Capitulo 5 - Primeira parte



 akon - beautiful




Muriel se acomodara na cama como uma dessas heroínas românticas em um drama histórico. Seus olhos estavam vermelhos de chorar. Assoou o nariz e disse:
- Me desculpe por não ter ido à loja. Não tive forças.
- Você bem que podia ter me avisado...
Depois pensei melhor: o telefone tinha sido cortado, e eu estava sendo tão chata e ranzinza quanto mamãe nos seus piores dias.
Muriel me deu um sorriso forçado e disse que mandaria religar o telefone no dia seguinte.
- Também não consegui ligar o computador – falei.
Os olhos de Muriel voltaram a se obscurecer:
- Kai tem um truque para ligá-lo.
Mudei rapidamente de assunto:
- Já comeu?
Muriel fez que não. A caminho de casa, eu acabara com o lanche que Ava mandara. Então preparei rapidamente um espaguete com meia lata de atum. Não ficou exatamente uma delícia, mas quem não tem cão cassa com gato. Tallulah comeu quase toda a minha parte.
Depois daquela comidinha sem graça, eu peguei um pouco do dinheiro que mamãe deixara com Muriel e fui ao mercadinho em Little Netherby, a menos de 1 quilômetro, a caminho de Greater Netherby.
No trajeto, anotei mentalmente que, no dia seguinte, devia perguntar a Julius que papo era aquele de Little e Greater Netherby.
Ele devia conhecer toda a história local. Imaginei que teria de tomar conta da loja novamente, pois era evidente que Muriel ainda não estava em condições de voltar ao batente.
Mamãe ficaria boba de ver oferecendo-me para trabalhar, cozinhando, fazendo compras. A lembrança de mamãe me despertou um sentimento de culpa, seguido de uma onda de saudade. Havia uma cabine telefônica na frente do mercado. Talvez um telefonema rápido acabasse com aquele clima “sem palavras” que transformara boa parte das últimas semanas num inferno.
A cabine estava vazia. Não havia papéis nem embalagens nem cartões telefônicos usados jogados pelo chão. Não sei por que, mas de repente eu me flagrei discando primeiro o número de Cho.
A mãe dela atendeu.
- É você, Gina?
- Sim, sra. Chang, Estou ligando para falar com Cho.
Os pais de Cho eram banqueiros. Saíam de casa todos os dias às seis da manhã e geralmente voltavam lá pelas dez da noite, depois de freqüentes jantares de negócios. Cho tinha governanta, professor particular de matemática, empregados, muito dinheiro... e a mim para lhe fazer companhia.
Houve uma longa pausa. Depois ela disse:
- Cho está na casa dos Worth tomando aulas particulares de francês com o professor de Becky.
Pensei: “Cho devia estar adorando isso”. Ela vivia dizendo que Rebecca Worth era muito metida a besta.
A mãe de Cho suspirou e disse:
- Não me agrada nem um pouco essa história de você e Cho serem amigas. Minha filha não se relaciona com gente problemática. Ela tem um futuro brilhante!
E desligou o telefone. Xinguei mentalmente: “ Sua vaca arrogante”. Cho não era nenhuma criança. Podia perfeitamente escolher suas amizades . Eu mandaria um e-mail assim que pudesse. Tirei novamente o fone do gancho e disquei para a cada. Foi um alívio quando Rony atendeu.
- Olá, fofinho” – disse.
_ Rony” – ele parecia contente em ouvir minha voz. – Mamãe foi comprar algumas coisas para nossa viagem surpresa à Flórida.
Fiquei eufórica. Aquilo significava que eu não estava condenada a um verão de exílio com Muriel. Mamãe não vinha me dando força, mas acho que eu merecia, já que lhe causara tantos problemas. Que legal! Sol, areia e montanha-russa!
- Quando partimos? – perguntei.
- Vamos tomar o avião hoje à noite. Pintou uma casa na Flórida por três semanas – continuou Rony, superanimado.
- Vocês vêm me pegar ou é melhor eu ir de trem para casa? – perguntei, e Rony começou a desconversar.
- Um amigo de mamãe conseguiu dois lugares de última hora. Mamãe diz que merecemos um descanso depois de todo o stress em que você meteu a família toda. Ela ia ligar pra você hoje à noite.
- O telefone de Muriel está cortado! – respondi.
Cho estivera na Flórida, e eu estava louca pra conhecer os shoppings e parques temáticos dos quais falou. Eu não conseguia acreditar... eles iam viajar sem mim...
- Espero que vocês se divirtam muito!- disse sarcasticamente.
- Obrigado, Gina! – respondeu Rony – Vou lhe mandar um cartão-postal.
Fiquei um tempão parada ali, dentro da cabine telefônica, em estado de choque. Depois, todas as minhas emoções começaram a explodir. Saí me arrastando, peguei a estrada e caí fora.
