Único
Em suas mãos.
Ele viu a garotinha de cabelos ruivos sorrir, os grandes olhos verdes brilhando ao vê-lo. Sorriu de volta para a criatura adorável, em sua imaginação. Observou as maria-chiquinhas cacheadas balançarem enquanto ela corria excitada pela sala.
-Ele é pra mim, papai? – Ela perguntou ao senhor calvo sentado na poltrona. Ele tirou o cachimbo da boca e sorriu para a garotinha, pegando-a no colo e sentando-a em sua perna. Deu um grande sorriso, alisando o bigode preto.
-É sim Lily. Vá lá pegá-lo. Traga-o para mim para eu te mostrar o que ele pode fazer – Ela foi até ele e tomou-o em suas mãos pequenas com o maior cuidado que pôde. Ele sentiu afeição pela menina, que agora levava-o com cautela até o pai. O homem pegou-o por entre as mãos e apertou uma alavanca nas costas do boneco de madeira, fazendo-o abrir a boca. A garotinha sorriu deslumbrada batendo palmas enquanto o boneco falava:
-“Vamos embora João Pequeno, vamos achar a princesa!” – Era o que ele dizia. Lily, agora sem medo, tomou-o nas mãos novamente. E, mesmo sem poder se mover, ele se sentiu vivo, aquecido pelas mãos mornas e delicadas. Ela não devia ter mais que oito anos. Ele não contava mais. Perdera a conta do quanto ficara parado na prateleira daquela loja velha. Ele, o boneco de Robin Hood. O homem, pai de uma garotinha adorável que tinha-o com herói. O pai de Lily comprara-o para ela, e agora ela ganhava-o na noite de natal.
-Obrigada papai – Ela envolveu o pescoço rechonchudo do homem com seus bracinhos pequenos, ainda com o boneco nas mãos. Então olhou bem para o boneco sorrindo. – Vou te chamar de James. – Ela disse, e a irmã mais velha entrou na sala junto com a mãe, que carregava uma bandeja de biscoitos.
-Lílian sua burra, esse é Robin Hood. Você não pode dar nome pra algo que já tem – A morena disse provocando a garotinha, que deu de língua para a irmã enquanto esta pegava um biscoito quentinho.
-Ele é meu e eu dou o nome que eu quiser, Petúnia. Ele pode até ser namorado da sua nova boneca, Marlene, não é? - A ruivinha perguntou animada com a idéia. A cara de enfado de Petúnia sumiu na hora.
-Okay. Vamos lá para cima e eu vou pegar a Marlene pra agente apresentar os dois. Depois agente vê o que faz – Ela disse se levantando da poltrona rapidamente, e as duas correram para o quarto que dividiam no andar de cima.
-Você não devia ter comprado um boneco de madeira enfeitiçado para Lílian, Robert. Ela é uma menina, deveria receber presentes de menina – A sra. Evans disse, mas ele só torceu o bigode preto, tragando mais uma vez no cachimbo.
-Deixe ela, Martha. Não é um boneco que vai mudar quem Lílian pretende ser, assim como aquele urso que você comprou para Petúnia, mesmo sendo coisa de bebê, não mudou em nada a personalidade dela. Lílian gostou tanto do boneco... – Ele tentou persuadir a esposa, que colocou as mãos na cintura e deu um sorriso.
-Certo então. Só espero que ele não quebre fácil – Ela disse voltando para a cozinha, enquanto o marido continuava a fumar o cachimbo, dessa vez fitando o fogo crepitante da lareira. Suspirou. Não sabia por que, mas sentia que aquele boneco de madeira era especial. Quando entrara na loja fora como se o boneco o chamasse. Imediatamente perguntou o preço dele, um preço absolutamente viável. E quando o pegara nas mãos, era como se o boneco estivesse vivo. Foi retirado de seus devaneios por Lílian e Petúnia, que desciam correndo as escadas em respectiva ordem.
-Papai, papai, James não gostou de Marlene e agora Petúnia quer roubá-lo de mim! – O homem deu um suspiro ao ver a filha mais velha com uma boneca nas mãos.
-Eles se apaixonaram, Lílian! Foi amor a primeira vista! Você precisa me dar ele, não vai querer fazer seu boneco infeliz! – James, agora com nome, temeu ser retirado da ruiva. Era engraçado. Várias crianças já haviam brincado com ele, e nem por isso ele se afeiçoara tanto á elas. Em poucos segundos já adorava a criança que o possuía. O que Lílian dissera era uma mentira, ele até gostara de Marlene, a boneca de porcelana era simpática, lhe dera oi e oferecera-lhe alguns biscoitos, sorrindo com a brincadeira, já que nenhum deles podia comer. Mas temia mais do que tudo ser retirado das mãos de seu objeto de adoração naquela casa.
A menina fungou e fitou o chão, os cabelos caindo da maria-chiquinha. Então vagarosamente estendeu a mão para entregá-lo á irmã, que olhava cobiçosa para ele. – Só porque eu não quero que ele fique triste longe da Marlene. Você tem certeza que eles se apaixonaram, né Petty? – A menininha perguntou á irmã, que fez que sim com a cabeça. Ele ficou atordoado. Ela iria mesmo sacrificar a sua felicidade pela dele? Não podia deixar.
James foi forçado á pensar rápido. Não podia ser tirado da ruiva. Então quando os dedos de Petúnia se aproximaram de sua superfície lisa, concentrou-se ao máximo e conseguiu soltar uma farpa que atingiu em cheio o dedo de Petúnia. Esta recuou a mão rapidamente, largando Marlene por impulso, a qual Lílian pegou com agilidade antes que atingisse o chão. Ele soltou um suspiro aliviado e Marlene sorriu-lhe, mostrando-lhe que estava tudo bem, ela não quebrara nada. Então voltou-se para a discussão entre as irmãs, enquanto Petúnia arrancava Marlene rapidamente das mãos de Lílian.
-Fique com esse boneco idiota. Ele não presta para nada mesmo – A garota disse espirrando fogo pelas ventas e subindo as escadas com passos duros. Suspirou aliviado mais uma vez. Lílian lhe sorria.
-Venha James. Vou apresentar pra você o meu quarto – Ela disse e subiu as escadas com ele.
James foi apresentado ao recinto esverdeado e á todos os outros bonecos dela, impecavelmente arranjados na estante branca pendurada na parede. Todos eram bem cuidados e pareciam satisfeitos aonde estavam. James fitou novamente os olhos doces da menininha, que agora o colocava sobre a sua cama com o maior cuidado. Agora tinha uma dívida de felicidade com a ruiva. E faria de tudo para mantê-la feliz.
