Capitulo 40 - O ENCONTRO
Capitulo 40 - O ENCONTRO
Um silêncio de choque caiu sobre a Muriel Dois.
À distância de uma breve remada, o Vingança estava ancorado sob a morrinha do começo da tarde, calmo e quieto sobre as águas profundas do meio do rio. O enorme navio negro era uma visão impressionante: sua proa erguia-se como um penhasco íngreme, e com as esfarrapadas velas negras recolhidas, os seus dois altos mastros destacavam-se como ossos negros contra o céu carregado.
Um silêncio opressivo rodeava o navio na luz acinzentada.
Nenhuma gaivota se atrevia a pairar perto do navio, em busca de restos. Pequenos barcos que se serviam do rio viam o navio e apressavam-se a prosseguir viagem pelas águas mais rasas perto das margens, preferindo arriscar a ficarem encalhados do que aproximarem-se do tristemente célebre Vingança. Uma espessa nuvem negra tinha se formado sobre os mastros, lançando uma sombra escura sobre todo o navio, e da popa flutuava sombriamente uma bandeira vermelho-sangue, com três estrelas negras.
Rony não precisava da bandeira para saber a quem pertencia aquele navio. Nenhum outro navio jamais fora pintado com o alcatrão extremamente preto que Voldemort se servia, e nenhum outro navio podia estar rodeado de uma atmosfera tão malévola. Gesticulou freneticamente a Gina e ao Garoto 412 para que remassem em sentido contrário, e momentos depois a Muriel Dois estava novamente escondida para lá da última dobra do Canal Deppen.
- O que foi? - sussurrou Gina.
- É o Vingança. - respondeu Rony sussurrando também. - O navio de Voldemort. Calculo que esteja à espera do Aprendiz. Aposto que foi para cá que o pequeno sapo fugiu. Passe-me o telescópio, Gin.
Rony encostou o telescópio ao olho e viu exatamente aquilo que mais temia. Ali, nas sombras espessas projetadas pelos íngremes flancos negros do casco, estava a canoa do Caçador. Balançava sobre a água, vazia e parecendo ainda menor em comparação com o gigantesco Vingança, amarrada a uma longa escada de corda que levava ao convés do navio.
O Aprendiz tinha chegado a tempo ao Encontro.
- Tarde demais. - disse Rony. - Já está lá. Oh, argh, o que é aquilo? Oh, que nojo. Aquela Coisa escorregou da canoa. É tão viscosa. Mas consegue mesmo subir uma escada de corda. É como um macaco grotesco. - Rony estremeceu.
- Consegue ver o Aprendiz? - quis saber Gina.
Rony moveu o telescópio ao longo da escada de corda. Anuiu. Como não podia deixar de ser, o Aprendiz tinha quase chegado ao topo, mas tinha parado e estava olhando horrorizado para a Coisa que subia rapidamente atrás de si. Numa questão de segundos o Magog tinha alcançado o Aprendiz e passado por cima dele, deixando um rastro de gosma amarela berrante sobre as costas de sua roupa. O Aprendiz pareceu fraquejar por uns momentos, e quase largou a escada, mas arrastou-se pelos últimos degraus e tombou sobre o convés, onde passou despercebido por uns momentos.
É bem feito, pensou Rony.
Decidiram dar uma olhada mais de perto no Vingança, mas a pé. Amarraram a Muriel Dois a uma rocha e caminharam ao longo da praia onde tinham feito aquele piquenique da meia-noite, na noite em que tinham fugido do Castelo. Ao voltarem a dobra do canal, Gina teve um choque. Já havia alguém lá. Estacou subitamente, e escondeu-se por trás de um velho tronco de árvore. O Garoto 412 e Rony foram contra ela.
- O que foi? - sussurrou Rony.
- Há alguém na praia. - respondeu Gina. - Talvez seja alguém do navio, montando guarda.
Rony espiou por trás do tronco da árvore.
