CAPÍTULO DOIS



CAPÍTULO DOIS

- Você teve mesmo que bater nela?
- Tive! - Gina olhou os olhos da mulher, que rolavam para trás e para a frente.
- Ela vai transformar a minha vida em um inferno! - Leonardo guardou o scanner e deu um suspiro.
- Meu rosto, meu rosto! - enquanto recobrava a consciência lentamente, Cho tentava se levantar, apalpando o queixo. - Ficou roxo? Dá para perceber? Tenho uma sessão de fotos para daqui a uma hora!
- Azar o seu! - Gina sacudiu os ombros.
Trocando de expressão como uma gazela enlouquecida, Cho soprou por entre os dentes:
- Vou acabar com você, sua piranha! Você jamais vai arrumar trabalho, nem no cinema, nem na televisão, nem em disco! E pode ter certeza de que não vai nem conseguir emprego. Sabe quem eu sou?
Estar nua naquelas circunstâncias só serviu para afiar o espírito de Gina, que respondeu:
- Acha que eu me importo de saber quem você é?
- O que está havendo? Droga Weasley, ele está só tentando arrumar a sua... Oh! - correndo com copos nas duas mãos, Luna parou na mesma hora. - Cho!
- Você! - Obviamente, o estoque de veneno de Cho não diminuiu com o soco. Pulando em cima de Luna, ela fez os copos se quebrarem e o chá voar pela sala. Em segundos, as duas mulheres estavam atracadas no chão, puxando os cabelos uma da outra.
- Ai, pelo amor de Deus! - se estivesse com a arma de atordoar, Gina a teria usado nas duas. - Parem com isso! Droga, Leonardo, me dê uma ajuda para separá-las, antes que se matem! - Gina mergulhou sobre elas, puxando braços e pernas. Aproveitou a chance e deu uma cotovelada extra nas costelas de Cho, só para se alegrar. - Vou colocar você em uma jaula, juro por Deus! - Por falta de outro recurso, ela se sentou sobre as costas de Cho, apanhou a calça jeans e pegou o distintivo no bolso. - Dê uma olhada com atenção, sua idiota! Eu sou uma policial! Até agora, você já tem duas acusações de agressão. Quer uma terceira?
- Tira esse rabo pelado e magro de cima de mim!
Não foi a ordem, mas a relativa calma com que ela foi dada que fez Gina sair de cima dela. Cho se levantou, limpou as mãos meticulosamente nas pernas de seu terninho colante, fungou, atirou a luxuriante cabeleira negra para trás e então fixou os gélidos olhos de mel com cílios imensos sobre o figurinista.
- Então, uma de cada vez já não serve mais para você, Leonardo! Você é escória! - Com o queixo esculpido empinado para o ar, lançou um olhar de escárnio para Gina e depois para Luna. - Seu apetite pode estar aumentando, querido, mas o bom gosto está se deteriorando!
- Cho. - Abalado, ainda com medo de ser atacado, Leonardo umedeceu os lábios. - Eu já disse que posso explicar. A tenente Weasley é uma cliente.
- É esse o nome que você dá para elas agora? - e cuspiu as palavras como uma cobra. - Você acha que pode me jogar fora como se eu fosse o jornal de ontem, Leonardo? Sou eu que decido quando acabar.
Mancando um pouco, Luna foi até onde Leonardo estava e enlaçou sua cintura, dizendo para Cho:
- Ele não precisa de você e nem quer você.
- Não ligo a mínima para quem ele quer. Quanto a precisar... - seus lábios cheios se curvaram para cima, formando um sorriso cruel. - Ele vai ter que lhe explicar os fatos da vida, garotinha. Sem mim, não vai haver nenhum desfile no mês que vem para as roupas de segunda classe que ele faz. E, sem desfile, não vai haver vendas, e sem vendas ele não vai conseguir pagar por todo aquele material, todo o estoque e o dinheiro gordo que pegou emprestado com os agiotas.