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-Não Petúnia! Por favor, não faça isso! – Lílian gritava para a irmã, que bateu a porta do quarto em sua cara. Lílian se dirigiu ao seu próprio quarto trancando a porta, jogando-se em sua cama. James viu a garota já de quatorze anos abraçar o travesseiro, abafando seus soluços. Mais uma briga com sua irmã. Mais uma vez Petúnia brigava com ela por causa daquele maldito namorado. Valter nunca fora boa pessoa, mas Petúnia estava convencida que a irmã tinha inveja dela. E isso separara as duas.
Lílian viu James jogado ao canto de sua cama e abraçou-o como sempre fazia quando era menor, á todo trovão que ouvisse ou enquanto seus pais brigavam. James sentiu o perfume doce da garota envolvê-lo e quis ser maior e de verdade, poder mover seus braços em volta dela e abraçá-la, confortá-la como sabia que poderia fazer. Mas aquilo era impossível. Era um boneco de madeira. E agora ela apertava-o contra seu peito, soluçando, tentando não mais sentir aquele sofrimento, toda aquela dor que ouvir a sua irmã lhe dizer “eu te odeio” lhe trazia. Nunca quisera que fosse assim, mas temia pela felicidade dela. Petúnia nunca a escutava, e agora iria se casar com um mau-caráter infeliz, que a enganara e a traíra com a melhor amiga. Ela vira. Mas Petty não acreditava nela. E agora perdera a confiança e o afeto de sua irmã.
-James, o que eu faço agora? Oh céus – Abraçou mais ainda o boneco, isso como sempre acalmando seus soluços – Pelos céus, agora eu estou falando com um boneco – Ela exclamou e parou de abraçá-lo, se sentando na cama. James sentiu frio. Mesmo sendo feito de madeira e não podendo mover nem um músculo, se é que teria algum, sentiu frio. Observando o lugar em volta e depois Lílian, ele finalmente percebeu direitinho o que sentia por ela.
Era estranho toda vez que ela saía de casa. Marlene, sempre que era deixada perto dele, puxava aquele assunto. Sobre o amor dele por Lílian. Que era óbvio desde que ela começara a abandoná-lo um pouco pelas amigas, shoppings e saídas. Que era óbvio pelo olhar que ele lançava á ela toda vez que a olhava. Ele a amava. E aquilo o corroía por dentro. Era impossível que algum dia viesse a ficar com ela. Conhecia-a tão bem, cada gesto, cada defeito, cada qualidade, cada mania, cada medo e cada sonho. Poderia fazê-la feliz de tantos modos diferentes... E não podia. Era um boneco de madeira. Um boneco de madeira que começava a ser deixado de lado pela menina. Substituídos por garotos, que podiam abraçá-la de volta, beijá-la, dizer, mesmo que fosse mentira,que a amavam.
James não percebeu, mas a madeira perto de seus olhos ficou úmida. Algumas gotas começaram a sair de lá, gotas de água. Água saída de seu interior. Lágrimas. Quando a primeira lágrima bateu na colcha da cama de Lílian ele sentiu-se rasgar. Aquilo doeu muito, era como se alguém o tivesse quebrando ao meio com as mãos. Gritou, gritou, mas seu grito só seria ouvido por Marlene, que não podia fazer nada. Os outros bonecos tinham sido dados ás outras crianças, e a prateleira branca tinha sido toda preenchida com coisas de garota grande: CD players, porta-retratos com fotos dela, da família e dos amigos. Algumas caixas de jóias, algumas bonecas e pôsteres de suas séries favoritas.
Ele gritou o mais alto que pôde e sua voz saiu. Finalmente sua voz saiu. Ele pôde se ouvir como ouvia Lílian. Sentiu-se rasgando por dentro e gritou mais alto. Lílian agora estava na porta do quarto olhando-o horrorizada, ele pôde ver. Os olhos expressivos estavam enormes, olhando-o, fitando-o. Ela entrou no quarto e trancou-o rapidamente, apavorada e deslumbrada. Ele não conseguia entender. Ela devia estar assustada, não feliz.
-Oh meu Deus, meu Deus eu pedi pra você ficar real e você ficou, oh meu Deus – Ela ficou olhando-o se contorcer e gemer de dor mais algumas vezes. Então ele entendeu o que ela queria dizer.
-Mas eu... – Começou, ouvindo sua voz e vendo-a maravilhada com isso. – Eu não sou de verdade – Disse olhando para o próprio corpo. Ainda era de madeira. Era grande agora, por isso sentira aquela dor toda. E podia falar e se mover. Mas continuava sendo de madera. Suspirou e passou a mão pela cabeça, sentindo a madeira lisa sob seus dedos bem-talhados.
-Você é real, eu nem acredito! – A felicidade dela não tinha limites. Lílian abraçou-o, se jogando em cima dele. James correspondeu ao abraço como sempre quis fazer, passando a mão pelos cabelos ruivos, macios como sempre imaginara que fossem. Inalou fundo o perfume dela, de algum jeito se instalou em suas entranhas, pelos feixes da madeira, entorpecendo-o. –Eu nem acredito! – Ela voltou a se levantar e olhou para ele, com lágrimas nos olhos.
-Pode acreditar, Lily. Estou aqui pra você. O que você quer que eu faça? – Ele perguntou sem ter mais o que falou, acariciando o rosto dela com sua mão inflexível. Ela fechou os olhos, as lágrimas escorrendo por seu rosto, sentindo o toque gentil dele, aproveitando-o. Como esperara por aquilo! Como os dois haviam esperado por aquele momento! James quis beijá-la, mas não podia. Quis dizer que a amava, mas aquilo era impossível. Manteve-se calado enquanto ela narrava a situação com sua irmã, da qual ele sabia grande parte. Ela então pediu conselho, e ele disse que deixasse a irmã fazer aquela burrada. Ela iria perceber na hora certa e desfazer, aquilo era óbvio. Ela lhe abraçou de novo. Mas quando o pai dela bateu na porta para conversar sobre sua briga com Petúnia, Lílian ficou sem reação.
-James, meu pai não pode te ver assim grande e falando. Ele provavelmente vai querer te fazer de lenha da fogueira – Disse colocando as mãos nos ombros dele. Ele sorriu, e ela achou aquilo demasiadamente bonito. Belo demais. Seu James.
-Ele não vai. Acredite em mim. – Garantiu-lhe e segurou a mão dela, quente. Sentiu-se mais vivo do que nunca, nas mãos dela. Então levantou-se decidido e foi atender a porta, sob o olhar incrédulo dela.
-Olá senhor Evans – Disse abrindo a porta. O homem, de começo, quase caiu pra trás. Então olhou-o de cima a baixo e sorriu. – Esse é o James, Lily? – Ele perguntou. Sempre soubera que o boneco era especial. Sempre soubera que, algum dia, alguma coisa extraordinária aconteceria. Não sabia que seria aquilo, mas estava preparado. Lílian é que parecia pálida demais. – Querida, você está bem? – Perguntou á ela, que assentiu com a cabeça.
