o suficiente para lhe revelar como conseguiu penetrar tão fundo suas defesas, e o que é mais importante, por que queria tanto esvaziar a bacia. Não esqueça que ele acredita ser o único que sabe sobre suas Horcruxes.


Harry ia falar, mas Dumbledore ergueu a mão pedindo silêncio, e então ele se calou. O diretor voltou a observar a bacia de pedra, de cenho franzido, obviamente refletindo.


- Sem dúvida esta poção deve produzir algum efeito que me impeça de levar a Horcrux. – disse ele, por fim – Deve me paralisar, me fazer esquecer o que vim fazer, me causar tanta dor que me distraia, ou me incapacitar de alguma forma. Assim sendo, Harry, sua tarefa será fazer com que eu não pare de beber, mesmo que tenha que virar a poção na minha boca enquanto eu protesto.


Harry encarou o diretor, incapaz de dizer o que quer que fosse.


- Você lembra da condição que impus, e com a qual você concordou, para trazê-lo?


Harry hesitou, sem desviar seu olhar dos olhos azuis de Dumbledore, esverdeados pela luz da bacia.


- Você jurou obedecer a qualquer ordem que eu lhe desse, não foi? – insistiu o diretor.


- Sim, mas... – começou Harry.


- E eu o preveni, não foi, de que haveria perigo?


- Sim, mas... – tentou o garoto, novamente.


- Muito bem. – disse Dumbledore, em tom conclusivo – Já recebeu minhas ordens.


- Eu... não posso beber a poção em seu lugar? – perguntou Harry, e Dumbledore não conteve um sorriso.


- Você é muito bom, Harry. – disse ele – Mas eu sou muito mais velho, muito mais esperto, e muito menos valioso. Agora, de uma vez por todas, Harry, eu tenho sua palavra de que fará tudo o que puder para que eu não pare de beber?


- Senhor, eu...


- Tenho? – insistiu Dumbledore.


- Mas...


- Sua palavra, Harry.


- Eu... está bem. – rendeu-se o garoto – Mas...


Antes que Harry pudesse concluir seu protesto, Dumbledore mergulhou a taça na poção, e, contra as expectativas de Harry, o cristal afundou na superfície do líquido; quando a taça encheu-se até em cima, Dumbledore levou-a a boca.


- À sua saúde, Harry. – brindou ele, e esvaziou a taça.


Harry observou-o aterrorizado, apertando a borda da bacia de pedra com tanta força que as pontas dos dedos ficaram brancas.


- Professor? – chamou ele, ansioso, quando Dumbledore baixou a taça – Tudo bem?


Dumbledore sacudiu a cabeça, os olhos fechados, e voltou a mergulhar a taça na bacia, encheu-a e bebeu.


Em silêncio, Dumbledore bebeu três taças da poção. Então, ao terminar de beber a quarta taça, ele cambaleou e caiu contra a bacia; seus olhos continuaram fechados, e sua respiração se tornou ofegante.


- Professor? – chamou Harry, assustado – Professor está me ouvindo?
Dumbledore não respondeu. Seu rosto estava contraído, como se dormisse profundamente, mas estivesse tendo um terrível pesadelo.


- Professor?


Dumbledore ofegou, e em seguida falou, em um tom em que Harry jamais o havia escutado falar, um tom de absoluto pavor.


- Não quero... não me force... por favor...


Por um instante, Harry não soube o que fazer. Então pegou a taça que pendia frouxa da mão do diretor.


- O senhor... o senhor não pode parar, Professor. – disse ele, odiando cada palavra que dizia – O senhor tem que continuar bebendo.


- Não quero... não... não...


E sentindo repulsa pelo que estava fazendo, Harry tornou a encher a taça na bacia, e então virou o conteúdo na boca aberta do professor.


- Não, não, não... não posso... não quero... por favor...


- Está tudo bem, Professor, está tudo bem! – disse Harry, as mãos tremendo tanto que teve dificuldade em encher a sexta taça de poção; a bacia estava agora pela metade – Nada disso é real, o senhor está seguro, eu juro... agora beba...


E, obedientemente, Dumbledore bebeu, mas, ao esvaziar a taça, ele caiu de joelhos, soluçando e tremendo descontrolado.