- Não é ninguém do navio. - sorriu.
- Como sabe? - perguntou Gina. - Pode ser.
- Porque é o Alther.
Alther Mella estava sentado na praia, olhando melancólico para a morrinha. Estava ali há dias, esperando que alguém da Choupana da Guardiã aparecesse por ali.
Precisava falar urgentemente com eles.
- Alther? - sussurrou Gina.
- Princesa! - O rosto preocupado de Alther pareceu desanuviar-se. Pairou até Gina e envolveu-a num abraço caloroso. - Parece-me que cresceu um bocado, desde a última vez que a vi.
Gina levou um dedo aos lábios.
- Chiiu, eles podem nos ouvir, Alther.
Alther pareceu surpreso. Não estava habituado que Gina lhe dissesse o que tinha de fazer.
- Eles não podem me ouvir. - Alther riu. - A não ser que eu queira que ouçam. E também não podem ouvir a você... levantei um Cala Gritos. Não vão conseguir ouvir nada.
- Oh, Alther. - disse Gina. - É tão bom voltar a vê-lo. Não é, Rony?
Rony tinha um enorme sorriso no rosto.
- É fantástico. - disse.
Alther lançou um olhar curioso ao Garoto 412.
- Aqui está mais alguém que também cresceu. - Sorriu. - Esses meninos do Exército da Juventude são sempre tão magros. É bom ver que encheu um pouco.
O Garoto 412 corou.
- Ele também é bom agora, Tio Alther. - disse Gina ao fantasma.
- Calculo que ele tenha sido sempre bom, Princesa. - retorquiu Alther. - Mas no Exército da Juventude ninguém tem autorização para ser bom. É proibido.
E sorriu ao Garoto 412.
O Garoto 412 devolveu-lhe o sorriso, timidamente.
Sentaram-se na praia, sob a morrinha, longe da vista do Vingança.
- Como estão o Papai e a mamãe? - perguntou Rony.
- E o Gui? - perguntou Gina. - O que aconteceu com Gui?
- Ah, o Gui. - disse Alther. - O Gui tinha fugido deliberadamente de Lílian, na Floresta. Ao que parece, ele e Lucy Gringe tinham planejado se casar em segredo.
- O quê? - exclamou Rony. - O Gui se casou?
- Não. Gringe descobriu e denunciou-o aos Guardiães.
- Oh, não! - exclamaram Gina e Rony ao mesmo tempo.
- Oh, não se preocupem por causa de Gui. - disse Alther, estranhamente frio. - Como é que ele conseguiu passar aquele tempo todo nas mãos do Supremo Guardião e sair de lá como se tivesse passado umas férias, é que eu não sei. Mas tenho as minhas suspeitas.
- O que quer dizer, Tio Alther? - perguntou Gina.
- Oh, não há de ser nada, Princesa. - Alther não parecia disposto a dizer mais nada sobre Gui.
Havia uma coisa que o Garoto 412 queria perguntar, mas parecia-lhe estranho falar com um fantasma. No entanto, tinha que perguntar, por isso reuniu coragem e disse:
- Aanh, desculpe, mas o que aconteceu à Marcia? Ela está bem?
Alther suspirou.
- Não. - disse.
- Não? - perguntaram três vozes ao mesmo tempo.
- Caiu numa armadilha. - Alther franziu o cenho. - Numa armadilha do Supremo Guardião e do Gabinete dos Ratos. Ele infiltrou seus próprios ratos. Ou melhor, os ratos de Voldemort. E são um bando de bons malandros. Costumavam dirigir a rede de espionagem no refúgio de Voldemort nas Terras Inóspitas. Têm uma reputação terrível. Chegaram aqui com os ratos da peste, há muitas centenas de anos. Nada simpáticos.
- Quer dizer que o nosso Rato Mensageiro era um deles? - perguntou Gina, pensando em como tinha simpatizado com ele.