-Bom, acho que temos que arrumar um quarto para James agora. Sua cama ficará pequena para ele – O pai disse olhando para a cama da menina, que assentiu meio corada. Ele não entendeu.
-Eu não durmo, Sr. Evans. – Informou-lhe e o homem torceu o bigode já grisalho.
-Bem vindo á família, James – Disse dando-lhe um tapinha no ombro gelado. Olhou para a filha. – Precisa conversar sobre Petúnia, Lily? – Perguntou, sabendo qual seria a resposta. Ela já tinha contado tudo para o boneco.
-Não precisa pai – Disse, e o homem assentiu saindo do quarto com um “até logo”.
-Eu te disse que ele não faria nada á mim – James sentou-se na cama dela novamente. Ela olhou-o mais uma vez deslumbrada.
-Agora eu tenho que dormir, James. Tomara que quando eu acordar você ainda esteja aí – Ela disse se enfiando debaixo do edredom, olhando para ele. James passou a mão pelos cabelos dela, observando o rosto perfeito.
-Eu vou estar aqui sempre pra você. Como sempre estive. – Disse confortando-a, e Lílian deu um sorriso, beijando sua bochecha dura e virando-se na cama para dormir. James sentou-se na poltrona ao lado da janela, perguntando-se que tipo de sonho era aquele. Aquilo era loucura. Ela não se assustara, o pai dela não ameaçara matá-lo. E ele criara vida. Olhou pela janela e viu algo.Um par de olhos azuis. Assustou-se.
-Quem está aí? – Sussurrou abrindo a janela, colocando a cabeça de madeira para fora. Ouviu uma risada e algo entrou pelo lado de sua cabeça, zumbindo. Entrou novamente bem rápido, temendo que Lílian acordasse.
-Sentimentos de verdade merecem voz e corpo de verdade – Ouviu aquelas palavras e virou-se para o lugar de onde vinha o som. Marlene.
-Lene? Mas... – A boneca de porcelana lhe sorria, meio molenga com seu corpo feito de pano preenchido de fibra. Ela me deu uma risadinha.
-É. Não sei por quê, ouvi essa frase e resolvi vim te contar. Petúnia está me escondendo de todos da casa. Pelo jeito fomos enfeitiçados, James. – Ela disse e ele revirou os olhos.
-Certo, isso eu já entendi. Eu queria saber o por que. – Disse meio mau-humorado. Porque não podia dizer á Lílian o que sentia. Afinal, era um boneco de madeira.
-Pelo jeito tem algo a ver com um desejo de Lílian. Lílian queria mais que tudo que você virasse real para ajudá-la, e isso acabou me afetando também – Ela explicou e ele se jogou novamente naquela poltrona.
-Eu ainda não posso falar pra ela, Marlene. Eu sou de madeira. Mas o que eu sinto é muito real! E mesmo assim não posso contar pra ela – Passou a mão pelo que deviam ser os seus cabelos, os cotovelos de barbante apoiados nos joelhos. A boneca se ajoelhou na frente dele.
-Você pode falar James. Você só não quer. Como ela arriscou a felicidade dela pela sua, você está arriscando a sua por ela, deixando-a viver. Mas talvez não seja isso que ela quer. – Marlene disse e James suspirou, o ar passando pelas fibras da madeira, gelando-o ainda mais.
-Eu não posso arriscar condená-la a gostar de um boneco de madeira, Lene. Um boneco perecível, suscetível ao fogo e á água, á umidade e á secura do ar, ao mofo, liquens e mais várias coisas. Ela não pode passar por isso. – Deu mais um suspiro, olhando para os grandes olhos azuis de Marlene. – Eu nem ao menos posso beijá-la – Abriu a boca e mostrou a língua de madeira, inflexível. Marlene riu.
-Se sentimentos de verdade merecem voz e corpo de verdade, talvez amor de verdade mereça uma transformação em humano – Ela animou-o, a mãozinha passando por seu rosto em uma carícia. Sorriu para ela.
-Tomara, Lene. Tomara porque eu não sei o quanto mais eu posso agüentar. O que eu sinto por ela é muito real, mais real do que o que os próprios humanos podem sentir, e maior do que eles podem agüentar. O coração deles explodiria, a minha sorte é ser feito de madeira. Marlene, eu não sei mais o que eu faço – As voltas de seus olhos pintados de branco se umedeceram novamente, pingando algumas coisas de água acumuladas em seu interior. Marlene se espantou.
-Você... Chora? – Ela estendeu uma mãozinha aproximando do rosto dele, pegando uma gota. – James, pode ser por isso que aconteceu com agente. Sentimentos reais merecem voz e corpo reais! Suas lágrimas combinadas ao desejo profundo de Lílian nos transformaram! – A bonequinha sorriu-lhe, fazendo cara de choro. Pena que ela não podia chorar também, porque ela queria. Mas não havia água em sua porcelana fina. Suspirou.
-E que diferença isso faz? – Ele perguntou secando as lágrimas com os dedos.
-Que talvez, se você ficar com ela, consiga virar humano! James, é perfeito! – Ela disse animada, mas ele deu um suspiro.
-Eu não vou submetê-la a isso. Ao risco de gostar de um boneco de madeira que pode virar humano algum dia. E além de tudo, ela não me ama desse jeito. Ela me ama como o amigo, o boneco protetor dela – Disse resoluto.
-M-Marlene? – Uma voz trêmula chamou pela boneca,que deu um grande sorriso.
-Já estou indo, Petúnia – Ela se levantou e deu um beijo na bochecha de James, fazendo um pequeno barulho com o choque entre a madeira e a porcelana. Os dois riram baixinho.
-Até amanhã, Jay – Ela foi até Petúnia, que esperava enrolada numa manta do lado de fora do quarto, tremendo. James sorriu.
-Até amanhã.
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-James – Uma voz suave chamou-o no meio da noite. Ele virou-se para Lílian rapidamente. –James, eu tive um pesadelo – Ele viu que a ruiva tateava a cama falando, como sempre fazia ao ter pesadelos. Levantou-se da poltrona e foi até ela sorrindo.
-Eu estou aqui, Lily – Ela arregalou os olhos e deu um suspiro aliviado ao vê-lo.
-Céus, eu já tinha esquecido que você estava... assim - Ela eufemizou, mas ele sabia o que ela queria dizer. Vivo.
-O que quer? Quer que eu segure sua mão? Acho que estou um pouco grande pra fazer qualquer outra coisa – Ela corou furiosamente e fitou o chão. Ele teve vontade de rir.