Ela respirou fundo e olhou atentamente para as unhas que se lascaram na briga. A raiva combinava tanto com ela quanto a roupa colante preta.
- Isso vai lhe custar muito caro, Leonardo! - continuou. - Estou com a agenda apertada nos próximos dias, mas vou achar um meio de espremer um tempinho a fim de bater um papo com os responsáveis pelo seu apoio financeiro... O que acha que eles vão fazer quando eu lhes disser que não posso baixar meus padrões para pisar em uma passarela usando roupas suas, de qualidade tão baixa?
- Você não pode fazer isso comigo, Cho! - o pânico estava estampado em cada palavra, um pânico, Gina sabia, que era para a morena exuberante o que a droga é para o viciado. - Você vai me arruinar! Investi tudo o que tinha nesse desfile. Tempo, dinheiro...
- Que pena você não ter pensado nisso antes de agarrar esse pedacinho de chumaço de umbigo - os olhos afiados de Cho se estreitaram. - Acho que posso marcar um almoço com os homens da grana até o fim da semana. Você tem alguns dias, querido, para decidir como é que vai ser esse jogo. Livre-se do brinquedinho novo ou sofra as conseqüências! Você sabe onde me achar.
E saiu deslizando com exagero, no caminhar típico de uma modelo, marcando a sua saída ao bater a porta com toda a forca.
- Ai, que merda! - Leonardo se sentou em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos. - Ela chegou na hora mais apropriada para ela, como sempre.
- Não! Não deixe que ela faça isso com você! Conosco. - Quase às lágrimas, Luna se colocou de cócoras diante dele. - Você não pode mais deixar que ela governe a sua vida ou que faça chantagens... - Inspirada, Luna se levantou de repente. - Isso é chantagem, não é, Weasley? Vá até lá e prenda aquela mulher!
Gina estava acabando de abotoar a blusa, que tornara a vestir.
- Não posso prendê-la por dizer que não vai usar as roupas dele. Poderia enquadrá-la por agressão, mas ela vai ser libertada assim que eu acabar de fechar a porta da cela.
- Mas isto é chantagem! Tudo o que Leonardo tem na vida depende desse evento! Ele vai perder tudo se o desfile não acontecer!
- Sinto muito. De verdade. Isso não é um caso de polícia ou uma questão de segurança pública. - Gina passou as mãos pelos cabelos. - Olhe, ela estava de cabeça quente e pau da vida. Devia estar sob o efeito de alguma droga, pelo brilho em seus olhos. Pode ser que ela se acalme, mais tarde.
- Não. - Leonardo se recostou na cadeira. - Ela vai querer que eu pague caro pelo que fiz. Você deve ter percebido que nós éramos amantes. As coisas estavam esfriando entre nós. Ela esteve fora do planeta por algumas semanas e considerei o nosso relacionamento terminado. Então, conheci Luna. - Suas mãos alcançaram as dela e as apertaram. - E então soube que estava tudo acabado. Conversei com Cho rapidamente, disse tudo isso a ela. Pelo menos tentei dizer.
- Já que Weasley não pode ajudar, há apenas uma coisa a fazer. - o queixo de Luna tremeu. - Você tem que voltar para ela. É a única saída. - e acrescentou, antes de Leonardo ter chance de falar. - Nós não nos veremos mais, pelo menos até o dia do desfile. Talvez, depois disso, possamos recolher os pedaços. Você não pode permitir que ela vá às pessoas que estão financiando tudo para falar mal dos seus modelos.
- E você acha que eu poderia fazer isso? Ficar com ela? Tocá-la, depois do que aconteceu? - e se levantou. - Luna, eu amo você.
- Oh... - seus olhos se encheram de lágrimas e transbordaram. - Oh, Leonardo, agora não. Eu amo você demais para deixar que ela arruíne a sua vida. Vou embora. Para salvá-lo.
E saiu, apressada, deixando Leonardo seguindo-a com o olhar.