- Não, não. Ele foi enviado pelos brutos do Gabinete dos Ratos. Agora desapareceu. Pobre rato. Não lhe dou muito pela pele. - disse Alther.
- Oh, isso é horrível. - disse Gina.
- E a mensagem para Marcia também não era de Tiago. - acrescentou Alther.
- Nunca pensei que fosse. - comentou Rony.
- Era do Supremo Guardião. - explicou Alther. - Por isso, quando Marcia apareceu no Portão do Palácio para se encontrar com Tiago, os Guardiães estavam à espera dela. Claro que isso não seria um problema para Marcia se ela tivesse acelerado nos seus Minutos da Meia-Noite, mas seu relógio estava vinte minutos atrasado. E não tinha com ela o FicaEmSegurança. É um assunto feio. Voldemort pegou o Amuleto, por isso temo que agora ele seja o... Feiticeiro ExtraOrdinário.
Gina e Rony estavam sem palavras. Isto era pior do que eles esperavam.
- Desculpe. - atreveu-se o Garoto 412, que se sentia muito mal. Era tudo culpa dele. Se ele tivesse aceitado ser Aprendiz de Marcia, podia tê-la ajudado. Nada disso teria acontecido. - A Marcia ainda está... viva, não está?
Alther olhou para o Garoto 412. Seus tênues olhos verdes possuíam uma expressão amável quando, servindo-se do seu desconcertante hábito de ler a mente das pessoas, disse:
- Não havia nada que pudesse ter feito, rapaz. O teriam apanhado, também. Ela estava na Masmorra Número Um, mas agora...
O Garoto 412 deixou cair a cabeça nas mãos, desesperado. Sabia tudo o que se passava na Masmorra Número Um.
Alther pousou-lhe um braço fantasmagórico sobre os ombros.
- Não se aflija agora. - disse-lhe. - Estive com ela a maior parte do tempo, e ela estava se agüentando bem. Pareceu-me que estava se agüentando muito bem. Tendo em conta as circunstâncias. Há uns dias atrás tinha saído para verificar vários pequenos... projetos que tenho pendentes no dormitório de Voldemort, na Torre. Quando voltei à masmorra ela não estava mais lá. Procurei por todos os lugares que podia. Até coloquei alguns dos Antigos à procura dela. Sabe quais são, os fantasmas bem antigos. Mas já estão muito dissipados e confundem-se facilmente. Alguns deles já nem conseguem se orientar muito bem no Castelo, vão parar em alguma parede nova ou escadaria, e ficam sem saber o que fazer. Não conseguem pensar. Ainda ontem tive que tirar um dos restos de comida. Ao que parece, estava onde costumava ser o refeitório dos Feiticeiros. Há cerca de quinhentos anos. Francamente, os Antigos, por muito simpáticos que sejam, dão mais trabalho do que valem. - Alther suspirou. - Embora me pergunte se...
- Se o quê? - perguntou Gina.
- Se ela pode estar no Vingança. Infelizmente, não posso entrar no amaldiçoado navio para descobrir.
Alther estava furioso consigo mesmo. Hoje em dia, aconselharia qualquer Feiticeiro ExtraOrdinário a ir ao maior número de lugares que pudessem enquanto estavam vivos, para que quando fossem fantasmas não ficassem limitados como ele próprio. Mas já era tarde demais para que Alther pudesse alterar aquilo que tinha feito em vida; agora, tinha de fazer o melhor que pudesse.