-Eu queria algo... Um pouco mais perto – Ele então se espantou. Ela queria mesmo que ele fizesse aquilo? Percebeu que sim quando ela se encolheu na cama e ofereceu um pedaço dela para ele. Resignou-se e deitou.
Deitou-se com os braços para cima, embaixo da nuca para ocupar menos espaço, e Lílian apoiou parte do corpo quente sobre o seu. Ficou tenso por alguns instantes, mas logo relaxou. Lílian já estava dormindo.
-Boa noite, meu amor – Beijou de leve a testa dela, tentando não acordá-la. Então ficou deslumbrado sentindo a textura macia da pele e dos cabelos dela, o seu perfume doce e o calor de seu corpo. Ficou inebriado com as sensações e sorriu. Ao menos um de seus desejos fora concedido. Apesar de ele ter descoberto que era doloroso, valia a pena. Realmente valia.
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James estava arrumando o quarto de Lílian para ela quando ela entrou empolgada, sem nem ao menos vê-lo. Ela se empoleirou na janela e deu oi para alguém, sorrindo largamente, então virou para trás para pegar um casaco enquanto um carro buzinava lá fora. Ela gritou um ‘já vai’ e alguém gritou ‘anda logo’ lá de fora. Voz de homem. Se James tivesse um coração, ele teria se quebrado naquele momento. Ouviu o barulho de algo se partindo e soube que realmente tinha um. Lílian sorriu para ele e beijou-o no rosto, saindo do quarto.
James foi até a janela olhar quem era. Um carro conversível azul claro e branco com um rapaz dentro, um rapaz musculoso e que provavelmente tinha pouco cérebro. Loiro de olhos azuis com um casaco vermelho de mangas brancas, pelo jeito jogador de baseball. Lílian foi até ele correndo e ele beijou-a nos lábios. A garota entrou no carro sorrindo e os dois se foram.
-James? O que houve? Ouvi o barulho de algo quebrando – Marlene entrou no quarto, os sapatos fazendo barulho demais na madeira do assoalho. – Meu Deus, Petúnia por favor venha ajudar! – Ela disse e a garota apareceu na porta. James estava caído no chão, os olhos de madeira revirados. Parecia morto. Marlene e Petúnia á muito custo colocaram-no na cama de Lílian.
-O que houve com ele? – A garota assustada perguntou. Bonecos andantes, falantes e pensantes passando mal em sua casa. Eles já estavam’vivos’ há quase um ano, e ela agora era noiva de Valter. E tinha que esconder a boneca dele, pois ele iria querer quebrá-la, provavelmente. Agora James passava mal. Aquilo era uma casa de loucos!
Marlene se aproximou do que seria o tórax de James e bateu nele com a mão fechada. Oco como sempre, mas havia um outro som. – Eu acho que ele quebrou alguma coisa – Disse e Petúnia continuou aflita.
-E o que fazemos?
-Chame seu pai, sua mãe, traga cola, uma faca bem dura e óleo de peroba – Pediu e foi prontamente atendida. Ela não tinha força, mas o Sr. Evans teria. Indicou para que o homem cortasse a madeira do corpo de James na altura do que seria seu coração. Marlene colocou um braço para dentro do buraco e sentiu alguns cacos de madeira. Catou um por um e a Sra. Evans imediatamente ficou pasma.
-Um coração? James quebrou seu coração? – Ela perguntou com as mãos sobre os lábios. Marlene olhou sombriamente para a mulher.
-James não quebrou seu próprio coração. Lílian o fez – O silêncio prevaleceu enquanto colavam o coração dele, colocavam no lugar e tampavam com outro pedaço de madeira, prendendo com ataduras e passando o óleo de peroba para proteger a madeira.
-Oi gente! Nossa, cheguei tarde né? Que cara de enterro é essa? – Lílian chegou falando rápido, mas parou ao ver a expressão preocupada e penosa de todos. Colocou o casaco no cabide atrás da porta e entrou na sala. Até Petúnia conservava sua face habitualmente desdenhosa em uma seriedade incomum. Sentiu um aperto no peito.
-O que houve? – Perguntou diretamente. Foi Marlene que respondeu.
-James – No momento que a boneca de porcelana proferiu aquilo sentiu lágrimas virem aos seus olhos. Algo havia acontecido á ele? Subiu correndo para seu quarto, entrando sem se preocupar em bater. Ele estava deitado em sua cama, desacordado e com ataduras na altura do peito. Foi até ele contendo os soluços. Ao vê-lo mover a cabeça não pode mais se controlar. Ajoelhou-se ao lado da cama e começou a soluçar, as lágrimas descendo por seu rosto.
-O que houve com ele? – Perguntou virando-se para a porta, aonde Marlene liderava o grupo seguido por Petúnia, sua mãe e seu pai.
-O coração dele se partiu ao ver você saindo com aquele cara. Tivemos que cortá-lo para colar seu coração novamente e ver se funciona. Agora só nos resta esperar – Marlene disse sentando-se na poltrona perto da janela, na qual James costumava ficar. Lílian olhou confusa para a irmã e voltou a olhar para Marlene.
-Porque eu estava saindo com Amos? Mas... O que tem a ver uma coisa com a outra? – Perguntou se levantando e indo até Marlene, que deu um suspiro.
-Ele ama você, Lily.
-Sim, isso eu sei. – Sacudiu a cabeça – Eu também o amo, mas não entendo por que ele quebraria o coração ao me ver saindo com Amos. Sempre achei que ele fosse apaixonado por você – Completou seu pensamento olhando para a boneca, que deu um sorriso triste.
-Não, Lily, você não entendeu. James ama você. Até mais do que um homem pode amar uma mulher. Muito mais do que um humano pode amar o outro. Nós somos bons amigos, eu o amo também, mas não desse jeito, e sim como amigo, do mesmo jeito que ele me ama. Mas a pessoa pela qual ele faria toda e qualquer coisa é você. Você, Lily. – Ela terminou de falar e Lílian foi para a janela. Aquilo não poderia ser possível. Poderia?
-Nós vamos deixar vocês á sós. Se ele acordar, nos chame – Marlene comandou e todos deixaram o quarto. Lílian se aproximou mais uma vez da cama.
-Será que... – Passou a mão pelo rosto liso, vendo-o remexer-se. Ele nunca dormia. Não entendia por que estava adormecido agora. – Será que você pode me amar desse jeito? – Lágrimas voltaram aos seus olhos verdes. – Do jeito que eu amo? Eu nunca pensei que... Nunca pude imaginar que... – Tampou a boca com a mão, descendo a outra para o peito dele. Com essa mão se apoiou nele e desceu o rosto, segurando os cabelos.