- Estou sem saída. - disse ele. - Piranha vingativa! Ela tem o poder de tirar tudo de mim. A mulher que eu amo, o meu trabalho, tudo! Seria capaz de matá-la por ter colocado aquele ar de tristeza nos olhos de Luna! - Respirou bem fundo e olhou para as mãos. - Um homem pode ser atraído pela beleza e não enxergar o que há por baixo dela.
- E o que ela disser a essas pessoas vai importar tanto assim? Eles não teriam investido em você se não acreditassem no seu trabalho.
- Cho é uma das modelos mais importantes do planeta. Tem poder, prestígio, contatos. Algumas palavras dela sussurradas na orelha certa podem erguer ou derrubar um homem na minha posição. - e levantou a mão, tocando em uma elaborada fantasia de malha e pedras que estava pendurada ao lado. - Se ela abrir a boca para falar mal do meu trabalho, dizendo que meus modelos são inferiores, as projeções de vendas vão despencar. Ela sabe exatamente como conseguir isso. Trabalhei a vida inteira para esse desfile. Ela sabe disso, também, e sabe como fazer para tirar tudo de mim. E isso não vai parar por aí.
Sua mão caiu para o lado, e ele continuou:
- Luna ainda não compreendeu. Cho pode manter essa arma a laser sobre o meu pescoço pelo resto de sua vida profissional ou da minha. Jamais vou conseguir me livrar dela, tenente, até que ela decida que já acabou comigo.

Quando Gina chegou a casa, estava exausta. Uma sessão adicional de lágrimas e recriminações com Luna minou sua energia. Por ora, pelo menos, Luna estava se sentindo confortada por uma embalagem grande de sorvete e várias horas diante do vídeo, no antigo apartamento de Gina.
Querendo esquecer os cataclismos emocionais e o mundo da moda, Gina entrou direto para o quarto e mergulhou de cara na cama. Galahad, o gato, pulou ao seu lado, ronronando sem parar. Depois de perceber que algumas cabeçadas carinhosas na mão de Gina não provocaram reação, ele se acomodou e dormiu. Quando Harry a encontrou, ela ainda não havia movido um músculo sequer.
- E então, como foi o seu dia de folga?
- Detesto fazer compras!
- É que você ainda não desenvolveu o gostinho pela coisa.
- E nem quero! - Curiosa, ela rolou o corpo e ficou olhando para ele. - Você gosta disso. Adora comprar coisas.
- Claro. - Harry se esticou ao lado dela, fazendo carinhos na cabeça do gato, quando ele chegou pisando devagar sobre o seu peito. - Comprar é quase tão satisfatório quanto ter as coisas. Ser pobre, tenente, simplesmente não presta!
Ela pensou sobre o assunto. Como já tinha sido muito pobre e conseguira lutar e se erguer na vida, não discordava daquilo.
- De qualquer modo, - voltou ela - acho que o pior da tortura das compras já passou.
- Então foi rápido! - e essa rapidez o deixou um pouco preocupado. - Sabe Gina, você não precisa abrir mão de nada para resolver isso.
- Na verdade, acho que Leonardo e eu chegamos a um acordo. - olhando para cima, através da clarabóia por onde se via o céu empalidecido pelas luzes da cidade, ela franziu as sobrancelhas. - Luna está apaixonada por ele.
- Hã-hã... - Com os olhos semi-cerrados, Harry continuava a acariciar o gato, pensando em acariciar Gina em vez disso.
- Não, estou falando do grande amor! - e suspirou. - O dia não correu exatamente às mil maravilhas.
Ele estava com os números de três grandes acordos ainda dançando na cabeça. Colocando-os de lado, chegou-se mais para perto dela e pediu:
- Conte-me tudo.
- Leonardo é um sujeito corpulento, com um charme especial, estranhamente atraente. É... não sei explicar... um cara marcante. Parece ter um bocado de sangue indígena nas veias. Pelo menos, tem a estrutura óssea e o tom de pele de um índio, bíceps que parecem torpedos e uma voz com um toque sutil de magnólia. Não sei julgar as pessoas muito bem, mas quando ele se sentou para fazer o esboço do meu vestido me pareceu muito concentrado e talentoso! Enfim, lá estava eu esperando em pé ao lado dele, nua...