- É minha culpa... – disse ele – Por favor, faça parar... sei que errei... por favor, pare, faça parar...


- Isso fará parar, Professor. – disse Harry, a voz falhando ao virar a sétima taça de poção na boca de Dumbledore – Beba, Professor, beba...


Mais duas taças se seguiram, e a cada uma delas Dumbledore protestava mais alto e mais dolorosamente, encolhendo-se no chão. Harry encheu a décima taça de poção, e sentiu o cristal arranhar o fundo da bacia. Dumbledore gemia e resmungava, arquejando ao seu lado.


- Não, por favor... chega... não posso...


- Falta pouco agora, Professor, beba, falta pouco...


E mais uma vez Dumbledore esvaziou a taça; Harry tornou a se levantar, e quando estava enchendo a taça, o diretor começou a gritar, mais angustiado do que nunca.


- Quero morrer! Por favor, pare com isso, eu quero morrer...


- Esta fará parar, Professor. – ofegou Harry – Beba, já vai passar... já vai passar...


Dumbledore engoliu o conteúdo da taça até a última gota, e então, com um arquejo, rolou de borco no chão.


- Não! – gritou Harry, largando a taça dentro a bacia, sem nem ao menos ver o medalhão dourado dentro dela, e atirando-se no chão ao lado de Dumbledore. Virou o professor de barriga para cima; os óculos dele estavam tortos, a boca aberta e os olhos fechados – Não... NÃO! O senhor disse que não era veneno! Acorde... ACORDE! – dizia ele, sacudindo Dumbledore – Ennervate! – gritou, apontando a varinha para o peito do diretor. Os olhos de Dumbledore se entreabriram, e o coração de Harry saltou no peito.


- Senhor...
- Água... – pediu Dumbledore, rouco.


- Água. – ofegou Harry – Sim.


Ele se ergueu, e sem sequer olhar para dentro da bacia, apanhou a taça que havia largado ali.


- Aguamenti. – ordenou, apontando a varinha para a taça, que se encheu de água cristalina. No entanto, quando ele levou a taça aos lábios do diretor, ela estava vazia.


- Mas eu pus... Aguamenti! – ele tornou a ordenar, e a taça se encheu outra vez, mas tão logo a aproximou da boca de Dumbledore, a água desapareceu.


Harry olhou para Dumbledore, que rolara para um lado e respirava profunda e ruidosamente, parecendo agonizar. O garoto desesperou-se.


- Aguamenti! AGUAMENTI!


A taça se enchia, e tornava a esvaziar. A respiração de Dumbledore ia enfraquecendo, e foi então que Harry percebeu, desesperado, que a única forma de obter água, como Voldemort planejara, era o lago.


Ele se atirou para a margem rochosa, e mergulhou a taça no lago, erguendo-a totalmente cheia, e desta vez, a água não desapareceu.


- Senhor... aqui! – disse ele, precipitando-se para Dumbledore, e virando, desajeitado, a água em seu rosto.


Foi o melhor que pôde fazer, pois, um segundo depois, sentiu-se sendo puxado de volta para o lago. Algo gelado prendia-se firmemente em seu pulso, e foi com terror que ele constatou que se tratava de uma mão branca e escorregadia. Harry olhou ao redor; a superfície do lago não era mais um espelho, revolvia-se, e em todas as direções que Harry olhasse, cabeças e mãos brancas emergiam da água escura, homens, mulheres e crianças moviam-se em direção à rocha, um exército de mortos-vivos ressurgindo do fundo do lago. Harry apontou a varinha para o Inferius que segurava seu braço, o morto-vivo soltou-o e caiu na água, mas outros tantos já estavam subindo na rocha, seus olhos esbranquiçados e cegos fixos neles, seus trapos encharcados arrastando no chão, como em um filme de terror trouxa.


- Petrificus totalus! – Harry urrou, recuando e varrendo o ar com a varinha; seis ou sete Inferi tombaram, mas outros tantos continuavam vindo em sua direção – Impedimenta! Incarcerous!