Seus lábios tocaram os de madeira, lisos, duros e frios. Lílian deslizou os seus pelos dele por alguns momentos, as lágrimas rolando por sua bochecha e atingindo a madeira polida do rosto dele. E, no momento que abriu os olhos, viu que ele tinha os seus abertos também. Suas lágrimas começaram a cair mais rapidamente e abraçou-o, sorrindo.
-Eu... Eu não queria ter feito isso, me desculpe James, me desculpe! - Ela pediu abraçando-o forte. James retribuiu o abraço com dificuldade, um sorriso triste nos lábios.
-Não... Não tem problema Lily. Eu que fui um idiota. Você não tem culpa de viver a sua vida – Ele falou, a voz mal saindo da garganta. Lílian se soltou dele e observou seu rosto.
-Eu tenho culpa de não ter imaginado que você podia gostar de mim do mesmo jeito que eu gosto de você. Eu não deveria ter sido tão tola – Ela se aproximou novamente e beijou-o de novo, mas dessa vez James correspondeu. O problema é que só podia beijá-la com os lábios, assim como ela só podia retribuir daquele mesmo modo. Ela beijou-o por alguns minutos até separar-se dele, olhando-o nos olhos.
-Eu vou terminar com Amos pra ficar com você. Eu amo você James! Eu não devia, mas eu te amo! – Ela falou isso e ele sentiu-se flutuar. Finalmente! Finalmente teria sua felicidade merecida! Seu coração machucado quis pular, mas James controlou-o. Pensou estar quebrando novamente, sentiu uma dor enorme no corpo, que só era abafada pela felicidade que sentia com Lílian.
‘Eu devo estar virando humano com o amor dela e o meu desejo de ser um’ Pensou contente apesar de toda aquela dor. Mas quando abriu os olhos, continuava sendo de madeira. Madeira dura, fria e lisa, bem polida. Nunca poderia beijá-la direito. Nunca poderia tocá-la, aquecê-la do jeito que um namorado deveria fazer. Nunca poderia andar na chuva com ela, ou mesmo andar de esquis e cair, pois quebraria. Mesmo que ela quisesse, nunca poderia dar-lhe filhos. A expressão de James se fechou, momentaneamente consciente da própria fragilidade, após entender que seu coração havia se partido.
-Não.
-O que? Mas... Mas James, eu pensei que... – As lágrimas votlaram grossas aos olhos dela. Secou-as com seus dedos.
-Shh... Eu amo você também Lily. Sempre vou amar. Amei você desde o primeiro momento. Mas eu não sou como você. Eu sou de madeira Lil – Bateu em si mesmo de leve com a mão fechada, fazendo-a ouvir o barulho. – Eu não posso te fazer feliz. Eu vou quebrar. Minha madeira vai apodrecer. E mesmo que isso não aconteça, eu nem posso te beijar. Eu não posso, Lily. E nem você – Falou decidido, acariciando os braços dela com as mãos. Suspirou ouvindo-a soluçar contidamente. – Eu nunca quis te fazer sofrer, Lily. Me perdoe.
-Não é você, James. É a realidade – A mão de Lily disse entrando no quarto. – Ele tem razão, Lily. O Sr. Diggory vem aqui amanhã, e eu acho que ele irá pedir sua mão em casamento para o filho dele. Nós não podemos recusar, não se você não tiver algum outro pretendente. – A mulher citou aquela convenção da sociedade, fazendo a filha se irritar.
-Mas como assim não podem? Claro que vocês podem! E James, James é um outro pretendente! – Argumentou com raiva. Quem eles pensavam que eram para decidirem sua vida daquele modo? Aquilo definitivamente não estava certo.
-Ele é um boneco de madeira, meu amor. Me desculpe, mas se pedirem sua mão em casamento amanhã eu e seu pai seremos obrigados a aceitar – A mulher disse penosamente.
-Talvez não, Martha. Talvez possamos pedir um tempo, ver o que acontece á James – Robert Evans adentrou no quarto, mas James interrompeu-o delicadamente.
-Não, Sr Evans. Lílian Irá se casar, e irá ficar noiva amanhã mesmo desse menino Diggory. Ele parece um bom rapaz. Ele parece gostar de Lílian. Ela deve ficar noiva dele, ele aprenderá a fazê-la feliz – O boneco falou e Lílian olhou para ele abismada.
-O que? Não, não, eu não vou ficar noiva de Amos! Eu não amo ele, não posso me casar com ele! Eu amo você, James, e só você! Não podem me obrigar a fazer isso! – Ela disse exaltada, levantando-se da cama. James sentou-se com dificuldade e alcançou a mão dela com as suas, seu olhar apelativo.
-Lílian, por favor, seja razoável. Eu sou de madeira. Eu não vou te dar futuro algum. Amos irá aprender a te fazer feliz, ele já te ama, talvez não tanto quanto eu, mas ele ama do jeito dele. E vocês serão felizes, e não serão nem o primeiro e nem o último casal a se casarem sem amor. Vocês irão aprender a se amar, eu prometo – Ela sentou-se novamente na borda da cama, observando o rosto lavado pelas lágrimas. Aqueles olhos que amava tanto, oh céus, destino traiçoeiro! Amava-a tanto que deixá-la-ia ir. Mas aquilo doía, ah, se doía. Se não estivesse fortemente colado, seu coração teria se partido ao meio novamente.
Lílian abraçou-o, escondendo o rosto em seu peito, e James acariciou os cabelos ruivos, inalando o perfume que saía deles. Martha Evans chorava pela tristeza da filha, pelo amor perdido, pela decepção que sua menina sofreria. Robert enlaçou a cintura da mulher, tão triste quanto ela. Mas James tinha razão. Ele era um boneco. Ele era ainda mais racional que Lílian, que era humana. E mais racional que ele mesmo, que cogitara a idéia de entregar a mão dela para James. Ele a faria tão imensamente feliz que provavelmente era a coisa mais sensível a se fazer. Mas como ele próprio dissera, os dois não tinham futuro. James tinha toda a razão, e o maior coração do mundo se estivesse entregando ela assim para a mais segura felicidade que ela teria, que era aquele casamento.
Suspirou. Não sabia se tinha toda a bravura e força que aquele boneco. Ele era mais humano que todos ali naquele quarto. Puxou a mulher de leve e levou-a para fora do quarto, deixando-os sozinhos. Não ligava mais de ele ser homem, apesar de feito de madeira. Se fosse para entregar sua filha á alguém, com certeza seria á esse garoto James. Confiaria a vida de Lílian ao sentimento que o rapaz tinha por ela. Algo anormalmente grande e forte. Foi para o quarto com a esposa, desejando do fundo do coração que não tivesse que ser assim. Mas ele sabia. Ele sabia que tinha. Adormeceu e teve pesadelos com a infelicidade da ruiva.