- Você estava nua? - perguntou Harry com naturalidade, e, tirando o gato do caminho, rolou o corpo e se colocou em cima dela.
- Para tirar as medidas. - explicou ela, com olhar de desprezo.
- Continue.
- Certo. Luna tinha ido pegar um pouco de chá...
- Quanta mordomia!
- De repente, uma mulher entrou como um furacão na sala. Ela era de cair o queixo, mais de um metro e oitenta, magra como um raio laser, cabelos negros com quase um metro de comprimento e um rosto... bem, vou usar a imagem das magnólias de novo. Entrou berrando com Leonardo, e ele, aquele touro de homem, recuou com covardia, e ela resolveu pular em cima de mim. Tive que nocauteá-la.
- Você deu um soco nela?
- Dei, antes que ela fatiasse a minha cara toda com aquelas unhas pontiagudas.
- Querida Gina... - ele beijou uma das bochechas dela, depois a outra e então a covinha do queixo. - O que será que você tem que faz surgir o lado animal das pessoas?
- Apenas sorte, eu acho. Enfim, a tal Cho...
- Cho? - sua cabeça se elevou e os olhos se estreitaram. - A modelo?
- Essa mesmo! Parece que é uma figura graúda no mundo da moda.
Harry começou a rir, apenas um sorriso a princípio, que foi crescendo e se transformou em uma gargalhada tão alta que ele caiu de costas na cama novamente.
- Você deu um soco no precioso rosto de um bilhão de dólares de Cho Chang? E ela caiu durinha em cima daquela bunda linda?
- Para falar a verdade, sim. - e então a suspeita floresceu, acompanhada por uma surpreendente e inesperada fisgada de ciúme. - Você a conhece!
- Pode-se dizer que sim.
- Isso quer dizer...
Ele levantou uma sobrancelha, um pouco desconfiado, mas ainda se divertindo. Ela já estava sentada na cama, olhando para ele com cara feia. Pela primeira vez no relacionamento deles, ele sentiu uma pontada de imaturidade no jeito dela.
- Estivemos juntos por algum tempo... um período curto. - e coçou o queixo. - Não me lembro muito bem.
- Mentira!
- Mais tarde, é possível que eu me lembre. Mas você estava dizendo...
- Existe alguma mulher excepcionalmente bonita com a qual você não tenha dormido?
- Vou lhe fazer uma lista. E então, você a nocauteou.
- Foi. - Gina sentiu-se arrependida por não ter batido mais. - Ela ficou lá, gemendo, chorosa, até que Luna entrou na sala e Cho voou em cima dela. Em um segundo, as duas já estavam engalfinhadas no chão, arrancando os cabelos uma da outra e se arranhando; Leonardo ficou de lado, torcendo as mãos de nervoso.
- Você leva uma vida muito interessante. - Harry a virou de lado, colocando-a por cima dele.
- Para encurtar a história, Cho ameaça Leonardo: ele tem que dar um fora em Luna e voltar para ela, senão ela vai destruir esse tal desfile do qual ele precisa tanto para decolar na carreira. Pelo jeito, ele enterrou tudo o que tinha nesse evento, chegou até a pegar dinheiro com agiotas. Se ela acabar com o desfile, ele está arruinado.
- Isso é a cara dela.
- Depois que Cho saiu, Luna...
- Você ainda estava pelada?
- Estava acabando de me vestir. Luna resolveu fazer o supremo sacrifício. Foi tudo muito dramático. Leonardo declarou o seu amor, ela começou a chorar e foi embora. Puxa Harry, nessa hora eu me senti como um voyeur pervertido, olhando tudo de binóculo. Levei Luna para ficar no meu antigo apartamento, só por esta noite. Ela não vai ter que ir para a boate, pelo menos até amanhã.