Como mamãe podia viajar sem mim? Por causa do stress que eu causei? E em mim, ninguém pensava? De fato, eu vinha criando problemas desde algumas semanas antes do incidente: chegava tarde em casa, passava a maior parte do tempo na casa de Cho, falava horas no telefone com Draco e mentia quando ela me perguntava sobre meus deveres escolares. Mas essas são coisas que todos os adolescentes fazem. Será que ela me odiava tanto a ponto de me exilar naquele inferno de Netherby em vez de voar pelos céus nas montanhas-russas? Não é fácil ser expulsa da escola. Será que mamãe não parou nem um minuto para perguntar como eu me sentia? Não percebia que, naquele momento, eu precisava de apoio e estímulo, em vez de ser expulsa de casa? Era evidente que em Little Netherby eu não conseguiria nem uma coisa nem outra, pois tia Muriel não estava em condições de cuidar nem de si mesma, imagine de uma garota como eu.
Sentei-me debaixo de uma arvore. Como não havia ninguém à vista, abri a parte da minha mente onde guardava todos os meus sentimentos infelizes a respeito de Cho e Draco, misturando-os com a tristeza de ter sido abandonada por mamãe e por Rony. Toda a minha raiva, mágoa e tristeza entraram em ebulição, e delas fluiu um líquido que deixei aflorar na forma de um mar de lágrimas. Fazia tempo que vinha reprimindo essas coisas. Naquele momento, extravasei. Chorei como nunca.
Minutos depois, já me sentia melhor.
Assoava o nariz, quando um galhinho caiu da árvore e veio parar bem nos meus pés, seguido pelo som de alguém se mexendo. Olhei para cima esperando ver um pássaro ou um esquilo, mas dei de cara com uma menina. Seu cabelo estava preso numa trança e ela usava um macacão. Sua expressão era muito viva.
- Árvores não gostam de choro. Ficam muito aborrecidas – disse ela, descendo por um galho e se aproximando. Deu umas pancadinhas na casca da árvore, sentou-se a meu lado e disse:
- Você não é daqui.
Ela devia ter uns dez anos.
Continuou me olhando fixamente, até que me vi obrigada a dizer algo:
- Meu nome é Gina e trabalho no sebo.
A menina sorriu:
- Eu sou Kate. Muriel é legal. Ela emprestou um livro sobre árvores a meu irmão e agora fazemos um jogo maravilhoso. Ele me traz uma folha e eu tenho de adivinhar de que árvore que ela foi tirada.
- Muito interessante!- respondi. Mais alguns dias em Netherby e o tédio me levaria a participar desse jogo.
- Logo, logo iremos ao sebo. Meu irmão adora livros.
Levantei-me para ir embora:
- Você ficará bem aqui, sozinha no meio desse nada?
A menina começou a rir:
- Eu moro aqui, sua tonta. Esta é a minha casa da árvore – apontou para cima, para uam construção de madeira oculta entre os ramos, e disse solenemente:
- Todas essas árvores, flores e campos são meus. Até onde seus olhos podem ver mais além, tudo é meu.
Sorri, esperando que ela me apresentasse a seus amigos elfos e duendes, que certamente moravam com ela na árvore, a menina me devolveu o sorriso:
- Gostei de você, Gina. Você é estranha.
- Muitíssimo obrigada – respondi.
- Você não parece com as outras pessoas daqui. Gosto de seu cabelo vermelho. Ele é lindo!
Comecei a rir. Ela era tão engraçada quanto a um elfo.
- Aposto que você é interessante – ela dizia essas coisas sem desviar os olhos de mim.
Ri novamente:
- Não sou. Minha mãe lhe diria que sou chata. Nunca faço o que mandam fazer.
Kate deu uns gritinhos de alegria, caprichou no tom de voz e apontou o dedo pra mim:
- Você é teimosa e não está nem ai com a autoridade?
Sorri:
- Não tenha dúvida.
- Vocês estava chorando porque está com raiva de alguém? – perguntou
Fiz que sim e disse:
- Principalmente de mim.
- Minha mãe fica com raiva de si mesma quando não consegue entrar num vestido. Meu irmão fica uma fera quando não está se sentindo bem. E você, por que está com raiva?
Ouvi outra movimentação na árvore. Olhei para cima, esperando ver um duende, mas não havia nada ali.
-Qualquer coisa me tira do sério – disse a ela. – Desde o jeito que meu cabelo fica de manhã até o modo como estamos poluindo planeta. Mas odeio mesmo o fato de que, quando tenho duas opções, sempre acabo escolhendo a pior delas.
Ouvi mais um ruído na árvore.
- Tem alguém lá em cima? – perguntei, em pânico. Será que a minha choradeira tinha tido outra testemunha? No mesmo instante, ouvi um miado. Kate pôs-se a rir:
- É só Curiosity, meu gato. A gente o chama de Curio para ficar mais fácil. Você pode ser minha amiga, Gina.
Concordei e sorri:
- Muito obrigada. É uma grande honra. Tchau.
Kate riu novamente:
- A gente se vê por ai, Gina. Gosto de você.
Ainda que ela não fosse desse planeta, gostei dela também.


Continua...


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