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No dia seguinte todos estavam arrumados e prontos para receberem o Sr. Diggory, que iria sozinho á casa deles. Marlene estava escondida em seu quarto, já sabendo da decisão de James. Ele era uma fortaleza. Considerava-o assim, ao menos. Petúnia lhe dissera que ela era uma fortaleza por sempre saber o que fazer, mas James era mais. Seu amigo era valente, e entregou a própria felicidade á outro homem pela felicidade de Lílian. Aquilo era torturante de se assistir, mas não tinha opções, pois sabia que ele estava certo. Só restava consolá-lo e ajudá-lo como podia. De algum jeito, sentia que essa era sua missão. Fazê-lo não sentir-se sozinho, ajudá-lo a suportar tudo aquilo. E não hesitaria em ajudá-lo. Ele fora tão bom com Marlene durante aquele ano, e todos os outros juntos, que ela iria ajudá-lo sem nenhum custo.
Por um momento viu-se apaixonada por ele. Sentiu vontade de chorar e contorceu o rosto, mas não pôde verter uma lágrima sequer. A dor em seu peito latejava, talvez até mais do que a dor de James. Porque sofria calada. Amava-o e assistira-o amar Lílian todos aqueles anos. E agora ele jogava a própria felicidade fora pela felicidade dela. Exatamente o que ela estava fazendo com ele. Não iria dizer á ele que o amava justamente agora, naquele momento de tão profundo sentimento dele. Entrou no quarto de Lílian, onde a ruiva se arrumava sozinha. Saiu sem que ela percebesse e foi procurar James, para talvez consolá-lo de algum jeito. Foi encontrá-lo na garagem, olhando para a serra de Robert. Aproximou-se dele silenciosamente e pôs uma mão de porcelana no ombro de madeira, sentindo-o quente. A superfície dele era macia, e ele era mais quente que ela. Quis abraçá-lo, mas ele acharia estranho. Esperou-o para se manifestar.
-Eu já pensei em usar isso várias vezes nesse ano – Ele falou e ela sentiu o peito apertar-se, dando mais um passo e vendo-o chorar. As lágrimas que ela não podia pôr pra fora. Esperou. – Mas eu não tive coragem. Por causa dela. Por causa dos medos dela, dos pesadelos. De todas as vezes que ela vinha até mim e me abraçava, parecendo tão frágil e precisada de proteção que eu não podia negar á ela aquilo. – Ele acariciou a lâmina da serra, quase danificando a madeira dos dedos. – Eu a amo mais do que posso suportar, Marlene. Me ajuda. Por favor – Ele virou-se e abraçou-a, escondendo o rosto em seu ombro, junto dos cabelos perfeitamente cacheados da bonequinha. Marlene sentiu as lágrimas dele ferirem sua porcelana, mancharem-na com toda aquela tristeza, remosrso, dor. Não pôde soltá-lo, mas não pôde evitar de fazer o mesmo que ele, escondendo o rosto bem-pintado no ombro duro dele. Ele não tinha idéia do quanto aquilo doía.
-Eu quero que você faça, Marlene. Eu quero que use isso em mim assim que Lílian se casar. Eu ouvi eles dizendo quando eu passei pela sala, o casamento vai ser daqui á três meses. Diggory quer viajar para Winchester porque arranjou um bom emprego lá. Eles vão se mudar para lá. E aí você me corta com isso e faz uma fogueira comigo - Marlene quis bater nele, mas quebraria um braço. Fez que sim com a cabeça. Se ele pedia, ela o faria. Mas se jogaria de cima da casa logo depois, para não ter que sofrer tanto. Aquilo não era justo. O mundo não era justo. Quis mais do que nunca chorar, abraçá-lo mais ainda e dizer que o amava, que podiam ser felizes juntos. Ele costuraria suas pernas se abrissem e a fibra saísse, e ela passaria óleo de peroba sempre nele para protegê-lo. Ele não deixaria que ela tropeçasse e caísse, e ela não deixaria que ele se molhasse. Poderiam viver juntos por um longo tempo. Nenhum dos dois comia ou dormia. Poderiam tentar.
Só que ele a amava. E Marlene nunca conseguiria tirar aquele sentimento do coração colado de James. Faria o que ele pedira com dor no coraçãozinho de pano. Mas não podia fazer mais nada.
Lílian entrou no quarto chorando, se jogou na cama e abraçou o travesseiro. Agora estava feito. Estava com um anel de noivado no dedo, iria se casar com Amos em três meses e se mudar com ele para Winchester. Para uma vida pacata, sem romance, sem surpresas. Sem amor. Não era aquilo que queria. Queria James. Amava-o, amava-o e aprendera a amá-lo naquele ano juntos. Muito tempo para revelar seus sentimentos. Agora acontecia aquilo. O destino estava brincando com ela, arrancando sua maior felicidade das mãos e lhe dando uma coisa que nunca quis. Chorou, chorou e sentiu uma mão em seu ombro. Petúnia. A irmã chorava também. Abraçaram-se fortemente, compartilhando aquela dor. Petúnia sofria pela irmã, apesar de terem brigado por Valter. Lílian não merecia aquilo. James não merecia aquilo. Marlene não merecia aquilo. Percebia que a boneca brincava demais com James, e seus olhos tinham algo diferente quando olhavam para o boneco. Aquilo era demasiadamente errado para ser real. Decidira que não sairia de casa antes de Lílian estar casada e fora dali. E a primeira coisa que faria com Valter seria visitar a irmã, saber se ela estava bem na nova cidade, na nova casa.
-Eu sinto muito Lily. Muito, muito, muito, muito... – Disse chorando abraçada á irmã, que só a apertou mais contra o corpo, demonstrando sua dor. Petúnia chorou ao lado dela até que Lílian se deitou novamente na cama, adormecendo rapidamente, abraçando o travesseiro. Cobriu-a com uma manta e tirou os cabelos ruivos do rosto. Ela era só uma criança. Não merecia passar por tudo aquilo Não merecia.
Deixou o quarto silenciosamente e entrou no seu. Deitou-se pensando na raiva que tinha por tudo aquilo estar acontecendo com Lílian. Marlene então entrou no quarto e fechou a porta, deslizando as costas por ela até sentar no chão, a expressão de pura dor. Então viu Petúnia deitada na cama e levantou-se rapidamente, se recompondo.
-Você ama ele, não ama? – Petúnia perguntou, mas Marlene permaneceu em silêncio. – Você o ama, não é? – A garota insistiu. Marlene permaneceu forte.