- Fique ligada. - murmurou ele, e sorriu quando ela olhou para ele sem entender. - É como nas novelas antigas. Isso sempre acaba na beira de um abismo. O que o nosso herói vai fazer agora?
- Que herói! - murmurou Gina. - Droga, eu gostei dele, mesmo sendo um covarde. O que ele gostaria de fazer é esmagar a cabeça de Chang, mas provavelmente vai desmoronar. É por isso que eu pensei em trazer Luna para cá por alguns dias, se ela precisar.
- Claro.
- Sério?
- Esta aqui, como você sempre diz, é uma casa grande. Eu gosto de Luna.
- Eu sei. - e lançou-lhe um dos seus sorrisos rápidos, tão raros. - Obrigada. E o seu dia, como foi?
- Comprei um pequeno planeta... Brincadeira! - apressou-se em acrescentar, quando a boca de Gina se abriu de espanto. - Na verdade, completei as negociações para a reconstrução de uma comunidade agrícola no Satélite Taurus Cinco.
- Uma fazenda?
- As pessoas têm que comer. Com um pouco de reestruturação, essa comunidade vai ser capaz de fornecer grãos para as fábricas das colônias de Marte, onde tenho investimentos consideráveis. Assim, uma mão lava a outra...
- Sei. Agora, quanto a Cho...
Ele tornou a rolar o corpo dela e puxou a blusa que ela já desabotoara, soltando-a dos ombros.
- Não adianta tentar, que você não vai me distrair. - disse ela. - Esse caso que rolou com ela, em um período curto... Esse período foi de quanto tempo?
Ele balançou os ombros e veio dando pequenas mordidas em Gina, da boca até a garganta.
- Vamos lá... - voltou ela. - Foi assim tipo uma noite, uma semana... - Seu corpo esquentou quando ele fechou a boca sobre o seu seio. -... Um mês... Tudo bem, agora você está conseguindo me distrair, Harry...
- E posso fazer ainda melhor... - prometeu ele.
E fez.


Visitar o necrotério era um jeito horrível de começar o dia. Gina caminhou lentamente através do silêncio e ao longo das paredes revestidas por azulejos brancos, tentando não se sentir aborrecida por ter sido chamada para reconhecer um corpo às seis da manhã.
E, o que é pior, um corpo que flutuava no rio, ao ser encontrado.
Ela parou em uma das portas, segurou o distintivo, levantou-o na direção da câmera de segurança e ficou aguardando, enquanto o seu número de identificação era acessado e aprovado.
Do lado de dentro, um técnico já estava esperando por ela ao lado de uma parede cheia de gavetas refrigeradas. A maioria devia estar ocupada, pensou Gina. O verão era sempre uma estação quente para as mortes.
- Tenente Weasley?
- Certo. Você tem um desses para mim.
- Acabou de chegar. - com o tom desinteressado próprio da profissão, ele foi até uma das gavetas e digitou um código para que ela se abrisse. As travas e o controle de refrigeração se desligaram com um pequeno ruído, e a gaveta, com o ocupante, deslizou suavemente para fora, envolta em uma pequena nuvem de gelo seco. - A policial que estava no local o reconheceu e acha que ele é um dos seus.
- Certo. - Como defesa, Gina inspirou fundo e expirou pela boca. Ver a morte, e morte violenta, não era novidade para ela. Ela não conseguia explicar a sensação que tinha de que era mais fácil, talvez menos pessoal, analisar um corpo no local da morte. Ali, no ambiente imaculado e quase virginal do necrotério, a imagem lhe parecia muito mais obscena. - Carter Johannsen. - reconheceu Gina. - Era mais conhecido como Boomer. O último endereço conhecido é um quarto em Beacon. Ladrão barato, informante profissional, traficante eventual de drogas ilegais, um tipo lamentável de ser humano. - e suspirou, enquanto olhava o que havia restado dele. - Que diabos, Boomer, como foi que fizeram isso com você?