Ao menos, quando fora nomeado Aprendiz pela primeira vez, Voldemort tinha insistido em levar Alther numa longa e muito desagradável visita às masmorras mais profundas. Na época, Alther nunca pensara que um dia se alegraria com isso, mas se ao menos tivesse aceito o convite para a festa de inauguração do Vingança... Alther lembrava-se como, por ser um jovem promissor e potencial Aprendiz, tinha sido convidado para uma festa a bordo do barco de Voldemort. Alther tinha recusado o convite por ser o aniversário de Alice Nettles. Como não era permitida nenhuma mulher a bordo do navio, Alther não ia de maneira nenhuma deixar Alice sozinha no dia de seu aniversário. Durante a festa, os potenciais Aprendizes tinham sido deixados à solta e causado grandes estragos ao navio, garantindo que nenhum deles pudesse ter a esperança de conseguir nem que fosse um emprego de faxina com o Feiticeiro ExtraOrdinário. Pouco tempo depois Alther recebeu o convite para o Aprendizado com o Feiticeiro ExtraOrdinário. Alther nunca tinha voltado a ter oportunidade de visitar o navio. Depois da desastrosa festa, Voldemort levou-o até à Enseada Erma para reequipá-lo. Enseada Erma era um misterioso ancoradouro, cheio de navios abandonados e apodrecidos. O Necromante tinha gostado tanto, que tinha deixado seu navio ali, e lá passava as férias de Verão todos os anos.
O grupo cabisbaixo estava sentado na praia úmida.
Comeram sombriamente o que restava do queijo de cabra e dos sanduíches de sardinha úmidas, e beberam o resto do frasco de tônico de beterraba e cenoura.
- Há horas - disse Alther pensativo - que tenho saudades de não conseguir passar sem comer...
- Mas esta não é uma delas? - Gina terminou por ele.
- No alvo, Princesa.
Gina tirou Petrocas Trelawney do bolso e ofereceu-lhe uma mistura pegajosa de queijo de cabra e sardinha esmagada. Petrocas abriu os olhos e contemplou a oferenda. O seixo de estimação estava admirado. Este era o tipo de comida que normalmente recebia do Garoto 412; Gina costumava lhe dar biscoitos. Mas comeu na mesma, com exceção de um pedaço de queijo de cabra que se colou à cabeça e, mais tarde, ao interior do bolso de Gina.
Quando tinham acabado de mastigar o que restava dos sanduíches empapados, Alther disse em tom sério:
- Agora, vamos ao que interessa.
Três rostos preocupados voltaram-se para o fantasma.
- Ouçam-me todos. Devem ir direto para a Choupana da Guardiã. Quero que digam à Zelda que os leve para o Porto logo pela manhãzinha. A Alice, ela agora é a Chefe da Alfândega lá, vai encontrar um navio para vocês. Devem partir para os Países Longínquos, enquanto eu tento resolver as coisas aqui.
- Mas... - exclamaram Gina, Rony e o Garoto 412. Alther ignorou o protesto.
- Encontro-me com vocês na Taverna da Ancora Azul no Cais, amanhã de manhã. Têm de estar lá. O seu Pai e a sua Mãe também vão, juntamente com Gui. Já estão a caminho, rio abaixo, no meu velho barco, o Molly. Temo que Carlinho, Fred e Jorge, e Neville tenham se recusado a abandonar a Floresta; tornaram-se bastante selvagens, mas a Morwenna vai mantê-los debaixo dos olhos.
Gerou-se um silêncio infeliz. Ninguém gostou do que tinham ouvido Alther dizer.
- Isso é fugir. - disse Gina calmamente. - Queremos ficar. E lutar.
- Eu sabia que ia dizer isso. - suspirou Alther. - É exatamente o que sua mãe teria dito. Mas tem que ir, já.
Rony levantou-se.
- Muito bem. - disse com relutância. - Encontramo-nos amanhã, no Porto.
- Ótimo. - concordou Alther. - Agora, tenham cuidado, e eu me encontro com vocês amanhã. - Alther ergueu-se no ar, e viu os três marcharem desconsolados de volta à Muriel Dois. Alther ficou a vê-los até se convencer de que estavam avançando normalmente pelo Canal Deppen, e depois acelerou ao longo do rio, voando rápido e baixinho, para se reunir ao Molly. Não tardou que não passasse de um pontinho a distância.
E foi nessa hora que o Muriel Dois deu a volta, e se dirigiu diretamente rumo ao Vingança.
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