-Não importa se eu o amo ou não. Ele ama Lílian. E eu vou fazer tudo que puder para manter os dois felizes, mesmo que separados. Você deveria fazer o mesmo. Não importa o que eu sinto, o que importa é essa situação em que ambos os lados sofrem. Inconcebível. – A boneca se enfiou no armário, onde uma cama havia sido posta para ela. Sem sentido contando que Marlene nunca dormia, mas ainda assim era confortável saber que tinha um lugar para si mesma.
-Boa noite Petúnia.
-Boa noite, pequena Marlene.
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-Você está linda, querida. Linda! Me emociono ao te ver assim tão linda! – Martha Evans arrumava a barra do vestido da filha, observando o rostinho sorrir, um sorriso fraco. A menina insistira por todos os meses, mas no final se conformara. Amos era legal e a animara assim que soube que Lílian estava em apuros, sem nem ao menos perguntar o porquê. E Lílian o aceitara, ficara amiga dele. Ele era um bom rapaz, e a fizera sorrir por alguns minutos em sua última visita.
James havia se mudado para a casinha do jardim, ficando longe de Lílian. Marlene, Petúnia e Martha cuidaram do enxoval de Lily, que adorou o carinho delas em preparar-lhe aquilo.
James observou a movimentação no jardim pela janelinha da casa. O casamento de Lílian e Amos seria ali, no jardim. Já estava tudo pronto, e ele e Marlene tinham de ficar escondidos. Ainda assim sentiu uma mão em seu ombro,uma mãozinha gelada, e soube que Marlene tinha saído da casa e ido ali com ele. Ela abraçou sua cintura por trás, colando-se á ele, e ele sentiu-se confortado, mas sem forças. Lílian entrou pelo tapete vermelho, indo em direção á um rapaz loiro sorridente no altar. Ele não parecia morrer de amores por ela, mas gostava-a bastante. Sabia disso porque ela voltara a comer, estava mais coradinha que nos dois meses anteriores àquele, e tudo fora por causa da amizade que pegara com o noivo. Agora ela sorria, não tanto quanto uma noiva deveria sorrir, mas James podia ver que ela sorria. Por um momento ela parou e olhou para trás, para a casinha do jardim.
Então Robert Evans deu mais um passo á frente, desgostoso por ter que entregar a filha ao rapaz Diggory. Pelo menos ele era bom para Lílian. O casamento ocorreu sem interrupções, fora os soluços abafados de Petúnia. Mas só os Evans sabia, ela não chorava de felicidade pelo casamento. Não, Petúnia não se conformara com aquilo tão facilmente quanto Lílian. Abordara James, mandara-o lutar pela irmã. James explicara-lhe um milhão de vezes por que não podia fazer aquilo, mas ela não queria saber. Lílian teve que conter as próprias lágrimas, sentindo a dor de ser observada pelo homem que amava enquanto casava-se com outro. Na felicidade e na tristeza. Se Amos somente soubesse o quanto estava triste, talvez não prometesse aquilo. Suspirou fundo o mais silenciosamente que pôde antes de virar-se para trás procurando os olhos de James na janela da casa do jardim, para logo depois passar pelos olhinhos azuis de Amos e voltar para os olhos acinzentados penetrantes do padre.
-Eu aceito.
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Um mês depois Lílian fazia bolo em sua nova casa. Amos estava trabalhando, mas logo chegaria, talvez até antes de Petúnia e Valter. Eles se casaram duas semanas depois dela, logo que descobriram que Petúnia estava grávida. Mas pelo jeito nenhum dos dois se lamentava pela união rápida, pois ambos pareciam muito felizes. Verificou a temperatura do forno e limpou as mãos no avental, vendo com nostalgia a chuva cair no asfalto da rua á frente de sua casa. Naquela época do ano, a moça da venda lhe explicara, chove a maior parte do tempo. Ouviu o barulho de carro entrando por seu portão e espiou por entre as cortinas beges de renda abertas, dando um sorriso.
-Entrem logo, vocês irão se encharcar – Disse vendo Valter estender o casaco para a irmã. Óbviamente Petúnia sabia das bebedeiras e das jogatinas do Dursley, mas ela mesma lhe dissera que não ligava, então estava tudo bem. Valter beijou-a no rosto e Petúnia abraçou-a com força. O engraçado era que nenhum dos dois tinha expressões de felicidade. Tirou o avental azul-marinho e pendurou-o em uma cadeira na cozinha, ajeitando a blusa vermelha e a calça marrom, encaminhando os convidados para a sala de estar. Valter e Petúnia se sentaram no sofá, enquanto Lílian se postou na poltrona, animada.
-E aí? Quais são as novidades de Londres que vocês me trazem? – Perguntou sorridente, mas ainda assim a expressão sombria do casal não se dissipara. Sentiu um aperto no peito.
-Eu não trago boas novas, Lily. Me desculpe. James...
-James? O que tem ele? – Amaldiçoou-se por dar aquele ataque na frente de Valter, mas agora ele era família, e Petúnia com certeza manipulava-o bem. Não dedurá-la-ia nunca.
-Ele... – Os olhos da irmã ficaram opacos. – Ele pediu para Marlene serrá-lo. E logo depois Marlene se jogou da sacada de casa. Lily, foi horrível! – Petúnia finalmente perdeu a compostura e começou a chorar, Valter rapidamente a abraçando e a consolando. Lílian arregalou os olhos verdes, sentindo seu mundo ruir.
-N-não pode ser – Disse em choque. Petúnia então tirou seu rosto do peito gorducho de Valter e tirou algo do bolso, uma sacolinha branca de plástico, a qual entregou para Lílian.
-M-Marlene escreveu essa carta antes de se jogar. Ela me fez uma pulseira, e para você ela fez isso. Veja você mesma.
Lílian abriu rapidamente a sacola e pegou o pergaminho, escrito em uma letra cuidadosamente desenhada. Marlene sempre fora caprichosa. Começou a ler.
”Lílian,
Você provavelmente será a única á saber. A única que saberá de toda a verdade. James pediu-me sem compaixão para serrá-lo após se passassem um mês de seu casamento. E durante esse mês todo ele foi se acabando como pôde. Se jogou na água, ficou cheio de limo e sua madeira quase podre. Ele se raspou em todos os lugares pontiagudos e ásperos da casa e do quintal. Lílian, eu não agüentava mais vê-lo sofrer, você tem que me perdoar. Ele me implorou para serrá-lo com a serra de seu pai, e eu tive de fazê-lo. O coração dele não poderia mais se partir por causa da cola, e ele estava sofrendo demais. Me perdoe, por favor.
Nesse momento eu estou na sacada do quarto de seus pais, escrevendo isso para você. Eu fiz uma pulseira para Petúnia em madeira, seu pai me ensinou bastante sobre marcenaria. Fiz uma margarida para ela, já que ela adora, apesar do próprio nome ser de outra flor. E para você fiz um pingente. Um pingente de amor-perfeito em madeira, já que sei que apesar do seu nome também, você gosta é de amores-perfeitos.