- Instrumento não pontudo. - respondeu o técnico, levando a pergunta de Gina a sério. - Possivelmente um cano ou um bastão não muito grosso. Temos que terminar os testes. Uma força muito grande por trás de cada golpe. Estava há umas duas horas no rio, no máximo; as contusões e lacerações são claras.
Gina balançou a cabeça e o deixou continuar as explicações, com ar importante. Ela conseguia ver tudo por si mesma.
Boomer jamais fora um sujeito bonito, mas eles haviam deixado muito pouco do seu rosto. Ele fora severamente golpeado, o nariz se quebrara e a boca estava irreconhecível, devido aos golpes e inchaços. As marcas escuras na garganta indicavam estrangulamento, bem como os vasos arrebentados que pontilhavam o que sobrara do seu rosto.
O torso estava arroxeado e, pelo jeito com que o corpo estava, Gina desconfiou que o braço havia sido esmagado. O dedo que faltava na sua mão esquerda era resultado de um velho ferimento de guerra, do qual Gina sabia que ele tinha grande orgulho.
Alguém muito forte, furioso e determinado atacara o pobre e patético Boomer.
Do mesmo modo fizeram os peixes, mesmo no pequeno período em que ele ficara na água.
- A policial encarregada já levou o que restou das impressões digitais para identificação, agora só falta a sua confirmação visual.
- Está confirmado. Envie-me uma cópia da autópsia. - Gina se virou e começou a se encaminhar para a porta. - Quem foi a policial que fez a conexão da vítima comigo?
O técnico pegou o notebook e começou a martelar as teclas.
- O nome é Hermione Granger.
- Granger. - Pela primeira vez desde que chegara, Gina exibiu um pequeno sorriso. - Ela roda um bocado por aí. Se aparecer alguém aqui perguntando por ele ou em busca de informações, eu quero ser avisada.
A caminho da Central de Polícia, Gina entrou em contato com Hermione. O rosto calmo e sério da policial apareceu na tela e Gina se identificou:
- Aqui é a tenente Weasley.
- Sim, tenente.
- Você encontrou o corpo de Johannsen.
- Sim, senhora. Estou acabando de fazer o relatório. Posso enviar uma cópia para a senhora.
- Eu agradeceria. Como foi que você conseguiu identificá-lo?
- Há um identificador portátil em meu kit de trabalho, senhora. Tirei as digitais dele. Os dedos estavam muito danificados e eu só consegui uma resposta parcial, mas tudo indicava que era Johannsen. Sabia que ele era um dos seus informantes.
- Sim, era mesmo. Bom trabalho, Granger.
- Obrigada, senhora.
- Granger, você tem interesse em ser assistente da investigadora principal desse assassinato?
- Sim, senhora! - Hermione perdeu o controle das emoções em seus olhos apenas por um segundo e deixou transparecer um brilho de interesse. - A senhora é a investigadora?
- Ele trabalhava para mim. - disse Gina simplesmente. - Vou solucionar o caso. Esteja em minha sala em uma hora, Granger.
- Sim, senhora. Obrigada, senhora.
- Weasley. - murmurou Gina. - Pode me chamar de Weasley, simplesmente. - Mas Hermione já havia desligado.


Gina olhou para o relógio com cara feia, xingou o tráfego e avançou três quarteirões, cortando caminho por um café drive-through, onde parou. O café era um pouco menos repugnante do que o da Central de Polícia. Alimentada por uma xícara daquilo e pelo que parecia ser um bolinho de canela, ela estacionou o carro e se preparou para fazer o relatório do ocorrido ao comandante.
Enquanto subia pela carroça que funcionava como elevador, sentiu os músculos das costas se retesarem. Dizer a si mesma que os problemas com o comandante eram uma bobagem e que ela devia deixar aquilo para trás não adiantou muita coisa. O ressentimento e a mágoa deixados nela pelo caso anterior pareciam não querer desaparecer.