Alguns tropeçaram, uns dois ou três foram imobilizados com cordas, mas os que vinham atrás simplesmente pulavam por cima, ou pisavam nos corpos caídos, continuando a avançar, as mãos enrugadas estendidas para Harry.


“O medo paralisa, Harry, impede de pensar. Não deixe que ele tome conta de você.”


Harry fechou os olhos por um instante, talvez não vê-los o ajudasse a pensar.


“O medo faz parar. O medo faz parar.” – pensava ele – “O que eles temem?”


E então a resposta lhe ocorreu como um raio, no momento em que uma mão fria fechava-se em seu punho.


“... eles temem o calor e a luz que podemos evocar em nosso auxílio...” – ele se lembrou de Dumbledore dizendo – “Fogo, Harry.”


- INCENDIO! – gritou ele, brandindo a varinha, e uma língua de fogo irrompeu da ponta, interpondo-se entre ele e os Inferi, que começaram a recuar.


Harry ergueu a varinha acima de sua cabeça e girou-a, e uma espécie de anel de fogo se formou ao redor dele e de Dumbledore, um círculo de calor e proteção do qual os Inferi não ousavam se aproximar. Ele olhou para o diretor; Dumbledore parecia ainda extremamente fraco e estava tão pálido quando os mortos-vivos que voltavam para a água escura, fugindo do fogo, mas tinha os olhos bem abertos e cheios de determinação. Harry o ajudou a levantar-se, e então o diretor olhou para o fundo da bacia de pedra, colocou a mão lá dentro e apanhou o medalhão, guardando-o nas vestes. Os dois então, com dificuldade, dirigiram-se até o barco, cambaleando, e embarcaram. Tão logo estavam “acomodados”, espremidos e seguros a bordo, o barco começou a se deslocar pela água escura, protegido pelo anel de fogo conjurado por Harry; embaixo, os Inferi enxameavam, mas não ousavam emergir da proteção do lago.


- Muito bem, Harry. Você foi muito bem. – murmurou Dumbledore, com voz fraca.


O barco deslizou pelo lago lentamente, mas finalmente tocou a margem, com um leve baque. Harry saltou, voltando-se ligeiro para ajudar Dumbledore a desembarcar. O anel de fogo desapareceu, mas os Inferi não voltaram a emergir da água. O barquinho, tão logo eles desembarcaram, afundou no lago mais uma vez, puxando consigo a corrente metálica que retiniu alto.


- Venha, Professor. Vamos sair daqui. – disse Harry, preocupado com a extrema palidez e o ar de exaustão do professor – Aqui, apóie-se em mim, senhor...


E puxando o braço bom de Dumbledore por cima dos ombros, Harry guiou o diretor pela margem do lago, carregando boa parte de seu peso, rumo à passagem que os levaria para fora da caverna.


- A proteção... foi afinal... bem engendrada... – disse Dumbledore, baixinho – Uma pessoa sozinha não teria conseguido... você se portou muito bem, Harry, muito bem...


- Não fale agora, senhor... – disse Harry, nervoso – Poupe suas energias, logo estaremos fora daqui...


- O arco deve ter se fechado... minha faca...


- Não é preciso, eu me cortei na pedra. – disse Harry – Só me diga onde.


- Aqui... – apontou o diretor.


Harry esfregou o braço arranhado na pedra; uma vez recebido o tributo de sangue, o arco reabriu-se imediatamente. Eles atravessaram a caverna externa, e Harry ajudou Dumbledore a entrar na água gelada que enchia a fenda no penhasco.


- Não se preocupe, senhor, estamos quase chegando. – dizia ele, sem parar, incapaz de esconder seu nervosismo – Não se preocupe...


- Não estou preocupado, Harry. – respondeu Dumbledore – Eu estou com você.


E em Hogwarts, Sophie apoiou-se em uma parede, ofegante. Sentira o perigo, sentira a morte se aproximando de Harry, e não pudera fazer nada para tentar ajudá-lo. No entanto, sentia agora que o perigo já havia passado, e que Harry estava em segurança, ela podia voltar a tomar parte da batalha que estava acontecendo.


- Graças a Merlin. – disse ela, para si mesma, e então falou alto – Dumbledore está a caminho!

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