Infelizmente, seu amor não foi perfeito. Assim como o meu não foi. Chega a ser uma ironia cruel o nome de sua flor favorita. James era perfeito para você, Lílian, ele se moldou todo para ficar exatamente do jeito que você queria. E ele te amava mais do que tudo no mundo. Foi capaz de jogar a própria felicidade fora pela sua felicidade e segurança. Ele era um homem, apesar de ser de madeira era mais humano que muitos que eu já vi e ouvi por aí. James era maravilhoso, Lílian Evans Diggory, e eu espero que você nunca se esqueça dele.
Mais irônico ainda são as minhas flores prediletas. Rosas. O maior símbolo das grandes paixões, dos amores puro e dos sentimentos proibidos. O meu sentimento era proibido. Eu amava James, Lílian, amava mais do que um ser humano pode amar outro. E por esse amor eu fui amiga dele, ajudei-o, mostrei para ele que ele não estava sozinho. Eu o amava demais, e isso me fez ser definitiva em acabar com seu sofrimento. Parti-o em dois partindo a mim mesma também. E foi nesse momento, há apenas alguns minutos atrás, que eu percebi que não fazia sentido eu viver sem ele. Amar e ajudar James era a minha missão, e agora ela está terminada. Eu fiz o que pude para fazê-lo feliz, mas era impossível. Só você poderia fazê-lo feliz. Eu tentei, Lily, tentei muito. E no final, tive que matá-lo, e ele levou minha alma e meu coração junto. Não posso mais ficar.
Eu espero que você seja imensamente feliz com Amos, assim como James queria que você fosse. E espero que Petúnia não sinta a minha falta. Ela foi ótima comigo durante a minha vida toda, e eu peço que você diga isso á ela. Eu amei Petúnia como uma irmã, desde que ela era uma garotinha. E amei você como uma amiga, já que não passamos tanto tempo assim juntas.
Agora te digo com sinceridade pra você nunca mais se esquecer que ele te amou, Lílian. Nunca esqueça que o amor dele por você mudou as nossas vidas, e as vidas de muita gente também. Eu digo com toda a certeza que não me arrependo de tê-lo amado, e de nenhuma das escolhas que fiz. Espero que você também não se arrependa das suas.
Carinhosamente,
Marlene.”
Lílian terminou de ler e apoiou a mão com a carta no braço da poltrona, colocando a outra mão sobre a boca e o nariz, abafando seus soluços. Então Petúnia abraçou-a e elas choraram como fizeram havia quatro meses, quando ambas eram solteiras e moravam juntas. Lílian não tinha mais forças para nada. Petúnia ajudou-a a deitar-se para dormir e tirou o bolo do forno, alegando quando Amos chegou que ela estava indisposta e não poderia mais ser acordada naquele dia. Amos fez sala para eles, mas Petúnia rapidamente alegou estar cansada da viagem de carro, subindo para o quarto de hóspedes e se deitando, imaginando a dor da irmã de ter perdido seu amor, e sentindo a própria dor de ter perdido Marlene.
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Lílian tirava um frango do forno quando ouviu o barulho do carro. Era outono e a paisagem á frente de sua janela era em tons de laranja e azul. Winchester com certeza era um lugar lindo para se passar o outono. Ouviu os passinhos apressados do filho que via desenho animado naquela manhã de domingo correndo até o hall de entrada, onde Amos estava entrando.
-E aí rapagão! Tudo bom com você? Afinal, o coelho Doty conseguiu salvar a menina Sarah? – Ouviu Amos perguntar ao filho e secou as mãos no pano de louça, se dirigindo á sala, onde os dois já estavam. Amos tinha Harry nos braços e um pacote vermelho no outro. Lílian beijou rapidamente o marido nos lábios enquanto o pequeno Harry tampava os olhos, fazendo cara de nojo.
-Como foi, amor? – Perguntou ao marido, que agora deixava Harry no chão. Lílian ajudou-o a retirar o paletó enquanto ele falava:
-Nessa reunião eu consegui o aumento de salário dos funcionários e fui informado que eu vou ser promovido mês que vem! Isso não é ótimo! – Lílian sorriu e ele abraçou-a, erguendo-a no ar enquanto ria. Beijou-o mais uma vez, compartilhando da felicidade do marido. Quando foi posta no chão Harry também sorria.
-Isso é ótimo, querido! – Disse congratulando-o. Amos olhou para o filho, que estendia os bracinhos para ele.
-Ah, papai quase esqueceu, Harry – Ele disse beijando o rosto do menino e apalpando os bolsos, pegando uma caixinha vermelha. – E esse daqui é para você, querida – Ele deu o embrulho maior para ela, que sorriu.
Lílian abriu o presente e agradeceu-o. Era um vestido maravilhoso. Amos tinha um gosto perfeito para esse tipo de coisas, e Lílian aprendera a apreciar os gestos singelos do homem. Ele era bom.
-Mamã, mamã, olha o que eu ganhei! – O pequeno estendeu para a mãe algo pequeno e escuro. Um boneco de madeira do Robin Hood.
-Eu achei-o muito simples, mas esse boneco tem alguma coisa. Ele é especial. Deve ser mágico, Harry, porque o papai não pôde deixar de comprá-lo. Espero que ele seja seu companheiro e que você goste muito dele – Ele disse enlaçando Lílian pela cintura por trás, observando o filho olhar maravilhado para o boneco.
-Posso por um nome nele, mamãe? Posso? – O pequeno perguntou ansioso, mas Amos deu uma risada.
-Filho, esse é Robin Hood. Você não precisa dar outro nome para ele – Ele disse se abaixando na frente do filho, mas o menino olhou para Lílian.
-Eu acho... Eu acho que você deveria chamá-lo de James – Lílian disse enigmáticamente. O menininho sorriu e olhou para o boneco, enquanto Amos olhava sem entender nada para a mulher.
-James? – Ele perguntou e ela sorriu tristemente, sentando-se na poltrona, observando o sorriso maravilhado do filho.
-James. Gostei desse nome – O menino disse e começou a correr com o boneco na mão, fazendo como se ele voasse. Amos sentou-se no sofá á frente da poltrona de Lílian.
-James? Algum ex-namorado seu?
-Não. Alguém de quem eu gostei há muito, muito tempo. – Observou o filho sorrir para o boneco, e podia jurar ver o boneco sorrir para seu filho também. Sorriu e voltou para a cozinha, sentindo como se não mais estivesse sozinha. Sentindo-se em paz.
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Eu chorei escrevendo isso. Espero que tenham gostado. Kisses.
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