Entrou no saguão da administração, que era cheio de consoles movimentados, paredes escuras e carpetes gastos. Anunciou sua presença no balcão da recepção do comandante Lupin, e um policial com voz arrastada pediu-lhe que esperasse.
Ela ficou parada ali mesmo, em vez de circular em volta da sala a fim de olhar pelas janelas ou passar o tempo assistindo a discos de revistas antigas. O canal de notícias do telão atrás dela estava ligado sem emitir som, mas a programação também não a interessou.
Algumas semanas antes, Gina tivera uma porção exagerada de mídia envolvendo o seu nome. Pelo menos, pensou, alguém tão baixo na cadeia alimentar de notícias, como era o caso de Boomer, não ia atrair muita publicidade. O assassinato de um informante não aumentava os pontos do ibope.
- O comandante Lupin vai recebê-la agora, tenente Gina Weasley.
Ela ouviu o zumbido das portas de segurança sendo destravadas, passou por elas e virou à esquerda, entrando na sala de Lupin.
- Tenente.
- Comandante. Obrigada por me receber.
- Sente-se.
- Não, obrigada. Não vou tomar muito do seu tempo. Acabei de vir do necrotério, onde fiz o reconhecimento de um corpo não identificado que foi encontrado boiando no rio. Era Carter Johannsen. Um dos meus informantes.
- Boomer? - Lupin, um homem imponente, com feições duras e olhar cansado, se recostou na cadeira. - Ele costumava fornecer explosivos para ladrões de rua. Perdeu o dedo indicador da mão direita.
- Esquerda. - corrigiu Gina. - Senhor.
- Esquerda. – Lupin cruzou as mãos sobre a mesa e olhou para ela com atenção. Ele cometera um erro grave com Gina, um erro em um caso em que estivera pessoalmente envolvido. Compreendeu naquele instante que ela ainda não o perdoara. Ele tinha a sua obediência e respeito, mas a tênue amizade que existira certa vez entre eles desaparecera. - Imagino que tenha sido um caso de homicídio. - continuou ele.
- Ainda não recebi o resultado da autópsia, mas parece que a vítima foi espancada e estrangulada, antes de ser atirada no rio. Eu gostaria de investigar o caso.
- Você estava trabalhando com ele em alguma investigação no momento?
- No momento não, senhor. Ocasionalmente, Boomer fornecia dados aos investigadores da Divisão de Drogas Ilegais. Preciso saber o nome da pessoa para quem ele trabalhava naquele departamento.
Lupin concordou, perguntando:
- Como está a sua carga de trabalho no momento, tenente?
- Gerenciável.
- Isso significa que você está atolada. - Levantou os dedos e os fechou novamente. - Weasley, pessoas como Johannsen vivem em busca de desastre e normalmente o encontram. Nós dois sabemos que as taxas de assassinato se elevam muito em uma época de calor como o que tem feito. Não posso usar uma das minhas investigadoras mais importantes nesse tipo de caso.
- Ele era um dos meus. - Gina apertou os maxilares. - Não importa o que ele fizesse, comandante, Boomer era um dos meus.
Lealdade, refletiu ele, era um dos valores que a tornavam uma das melhores que ele tinha.
- Você pode pesquisar o caso superficialmente pelas próximas vinte e quatro horas - disse a ela - e manter as investigações em aberto, nos seus arquivos, por setenta e duas. Depois disso, vou ser obrigado a transferir o caso para um investigador iniciante.
Aquilo era simplesmente o que ela já esperava.
- Gostaria de ter a policial Granger trabalhando comigo nessa investigação.
Ele olhou para Gina com ar contrariado e replicou:
- Você quer que eu aprove a designação de uma ajudante para um caso como esse?
- Eu quero Granger. - Gina retornou o olhar sem piscar. - Ela já provou que é excelente em campo. Está planejando se tornar detetive. Acredito que, se tiver um pouco de treinamento com casos reais, conseguirá seu objetivo mais depressa.
- Você pode ficar com ela por três dias. Se alguma coisa mais importante surgir nesse meio-tempo, as duas estão fora do caso.
- Sim, senhor.
- Weasley. - começou ele a falar no momento em que ela se virou para ir embora e engoliu um pouco do orgulho. - Gina... Eu ainda não tive a oportunidade de congratular você, pessoalmente, pelo casamento que se aproxima.
- Obrigada. - Um lampejo de surpresa oscilou em seus olhos antes que ela conseguisse impedir.
- Espero que seja muito feliz, Gina.
- Eu também.
Pouco à vontade, ela atravessou o labirinto que era a Central de Polícia e foi até a sua sala. Precisava pedir outro favor. Como queria privacidade, fechou a porta atrás de si antes de ligar o tele-link.
- Capitão Neville Longbottom, por favor, da Divisão de Detecção Eletrônica. - Ficou aliviada ao ver o rosto amarrotado que encheu a tela. - Você chegou cedo hoje, Neville.
- Droga, não tive tempo nem de tomar o café da manhã! - reclamou ele, a boca cheia com a massa de um bolinho recheado. - Quando um dos terminais começa a vazar dados, ninguém consegue consertar, só eu.
- Ser indispensável é um problema! Dá para você encaixar uma pesquisa para mim... um trabalho extra-oficial?
- Esses são os meus favoritos! Pode mandar!
- Alguém apagou Boomer.
- Sinto muito saber disso. - e deu mais uma mordida no bolinho. - Ele era um merda, mas normalmente dava conta do recado. Quando aconteceu?
- Não tenho certeza; ele foi pescado no lado leste do rio, hoje cedo. Eu sei que ele passava informações para alguém na Divisão de Drogas Ilegais. Você pode descobrir quem é, para mim?
- Rastrear as ligações entre informantes e seus receptores é um trabalho meio arriscado, Weasley. Você tem certeza de que quer mesmo que eu faça isso?
- Sim ou não, Neville?
- Tudo bem, tá legal, eu procuro! - murmurou ele. - Mas não vá fazer isso respingar em mim depois. Os tiras detestam ter os seus arquivos vasculhados.
- Eu que o diga! Obrigada, Neville. Quem fez isso com Boomer queria mesmo acabar com ele. Se ele sabia de alguma coisa que valia a sua cabeça, acho que não tinha relação com nenhum dos meus casos.
- Então, tinha relação com o caso de outra pessoa. Eu lhe dou retorno.
Gina se recostou na cadeira após desligar a tela do tele-link e tentou limpar a mente. Na sua cabeça apareceu o rosto massacrado de Boomer. Um cano ou um bastão, ponderou. Mas punhos também. Ela sabia o que mãos desarmadas eram capazes de fazer em um rosto. E sabia o quanto doía.
Seu pai tinha mãos muito grandes.
Aquela era uma das coisas que ela tentava fingir que não lembrava. Mas ela sabia bem o quanto doía, o choque cruel do golpe explodindo antes mesmo que o cérebro registrasse a dor.
O que tinha sido pior? Os espancamentos ou os estupros? Os dois estavam completamente misturados um com o outro em sua cabeça e em seus medos.
Aquele ângulo estranho em que o braço de Boomer estava. Quebrado, refletiu ela, e deslocado. Teve uma vaga e terrível lembrança do som frágil que um osso fazia ao se quebrar, da náusea que surgia acima da agonia e do gemido fininho que substituía o grito quando a mão se apertava com força sobre a sua boca.
O suor frio e o terror tão forte que era capaz de fazê-la borrar as calças ao lembrar que aqueles punhos iam voltar e continuar voltando até que ela estivesse morta. Até ela desejar que Deus Todo-Poderoso a levasse.
A batida na porta a fez dar um pulo da cadeira e ela engoliu um grito. Através do vidro, viu Hermione com o uniforme impecável e os ombros rígidos.
Gina passou a mão sobre os lábios para se recompor. Estava na hora de trabalhar.

N/A: Agradecimento especial:
¢£³ Deco: Continuação de Gloria Mortal sim, espero que goste. Abraços.

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